sábado, 3 de abril de 2021

Ascânio Seleme - Discurso camuflado

- O Globo

De onde o general Braga Netto tirou que as Forças Armadas devem proteger a democracia e a liberdade do povo? Foi o que ele disse no discurso de posse dos novos comandantes das Forças Armadas. “Marinha, Exército e Aeronáutica se mantêm fiéis às suas missões constitucionais de defender a pátria, os poderes constitucionais e as liberdades democráticas”, acrescentando em seguida: “Neste dia histórico, reforço que o maior patrimônio de uma Nação é a garantia da democracia e da liberdade de seu povo”.

Pode-se até aceitar como razoável que Exército, Marinha e Aeronáutica trabalhem pela manutenção da democracia, mas não é este o seu papel constitucional. O artigo 142 da Constituição estabelece que as Forças Armadas destinam-se à defesa da pátria, dos poderes constitucionais, da lei e da ordem. Não faz, em tempo ou canto algum, referência a garantias da liberdade do povo brasileiro. Nem menção à democracia. Quem cuida do povo e do regime de governo são os poderes constituídos, não as Forças Armadas.

Parecia pegadinha, ou talvez fosse apenas mais um carinho no chefe. Sabe-se muito bem do apreço exagerado do general pelo capitão. O fato é que Braga Netto usou democracia e liberdade do povo com a mesma lógica que a sua colega Damares Alves tratou dos direitos humanos na terça-feira passada. Damares foi explícita. Enviou ofício ao procurador Augusto Aras pedindo “providências” contra supostos abusos na decretação de restrições de estados e municípios para conter a pandemia de coronavírus.

Não ria, a ministra acha que é crime contra os direitos humanos impedir as pessoas de irem a restaurante, praia ou clube. Braga ficou na retórica, mas seu discurso pode ser entendido da mesma maneira. Como se dissesse estar pronto para empregar as Forças Armadas se a liberdade do povo de ir a restaurante, praia ou clube for ameaçada.

Bobagem, claro. Nem Braga, nem Bolsonaro têm as Forças Armadas. O Exército não é do capitão. Mas o general, que diz saúde ao presidente mesmo quando ele não espirra, não dá ponto sem nó.

Naquele discurso repetiu duas vezes que os homens ali perfilados foram nomeados pelo “comandante em chefe das Forças Armadas, o excelentíssimo senhor presidente Jair Bolsonaro”. O excelentíssimo, sabe-se muito bem agora, foi obrigado a engolir general, almirante e brigadeiro. Sobretudo o general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira.

Fora o discurso camuflado, o general tentou demonstrar, logo que assumiu o Ministério da Defesa, uma autoridade que não tem sobre o Alto Comando do Exército, nem jamais terá. E, antes disso, correu para endossar a orientação do presidente de celebrar o 31 de março.

Foi tão afoito que soltou a nota esdrúxula no dia 30. Não preciso reiterar o que todos já escreveram sobre celebrar aniversários de ditaduras.

DIA D

O Centrão espera ansioso o Dia D, que será o 5 de julho, data em que o ministro Marco Aurélio Mello se aposenta no Supremo Tribunal Federal. Lira e companhia querem que o presidente nomeie mais um ministro garantista. Ele pode ser terrivelmente evangélico, cristão, judeu ou ateu, não importa. O importante é que reze na cartilha de Gilmar Mendes. O futuro de Bolsonaro será então lançado, mas claro que ele sempre poderá oferecer mais vagas na Esplanada para se proteger. Saudades do Rodrigo, capitão?

RENAN TAMBÉM

Jornalistas têm recebido mensagens de leitores surpresos com o que chamam de boa vontade da imprensa com Lula. A queixa não é justa. Mas é importante observar que as pancadas que Bolsonaro recebe pelos seus permanentes ataques contra a vida e suas seguidas ameaças à democracia fazem com que o tratamento dispensado a gente como Aécio Neves e até o sumido Renan Calheiros pareça gesto de simpatia.

MEA CULPA JAMAIS

Aliás, Lula não consegue mesmo fazer um mea culpa. Na entrevista que deu para Reinaldo Azevedo, na Band News, o ex-presidente disse que os diretores do PT que colocou na Petrobras não roubaram da estatal, quem subtraiu da empresa foram os funcionários de carreira. Francamente. Faltou dizer que o dinheiro que estes desviaram foram para os partidos da base, inclusive o PT. Não falou, mas também não foi perguntado.

PAVOR

O valentão do Palácio do Planalto está morrendo de medo da eleição do ano que vem. E não é só por causa do Lula.

RACIONAMENTO

A ideia do ministro Marcelo Queiroga de racionar oxigênio nos hospitais só é pior do que a de Janaína Paschoal de adotar uma “solução final” para os idosos. Mas esta também já não tem mais cura.

KISS ME, BABE

Merece um beijo do Fabrício Queiroz quem acreditou na promessa de campanha de Bia Kicis para a presidência da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara. Ela jurou que depois de eleita iria se pautar pelas regras democráticas. Era lorota, claro.

SÉRIE IMPERDÍVEL

São apenas três episódios, mas mostram com clareza cristalina como uma pessoa consegue se autodesintegrar apenas fazendo bobagem. No primeiro capítulo, o protagonista, um capitão reformado, perde feio para o antagonista da calça apertada que quer salvar a comunidade enquanto ele tenta matar todo mundo. No segundo, um grupo do Centro de Autoajuda enquadra o personagem e o obriga a jogar amigos ao mar. No terceiro episódio, o capitão fracassa ao tentar se recuperar usando a força. Só que a força não era sua, como ele vai descobrir ao final da saga. Chama-se “As derrotas do capitão” e está disponível em todos os canais. Em alguns, contudo, foram feitas edições para amenizar o impacto das tontices do personagem, o que acaba tornando a série meio incompreensível.

GRAÚNAS

Dois deles têm mais de 60 anos, o terceiro esconde a idade, mas deve estar por aí também. O curioso é que os três novos comandantes das Forças Armadas não possuem sequer um fio de cabelo branco. Não sei se isso é coisa do seu passado de atleta, da boa genética, do Grecin ou do Koleston.

JUSTIÇA MILITAR

Está mais do que provado que o Superior Tribunal Militar é uma anomalia e deveria ser extinto. Bolsonaro, por exemplo, fez até croquis para explodir bombas em quartéis e saiu ileso de julgamento militar. Se é para inocentar, já temos o STF, oras.

CUSTO ZERO

Excelente e corajoso o plano de US$ 2,3 trilhões do presidente americano Joe Biden para transformar e modernizar os Estados Unidos. Para modernizar o Brasil, que é mesmo um país abençoado por Deus, desnecessário qualquer dinheiro, basta que se remova o presidente da República. O Brasil sai dos anos 1970 e volta imediatamente para a década de 2020.

RAMIRO

Errei no sábado passado. Chamei o chanceler Ramiro Saraiva Guerreiro de Raimundo.

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