Embora
nem sempre a economia agropecuária seja corretamente descrita em seus amplos
contornos, sejam espaciais ou suas dimensões sociais e econômicas, há uma
profusão de manifestações públicas que exaltam seu recente virtuosismo. É a
narrativa do “agro é tudo”, repetida no horário nobre televisivo. São aplausos
concentrados, contudo, exclusivamente nos focos econômico-produtivos e no
intenso aprofundamento tecnológico de diversos ramos considerados dinâmicos. E
não apenas no tocante à produção de grãos (soja, milho e algodão), mas
igualmente o setor de carnes, os ramos da cana, laranja e do café, a
fruticultura irrigada no Vale do São Francisco ou o setor de florestas
plantadas – enfim, são inúmeras as regiões e os ramos produtivos hoje
fortemente modernizados e dominados por uma enraizada lógica empresarial. A
atual safra agrícola, contabilizado o seu valor bruto mais adiante,
provavelmente alcançará um trilhão de reais (sic), pela primeira vez em nossa
história rural.
Por tudo
isso, a economia agropecuária se transformou em uma espetacular máquina
produtora de riquezas para o Brasil – um fato empiricamente inegável. E sob
esse curso tendencial, com a agricultura (e a pecuária) empresarial
conquistando quase todos os ramos produtivos, é inevitável que as chances dos
médios e pequenos produtores venham se estreitando rapidamente, em particular
no presente século. E esse tem sido o outro ângulo dessa transformação
produtiva, embora raramente discutido de forma pública adequada, em todos os
seus aspectos. Estamos caminhando, em síntese, talvez rapidamente, para
estruturar uma agricultura sem agricultores.
No referido evento, fui um dos expositores e arrolo, nesse brevíssimo comentário, alguns dos argumentos apresentados naquela ocasião. Inicialmente, submeti a “tese geral” que orienta a leitura da realidade da produção agropecuária e seus determinantes. Qual seja: sugerir que, no último meio século, o Brasil rural vem experimentando uma profunda e radical transformação histórico-estrutural. Trata-se de uma transição de um antigo padrão bimodal para um novo e emergente modelo produtivo que é (ou logo será) unimodal, ancorado incontrastavelmente na hegemonia da agricultura empresarial de larga escala. A antiga segmentação dual entre grandes proprietários de terra dedicados à exportação e, em outro subsetor, os médios e pequenos abastecendo o mercado interno, como prevalecia até os anos oitenta, está deixando de existir. É uma passagem ainda inconclusa, mas sem retorno, e sob a qual os médios e pequenos produtores estão sendo encurralados como agentes econômicos e, gradualmente, também como cidadãos moradores das regiões rurais.
São
inúmeras as evidências desta transição que anuncia um “outro rural”. A mais
categórica delas é a chocante concentração da riqueza no campo, pois apenas 2%
dos estabelecimentos rurais se apropriam de 71% do valor bruto total produzido,
segundo o Censo 2017 (no censo anterior a proporção era 63%). Mas não apenas
isso: registre-se como ilustração, por exemplo, que o feijão, antes tipicamente
um “cultivo de pobre”, é atualmente produzido majoritariamente por produtores
de corte empresarial e 14 dos vinte municípios maiores produtores, em valor,
estão situados no Centro-Oeste, deixando para trás a pequena produção do
passado. O processo de expansão do capitalismo agrário, adicionalmente, quase
eliminou as formas de produção típicas de uma economia antiga, como os
posseiros, ocupantes, arrendatários pobres ou parceiros: eram 36% do total das
unidades de produção em 1970, mas hoje totalizam apenas 7,5%, espalhados nas
regiões rurais mais remotas.
Com esta
radical mudança, vão também diminuindo os grandes proprietários de terra que
seguiam a lógica puramente rentista do passado, centrada no tamanho da
propriedade. Em nossos dias, apenas a produtividade garante a sobrevivência na
atividade (por isso, a palavra “latifundiário” quase desapareceu). Ou seja, a
“tecnologia”, em termos mais genéricos, passou a ser a única condutora da
atividade. E esta, para produzir resultados econômicos satisfatórios, precisa
ser adotada na forma de arranjos (várias tecnologias), significando que é um
caminho apenas para poucos, em função de seu custo total. Em consequência, a
intensificação tecnológica, de fato, é a principal promotora da desigualdade
social no campo brasileiro, pois a vasta maioria dos produtores rurais não
consegue o acesso a tais arranjos, para manter-se competitivo.
Talvez
um caso emblemático e revelador seja o algodão. Antes, no Nordeste rural, eram
aproximadamente duas milhões de pessoas ocupadas com esse cultivo, usando 4
milhões de hectares. Atualmente, são 1,7 milhão de hectares, mas, sobretudo, no
Centro-Oeste e nas mãos de alguns poucos gigantescos produtores empresariais,
enquanto a produtividade multiplicou-se por mais de dez vezes. O Brasil, que
era importador de algodão, passou a responder por um quinto das exportações
mundiais. Importante: com a elevação da produtividade, foram poupados de
utilização 13 milhões de hectares nesta mudança, com profundas implicações
sociais (aprofundando a pobreza rural no Nordeste), mas virtuosos efeitos
econômicos e ambientais.
