sexta-feira, 2 de abril de 2021

Fernando Abrucio* - Bolsonaro representa a vitória dos piores contra os melhores

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Que país legaremos aos nossos filhos e netos com esse modelo de despreparados movidos por um darwinismo social?

O governo Bolsonaro representa a vitória dos piores quadros contra as melhores cabeças do país. Claro que há exceções, mas a regra é a do triunfo da ruindade, à semelhança do despreparo técnico e político do presidente. Numa situação como essa, sem paralelo na história brasileira, é preciso mais do que uma carta ressaltando o rotundo fracasso no combate à covid-19. É fundamental que a sociedade e a elite do país pressionem para mudar diversas políticas públicas, em suas concepções e seus dirigentes despreparados, antes que a tragédia se aprofunde mais, com efeitos perversos para todos.

A famosa “Carta do PIB e seus economistas”, como foi chamada na semana passada, isolou completamente o governo, que se arrisca a ficar com o apoio apenas dos fiéis do bolsonarismo. O grupo com maior faro de poder no país, o Centrão, já percebeu que, mantida a linha atual de combate à pandemia, quem apoiar Bolsonaro terá dificuldades nas eleições estaduais e parlamentares de 2022. Muitos criticaram o movimento da elite social e dos congressistas, que só abriram os olhos agora, quando a catastrófica política sanitária colocou o Brasil numa situação próxima à barbárie. Trata-se de uma crítica pertinente, mas não é o maior problema dessa movimentação política.

Quem quiser se mobilizar contra a situação reinante, seja que grupo for, precisa fazer não uma, mas várias cartas. Obviamente que a questão mais urgente é a pandemia, e já foi um avanço a elite brasileira sair da sua narrativa única em torno da economia. Todavia, a incompetência técnica, a insensibilidade política e humanitária, a criação de narrativas sem pé nem cabeça e o desejo maior de destruir o que existe se sobrepujando à capacidade de se construir alternativas são características que estão em quase todas as partes da Esplanada dos Ministérios. O fracasso em cada política pública afeta os tempos presente e futuro do país.

Na política externa, a opção pela política antiglobalista da extrema direita tornou o país um pária internacional. Esse projeto já atrapalhou a negociação por vacinas, somando-se a outros equívocos absurdos da política sanitária. Só que os erros dessa canhestra visão diplomática vão atrapalhar outros objetivos da nação: com a atual diretriz, não há chances de o Brasil entrar na OCDE, não haverá diálogo relevante com a América Latina, não há espaço para ampliar a cooperação com a China e as relações com o governo Biden serão muito difíceis. As relações internacionais geralmente são menos visíveis para a população em geral e, por isso, é fundamental ressaltar que os erros atuais podem custar empregos, oportunidades de mercado e parcerias geopolíticas fundamentais ao país.

O estrago na área ambiental pode ser ainda maior. O meio ambiente se tornou um dos principais temas da agenda internacional contemporânea e, ao mesmo tempo, constitui um ativo estratégico brasileiro na sua relação com o mundo. Ter uma política desastrosa sobre esta questão, como há hoje com o ministro Ricardo Salles, pode gerar obstruções políticas e econômicas vindas do mundo desenvolvido. Além disso, quanto mais tempo o país incentivar na Amazônia o faroeste dos desmatadores, garimpeiros e da agricultura ou pecuária predatória, mais isso poderá ter efeitos sobre o próprio clima do país, atingindo particularmente o regime de chuvas do centro-sul. Isso é um tiro no pé, podendo afetar o lado mais dinâmico da economia brasileira.

Tal como na política externa, a gestão ambiental bolsonarista não se baseia em evidências científicas, em práticas que estão dando certo no mundo ou que foram bem-sucedidas no Brasil. Vale relembrar: em ambas as áreas, o país foi uma referência nas últimas décadas, comandadas por profissionais de grande qualidade. Em seu lugar, entrou o pior time possível, gestores com quase nenhuma experiência e com ideias, no mínimo, exóticas. Fica a lição que não só a atuação equivocada em política econômica custa caro ao país.

Um dos exemplos mais paradigmáticos do “governo dos piores” que administra o país é a educação. O MEC já teve três ministros efetivos e um que não chegou a assumir porque mentiu sobre seu currículo - fato simbólico de um governo com quadros despreparados para a função. Em meio à pandemia, que fechou escolas e agravou a desigualdade entre os alunos, o ministério não fez praticamente nada para ao menos reduzir os efeitos dessa crise sanitária. O ministro chegou a dizer que a responsabilidade era dos estados e municípios, lavando as mãos e demonstrando sua insensibilidade e incompetência.

