quarta-feira, 3 de março de 2021

Tiago Cavalcanti* - Polarização e conformidade

- Valor Econômico

O pensamento estatizante do ex-deputado federal fluminense continua vivo no atual presidente

Como sociedade, valorizamos a saúde e a vida. Valorizamos também a liberdade individual e o convívio social. Além, claro, das nossas necessidades materiais para a sobrevivência e bem-estar.

A pandemia parece ter criado uma barreira entre a proteção à vida e a possibilidade de produção material e convívio social. Revelou-se também uma forte lacuna entre as pessoas que são a favor e as que são contra as medidas de isolamento social impostas pelos governos.

De forma geral, tenho a impressão que uma das principais transformações na sociedade contemporânea é a crescente polarização sobre diversos temas importantes que nos defrontamos. A polarização é a divisão da sociedade em grupos antagônicos, com visões completamente opostas a respeito de diversos temas. Como, por exemplo, a aderência ao isolamento social e a vacinação, o controle ou não dos preços dos combustíveis, entre outras questões.

Na verdade, não há problema que, em uma democracia, as pessoas pensem de forma diferente sobre diversos tópicos. Ao contrário, parece natural que esse seja o caso. Pessoas de diferentes gerações pensam de forma distinta e o contexto e experiências individuais moldam nossas posições.

Mas é necessário o mínimo de respeito às diferenças. Sem falar que alguns desafios em qualquer sociedade precisam ser superados de forma coletiva. Principalmente quando a ação de um indivíduo tem efeito direto sobre o bem-estar de terceiros.

É certamente o caso da pandemia atual. A covid-19 tem efeito diverso nas pessoas e o risco de complicações e óbito variam com diversos fatores individuais. Um desses principais fatores de risco é a idade. Nos Estados Unidos, por exemplo, cerca de 80% das mais de 500 mil mortes em decorrência da covid-19 foram de pessoas com mais de 65 anos de idade. Assim, as pessoas com baixo perigo de complicações não internalizam os riscos sociais da transmissão do vírus.

Como consequência, é essencial os governos informarem a população sobre os riscos de contágio do vírus e de como controlar sua transmissão, guiando as ações individuais com o objetivo de conter a pandemia. Em alguns casos, intervenções mais fortes de restrições à circulação das pessoas são necessárias para evitar o colapso do sistema público de saúde. Tais intervenções estão sendo agora implementadas por diversos governadores do Brasil, com o crescimento da segunda onda de infecções e o aumento na ocupação das UTIs por pacientes com complicações geradas pelo novo coronavírus.

Até recentemente, as medidas de isolamento social e higiene eram praticamente as únicas formas de preservar vidas nesta pandemia. Agora, com a chegada de diversas vacinas e a confirmação de que as mesmas são eficazes contra um quadro grave decorrente de covid-19, há forte esperança de volta a certa normalidade que tínhamos há pouco mais de um ano. É o caso de Israel, onde mais de 50% da população já recebeu a primeira dose de alguma vacina contra a covid-19 e o país vem relaxando as restrições de circulação de pessoas e de convívio social. O Reino Unido segue caminho parecido com mais de 30% das pessoas vacinadas.

Nesses países há uma forte mensagem das autoridades sanitárias para as pessoas se vacinarem. A Rainha Elisabeth II deu o exemplo, incentivando as pessoas a se vacinarem. O governo de Israel adotou um certificado digital de vacinação para o acesso das pessoas a academias e espetáculos esportivos e culturais.

O ponto é que o governo e as lideranças políticas têm papel fundamental para influenciar as expectativas e o comportamento das pessoas, seja de forma positiva ou negativa para a melhoria do bem-estar social.

Temos, em geral, a visão que as normas sociais e as crenças são persistentes e difíceis de sofrerem alterações. Mas não é necessariamente o caso. O brasileiro Leonardo Bursztyn, professor de economia da Universidade de Chicago, tem dedicado sua pesquisa ao assunto. Ele estuda diversas questões sobre como as normas sociais podem ser modificadas. Um exemplo, é o seu trabalho “Do Extremismo ao Mainstream”, publicado na American Economic Review, mostrando que a chegada do ex-presidente Donald Trump ao poder em 2016 levou ao aumento da xenofobia e da tolerância à xenofobia nos Estados Unidos.

Ro’ee Levy, pesquisador do MIT, publicou no último volume da American Economic Review seu artigo que demonstra como os códigos das redes sociais podem aumentar a polarização. Tratam-se de veículos de transmissão de ideias e notícias, que através dos botões de “likes” e “dislikes” tendem a mostrar os conteúdos com os quais concordamos. Assim, tais códigos aumentam a exposição das pessoas a sua forma anterior de pensar e diminuem a exposição a outras ideias e notícias. Ele vai além e em experimento controlado, demonstra que as pessoas expostas às ideias inicialmente contrárias às suas, diminuem a postura negativa em relação às ideias anteriormente antagônicas.

Quando Jair Bolsonaro entrou no poder, a expectativa era que algumas de suas retóricas agressivas contra determinados grupos eram apenas uma estratégia de ocupar um vácuo na sociedade e chegar ao poder. No entanto, a retórica e os exemplos irresponsáveis do presidente nesta pandemia, inclusive em relação à vacinação, preencheu de forma negativa os noticiários nacionais e internacionais. A forma de defesa do presidente e seus aliados foi sempre agredir o mensageiro.

O lado intervencionista e corporativista de Jair Bolsonaro já tinha sido demonstrado durante seus anos de deputado federal. A esperança de muita gente era que, assim como os indivíduos do experimento do Ro’ee Levy, a exposição às ideias liberais, através do convívio e conversas com Paulo Guedes, poderia mudar a visão intervencionista do presidente Bolsonaro.

A agenda liberal do atual governo parece ter sido abandonada, mas alguns podem argumentar que a pandemia acabou com qualquer plano estratégico do governo. No entanto, o anúncio da demissão do presidente da Petrobras, Roberto Castello Branco, com o objetivo de controlar o preço do diesel, demonstra que o pensamento estatizante do ex- deputado fluminense continua vivo no atual presidente. Nossa experiência recente com o intervencionismo na Petrobras mostra que há mais conformidade de Jair Bolsonaro com o governo Dilma do que antes poderia se imaginar nos códigos das redes sociais.

*Tiago Cavalcanti, professor de economia da Universidade de Cambridge e da FGV-SP.

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