terça-feira, 20 de abril de 2021

Joel Pinheiro da Fonseca - O Ocidente e o lockdown

- Folha de S. Paulo

Quarentenas e isolamento são medidas conservadoras?

Vivemos em tempos de decadência moral e espiritual. Os homens perderam a coragem. “Onde foram parar os machos?”, clama ávido um famoso assecla do bolsonarismo. E não pra menos! Pessoas em casa, fechadinhas, sem trabalhar, ganhando auxílio, com medo de um minúsculo vírus; isso não seria motivo de vergonha a nossos corajosos ancestrais?

Em uma variação do mesmo tema, o lamento ganha contornos espirituais. O homem moderno esqueceu-se de Deus e da vida eterna, e por isso é tão neuroticamente obcecado com a saúde. Afinal, a morte vem para todos. Por fim, corre o argumento, medidas de isolamento violam nossos santos direitos individuais, que não admitem restrição nenhuma. Não foi assim que o Ocidente se ergueu?

É bela a disposição de nossos conservadores em querer proteger nossa civilização. Mas é uma pena que ela não venha acompanhada de qualquer conhecimento histórico sobre essa civilização.

Ao contrário da imaginação conservadora, nossos antepassados de carne e osso reagiram às epidemias de seu tempo de maneiras similares às nossas. A própria ideia de uma quarentena aplicada a navios e caravanas que chegam de fora durante uma peste foi uma inovação da peste negra. E as medidas não paravam por aí.

Para impedir que a infecção saísse de uma cidade e fosse para outra, as autoridades impunham um cordão sanitário ao redor da cidade infectada: ninguém mais podia sair até que a epidemia passasse.

Proibição de aglomerações e festas, de jogos e teatros (aliás, Shakespeare escreveu seus poemas mais famosos durante uma longa quarentena sem teatro de 1592 a 93). Mesmo procissões religiosas foram restritas em diversas ocasiões, e muitas igrejas fechavam as portas. Nos piores momentos, os próprios fiéis deixavam de ir.

Algumas epidemias foram surpreendentemente bem documentadas. É o caso da peste de 1665 em Londres. Seguindo a prática comum, qualquer pessoa visivelmente infectada era imediatamente apreendida e levada a uma casa de pestilência, onde provavelmente morreria, para não infectar os saudáveis.

No caso de casas suspeitas, a ordem das autoridades era pintar um X vermelho na porta e colocar um guarda na rua para impedir que qualquer morador saísse delas.

Mas nem só de maldade era feita a política: para ajudar os desesperados e as cidades isoladas, havia coletas adicionais de impostos e doações de alimento. Exatamente como os auxílios que tantos países, inclusive o Brasil, utilizaram durante esta pandemia.

No início do século 20, nosso conhecimento já tinha avançado bastante. Quando a gripe espanhola tomou o mundo de assalto em 1918, as autoridades de vários países impuseram medidas muito similares às que vemos hoje: fechamento de escolas, restaurantes, comércios não essenciais, igrejas, teatros e aglomerações públicas em geral. Uso de máscara de pano para conter o contágio.

Medidas extremas para lidar com emergências de saúde pública estão conosco desde a Antiguidade. Não são invenção de tiranos e comunistas. A partir do momento que o perigo passa, as restrições vão embora. É o que já vemos em Israel, na Inglaterra, na Austrália.

Os delicados “conservadores” de hoje, para quem uma máscara de pano parece um sacrifício duro demais, associam essas medidas à tirania comuno-globalista. Mal sabem que são todas parte de sua amada civilização ocidental.

*Economista, mestre em filosofia pela USP.

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