quarta-feira, 17 de março de 2021

Yascha Mounk – Como conter a onda autocrática

- Folha de S. Paulo

Ordem do dia é a proteção da democracia, e não a promoção da democracia

Nos últimos dez anos ou mais, populistas autoritários vêm conquistando uma vitória inesperada após a outra pelo mundo afora. Eles chegaram ao poder na Índia e no Brasil, nas Filipinas e nos Estados Unidos.

E, embora Jair Bolsonaro e Rodrigo Duterte tenham inicialmente sido ridicularizados como líderes incompetentes que não tardariam a perder o poder, eles vêm se mostrando surpreendentemente hábeis em conservar sua popularidade ou em concentrar o poder em suas próprias mãos.

Nos últimos dez anos, os exemplos de políticos populistas sendo afastados de seus cargos por meio de eleições livres e justas têm sido escassos. Foi isso que fez da derrota de Donald Trump para Joe Biden um motivo tão forte para otimismo. Pela primeira vez em uma década, os cidadãos de uma democracia poderosa olharam a política populista de perto e decidiram que haviam visto o bastante. Parecia que a maré poderia estar virando, finalmente. O contra-ataque democrático estava prestes a começar.

Agora, quatro meses mais tarde, está ficando claro que o inimigo poderoso continua forte diante de um contra-ataque hesitante. A democracia americana continua frágil. Trump conseguiu convencer dezenas de milhões de americanos que a eleição foi fraudulenta e ajudou a inspirar um ataque sem precedentes contra o Capitólio. Ainda é muito possível que em 2024 Trump ou um sucessor escolhido a dedo se erga como ameaça populista renovada às instituições do país.

Líderes autoritários continuam a se fortalecer em outros países. Segundo relatório recente da Freedom House, o mundo ingressou no 15º ano de uma “recessão democrática”. Com a Índia, a democracia mais populosa do mundo, tendo sido rebaixada para o status de “parcialmente livre”, hoje menos de uma em cada cinco pessoas no mundo vive em um país livre.

Fato mais preocupante de todos, possivelmente, é que ainda não está claro se aqueles que travam o contra-ataque terão a coragem de colocar suas convicções em prática. O Fidesz, partido de Viktor Orbán, foi finalmente excluído do Partido do Povo Europeu, de centro-direita. Mas a União Europeia ainda não tem qualquer plano sólido para frear o grave retrocesso democrático que vem ocorrendo em seu meio.

E países como a Alemanha estão seguindo adiante com o gasoduto Nordstream 2, expondo democracias vulneráveis como a Ucrânia a pressão ainda maior dos autocratas no Kremlin.

Enquanto isso, Biden está fazendo o que pode para fazer jus a seu suposto papel de líder do mundo livre. Na Conferência de Segurança de Munique, ele fez um discurso excelente reafirmando seu compromisso com os valores democráticos e o relacionamento transatlântico, e sua administração está seguindo adiante com planos para uma cúpula global sobre a democracia.

Mas a administração também enfrenta limitações políticas e estratégicas sérias. Politicamente, muitos democratas hoje encaram com profunda desconfiança qualquer coisa que cheire a “promoção da democracia”. E, estrategicamente falando, a administração precisa descobrir como enfraquecer governos populistas na Polônia e Índia ao mesmo tempo em que busca a cooperação deles em seus esforços para enfraquecer a influência de ditaduras como Rússia e China.

Tudo isso sugere que os próximos anos irão se converter em uma gigantesca oportunidade perdida.

Naquela que pode acabar sendo a última vez que os líderes de grandes países da Europa e da América do Norte procuram preservar instituições democráticas, eles vão se ater ao manual democrático tradicional —e realizar lamentavelmente pouco.

Não é inevitável que seja assim. Se líderes de Paris a Washington levarem a sério a intenção de resistir à ressurgência autocrática, eles precisarão mudar sua abordagem de três maneiras chaves.

Em primeiro lugar, precisam encarar o dilema autocrático de frente. A necessidade de cooperar com democracias menos que perfeitas para conter as autocracias totais é real. Mas a Europa e os Estados Unidos devem fazer uma distinção clara e pública entre alianças táticas, que podem incluir países como Polônia e Índia, e parcerias estratégicas estreitas, que devem ser reservadas a países que conservam e defendem a democracia liberal e o Estado de Direito.

Em segundo lugar, devem reconhecer que as ditaduras estão em ascendência. O objetivo principal não deve ser o de exportar a democracia a países hoje autocráticos, uma perspectiva incerta e difícil —é preservar as instituições democráticas de países como Índia e Brasil, onde essas instituições hoje estão ameaçadas. A ordem do dia é a proteção da democracia, não a promoção da democracia.

Assim, a Rádio Europa Livre deve começar a fazer transmissões em polonês, e a Voz da América, em hindi.

Democracias da Europa e da América devem evitar censurar plataformas de mídia social que podem facilmente ser emuladas por candidatos a ditadores em todo o mundo. E precisam adotar legislação para impedir empresas domésticas de punir seus funcionários por criticar regimes autocráticos que estão tentando sufocar o livre discurso em países democráticos.

Finalmente, elas precisam reformar as instituições fundamentais da aliança ocidental. A União Europeia é supostamente alicerçada sobre um compromisso com valores democráticos como o Estado de Direito. A Otan é supostamente fundamentada sobre o engajamento com a aliança transatlântica.

Mas ambas hoje incluem países que não podem ser sancionados ou expulsos, apesar de terem passado a opor-se abertamente a essas metas. Isso precisa mudar –mesmo que exija uma reforma radical dessas instituições importantes, ou até mesmo sua recriação total.

A janela de oportunidade para resistir à autocracia e defender a democracia permanece aberta, por enquanto. Mas ela voltará a se fechar muito rapidamente, a não ser que nossos líderes comecem a agir com coragem e visão.

*Yascha Mounk, O cientista social Yascha Mounk é professor associado na Universidade Johns Hopkins e autor de "O Povo contra a Democracia".

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