O
capitão Jair e o Dr. Jairinho têm algo em comum: gostariam de virar a página. O
primeiro é presidente do Brasil. Como a responsabilidade pelo caos pandêmico
não sai de seu colo, ele explora tentativas cada vez mais bizarras de virar a
página, de varrer a realidade fúnebre do país nem que seja aprofundando ao
extremo o precipício. A mortandade que o capitão semeia é coletiva.
Já
o Dr. Jairinho prefere semear terror individual. Por espancamento. Foi preso
com a mulher esta semana pelo assassinato do enteado Henry, de 4 anos. Vereador
carioca no quinto mandato e habituado a trafegar nas paralelas, Jairo Souza
Santos Junior procurou varrer a realidade de seu crime ainda no hospital —
pediu, ao arrepio da lei, que o corpo do menino não fosse encaminhado para o
Instituto Médico Legal. Pretendia encaminhá-lo a um legista particular para, em
suas próprias palavras, “poder virar a página logo”. Felizmente, não foi
atendido. Mais tarde, segundo relato do devastado pai biológico da criança, o
vereador teria se dirigido a ele em termos ainda mais crus: “Mermão, vira essa
página, vida que segue. Você faz outro filho”.
Frieza
insaciável existe.
Jair e Jairinho têm em comum uma desumanidade doentia. Ela parece não ter fim neste Brasil em transe, resignado a chorar. É natural chorar pelo menino Henry mesmo sem tê-lo conhecido, pois os elementos conhecidos do caso geram empatia universal: o horror e medo de uma criança brutalizada até desfalecer, a animalidade de um padrasto espancador, a frieza criminosa da mãe. Como não querer escancarar os braços para proteger o miudinho indefeso?
Mais
complexa é a subtração diária de vidas brasileiras levadas pela Covid-19, esse
matador silencioso, invisível, não humano. Mesmo quando tentamos individualizar
alguma morte anônima igualmente cruel, o pranto não vem fácil em meio aos
outros 350 mil que já se foram. Tome-se o caso da menina de 4 anos, mesma idade
de Henry, cujo corpo foi encontrado no Hospital Materno Infantil de Brasília
por vigilantes da instituição. Segundo o portal “Metrópoles”, o corpo sem vida
estava há mais de 24 horas numa salinha sem ventilação na entrada da emergência
pediátrica, à vista de pacientes que por ali passassem. Só que o pavor da
menina com suspeita de Covid-19, sua solidão e asfixia antes de morrer são mais
difíceis de imaginar. Permaneceu anônima, exceto para quem a perdeu.
Tinha
razão o dramaturgo e romancista Max Frisch quando escreveu que, mais cedo ou
mais tarde, todo mundo inventa uma história que acredita ser sua vida. Nesse
sentido — e apenas nesse sentido —, Jair Bolsonaro não é diferente do resto do
mundo. Para manter sua vida ficcional vedada, ele precisaria “virar a página”
de sua responsabilidade na tragédia brasileira. Não vai conseguir. Basta
responder a uma pergunta de simplicidade cristalina que aponta a
responsabilidade única do presidente da República no abandono do país: qual o
único brasileiro que poderia ter mudado o curso da voracidade do vírus? A
resposta independe das complexas deliberações do Judiciário e das tortuosidades
do Legislativo. Ela se fundamenta no senso comum.
Desde
o início da pandemia, a parte dos brasileiros em condição de optar pelo
iluminismo entendeu a seriedade do perigo, adotou medidas protetivas
individuais, assumiu sua responsabilidade coletiva. Sempre se manteve decidida
a não compactuar com o obscurantismo. Para que o combate à Covid-19 tivesse
alguma chance de êxito ou racionalidade, teria bastado convencer o outro
Brasil. Esse outro Brasil em estado de mitomania, aguerrido, porém fiel, teria
seguido com disciplina religiosa qualquer ordem de distanciamento, uso de
máscara ou confinamento emanada da boca do seu líder. Tamanho poder e privilégio
somente o presidente tinha, com tudo à disposição — cadeia nacional de rádio e
TV diária, se quisesse, redes sociais, confiança cega de seguidores. Nenhum
ministro da Saúde, nenhuma sumidade científica, nenhum acadêmico, celebridade
ou vencedor do “BBB” teria, sozinho (nem em conjunto), eficácia semelhante. O
presidente da República preferiu incentivar o descarrilamento de vidas.
Muito acima das lambanças generalizadas deste Brasil esgarçado, a responsabilidade de Bolsonaro é única. Apenas ele, sem precisar de mais ninguém, dado que o governo o seguiria, teve a chance de evitar o naufrágio. Nem sequer tentou. Optou pela morte.
Muito, muito, muito obrigado, Dorrit, por demonstrar tão clara e objetivamente a indesculpável atitude de Jair Bolsonaro, tanto na lamentável condução do país quanto na escalada da pandemia no Brasil.
ResponderExcluirOs dois últimos parágrafos de seu artigo não deixam a menor dúvida sobre a culpa desta pessoa. Nenhum argumento contrário deve sequer ser apresentado porque nunca superaria o seu.