Pior: os ideólogos do MEC, que não entendem nada de gestão pública, só propõem ideias que destoam completamente das experiências bem-sucedidas, tanto internacionalmente como no Brasil. Há modelos educacionais com grande sucesso no país, como nos exemplos do Ceará e de Pernambuco, e o governo federal não os leva em consideração para fazer suas propostas. A comparação piora quando se observa que o país não está seguindo o que é feito pelos 30 países com melhores resultados no exame internacional do Pisa (Programme for International Students Assessment), adotando uma agenda que não é utilizada como referência em nenhum lugar relevante do mundo.

No lugar das boas práticas internacionais, o MEC abraçou o homeschooling (educação domiciliar), a escola sem partido, a militarização da educação e o enfraquecimento dos modelos de avaliação. Todas essas medidas enfraquecem institucionalmente as escolas, desprofissionalizam o ofício do professor, retiram do Estado o papel de pensar um currículo universal, concebem o aluno como um sujeito dependente apenas das regras definidas por suas famílias, em suma, destroem um legado de cerca de 30 anos de reformas educacionais que fizeram a escolarização chegar aos mais pobres. Eis aí mais um viés do “governo dos piores” montado por Bolsonaro: ele não admite nem ataca profundamente o problema da desigualdade. Que país legaremos aos nossos filhos e netos com esse modelo de despreparados movidos por um darwinismo social?

Uma “Carta do PIB” ou de qualquer outro segmento social não pode negligenciar que o governo Bolsonaro está destruindo a principal ponte para o futuro, que é a educação. Óbvio que a tragédia na saúde assusta mais no curto prazo porque estão morrendo milhares de pessoas. Sem ignorar esse fato, é preciso evitar o desmonte completo da política educacional, que agora chegou ao Inep, principal órgão de pesquisa e avaliação do país. Destruir esse órgão é garantir a vitória da ideologia de extrema direita sobre a ciência.

Boa parte daqueles que não são bolsonaristas-raiz votaram no atual presidente por causa da proposta de política econômica. É bem provável que estejam agora insatisfeitos com os resultados, afinal a política liberal prometida está bem longe de ser colocada na prática. Verdade que a equipe econômica, quando comparada ao resto do governo, é quase um oásis. Porém, mesmo essa possibilidade de ilha de excelência foi frustrada por dois fatos. Primeiro, grande parcela do grupo foi embora antes de o governo terminar. Frustrados com a prática efetiva, pensaram que não poderiam manchar seus currículos com uma experiência malsucedida.

Além disso, a competência de gestão não é apenas técnica, pois as habilidades relacionais e de ação política são variáveis-chave dos bons governos. Basta lembrar de outras equipes econômicas que fizeram planos de estabilização e reformas amplas bem-sucedidas. Esse critério claramente piora a avaliação de Paulo Guedes. Uma liderança pública efetiva sabe planejar bem seus projetos, consegue motivar todos os membros do ministério, tem bom diálogo com a sociedade e, sobretudo, com os políticos. E, acima de tudo, deve gerar o menor nível de conflito possível, algo que só atrapalha os resultados da política econômica.

Por estes critérios, o Ministério da Economia está longe do modelo ideal. Precisaria ter lideranças como Felipe Salto, presidente da Instituição Fiscal Independente: elegante, dialoga bem com todas as partes, conhece profundamente o tema e entrega o que planeja. Esse exemplo não serve aqui apenas para polemizar. Cito esse gestor para dizer algo fundamental: o Brasil tem gente milhões de vezes mais qualificada para fazer políticas de saúde, educação, meio ambiente, relações exteriores e política econômica. Poderíamos ter agora um “governo dos melhores”, vindo de partidos diferentes, em vez desse grupo de despreparados que estão levando o país para o buraco.

A substituição do atual “governo dos piores” por um “governo dos melhores” depende de três coisas. Primeiro, escolher gente mais qualificada, técnica e politicamente, que saiba o que efetivamente dá certo em cada política pública. Segundo, ampliar o leque de temas importantes para o país, indo além da questão econômica, evitando assim a miopia que tem caracterizado o debate público brasileiro. Por fim, fazer cartas mais amplas em termos de composição social e visões de mundo, pois só desse modo será possível gerar um movimento profundo de transformação da realidade para todos. Basta lembrar que o maior problema do Brasil é a desigualdade, e combatê-la vai exigir uma aliança de várias forças sociais, incluindo os mais afetados por esse modelo perverso, que ficou mais patente com a pandemia.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas

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