Examinando-se
a estrutura da economia da produção agropecuária vai emergindo um fato
dramático. Entre 3,5-4,5 milhões de estabelecimentos rurais estão ameaçados de
desaparecimento, nos próximos anos. São os médios e pequenos produtores que não
conseguem manter-se nesta corrida tecnológica e vão perdendo seus mercados de
venda, sobretudo os locais e regionais. O caso mais assustador ocorre no
semiárido nordestino. Ocupando 12% do território brasileiro, na região moram
65% das famílias consideradas pobres, as quais atualmente encontram-se, cada
vez mais, encurraladas, sem opções produtivas e onde incidem os efeitos mais
danosos das mudanças climáticas.
As
ameaças sobre a permanência na atividade agrícola das famílias rurais moradoras
nos médios e pequenos estabelecimentos rurais formam uma longa lista. Incidem a
baixíssima escolaridade, o envelhecimento dos responsáveis, a migração dos mais
jovens, a perda de mercados, mudanças demográficas (as famílias se tornaram
menores), as diferenças tecnológicas e a produtividade menor ou a crescente
complexidade das atividades agropecuárias.
Em suma, a precariedade geral da vida social nas regiões rurais e,
assim, o incentivo à migração e à desistência de permanecer no campo.
O que
fazer? São vários os cenários que poderiam ser discutidos mais amplamente.
Mantida a atual política, por exemplo, nada de mais substantivo acontecerá e o
“modelo unimodal” irá consolidar-se definitivamente. Mas há outras
possibilidades. Para o Nordeste rural, especialmente no semiárido, a única saída
parece ser instituir a “renda mínima universal”, uma proposta que vai
lentamente sendo aceita. Eliminaria pouco mais da metade da pobreza rural, com
um só gesto de política governamental. Por outro lado, uma parte daquele imenso
conjunto em torno de 4 milhões de propriedades, antes citado, mantém ainda
formas de integração mercantil e poderiam ser “salvos” das tendências mais
incontornáveis da expansão do capitalismo agrário globalizado que ora nos
caracteriza. Mas é preciso urgência e rápida implementação das ações, pois são
numerosas as evidências sobre a consolidação do “caminho único” referido nas
regiões rurais.
Ponderados
os argumentos aqui brevemente submetidos, o Brasil rural acabou? Como “espaço
social” (o rural-agrário), provavelmente está definhando e fadado a desaparecer
em algum tempo – relativamente, ou seja, quando comparado com meio século atrás
e às regiões rurais antes populosas. Ficarão imensas manchas vazias de vida e
interação humanas, não obstante mantidas como pujantes regiões de produção de
mercadorias agrícolas ou pecuárias. Apenas algumas partes do país rural
mostrarão alguma resiliência social, como subpartes dos três estados sulistas,
às quais se somarão outras esparsas regiões, aqui e acolá, nas quais famílias
rurais persistirão, apelando a possibilidades produtivas recentes, embora
limitadas, do turismo rural aos derivados processados e ofertados em franjas
mercantis constituídas por uma demanda de rendas mais altas.
No
geral, contudo, em vinte anos, se tanto, o Brasil rural caminhará para manter
uma população ocupada em atividades agrícolas apenas ligeiramente superior ao
caso norte-americano, provavelmente em torno de 4-5% da população total ocupada
– embora uma proporção maior de moradores rurais, mas sem atividades agrícolas.
Como
“espaço produtivo e econômico” (o rural-agrícola), no entanto, o país está
condenado ao sucesso, se tornando o maior produtor de alimentos do mundo. No
campo, a riqueza se concentrará de forma ainda mais acelerada, nas mãos de
produtores rurais inovadores, responsáveis pela produção em larga escala da
quase totalidade dos produtos agrícolas e pecuários destinados ao mercado
interno e às exportações. Será um ambiente produtivo ainda mais globalizado e
conduzido pela excelência tecnológica, nas mãos de um empresariado rural
proativo e moderno.
Como
fator mais destacado, a sociedade se beneficiará de alimentos saudáveis e
baratos e as cadeias produtivas crescerão, gerando empregos urbanos e mais
renda. Mas a desigualdade no campo se aprofundará e a “questão social”, que
marcou tão profundamente a história rural brasileira, migrará do campo para as
cidades. O secular capítulo da “questão agrária” em nossa história social e
política terá sido concluído.
*Zander Navarro, sociólogo, pesquisador da Embrapa (Brasília, DF)
AGRO é TUDO MENOS REFORMA AGRÁRIA!!!
ResponderExcluirRumamos para um "país" sem sociedade?
ResponderExcluirUma imensa plataforma territorial para a produção de "comodities" para exportação, cercada por sub-empregados, desempregados, desalentados e famintos?