Rompe-se
o tecido social e poucas vezes a imagem do País terá descido tão baixo
No
quadro das ameaças de colapso da personalidade e também no das catástrofes
sociais, recuperar o “centro”, seja só o de si próprio, seja o de toda uma
comunidade, costuma ser o movimento que impede a descida aos infernos e a
anomia generalizada. Não se trata de programa tímido ou moderado, embora a
moderação, sem deixar de ir à raiz das coisas, esteja presente como um dos seus
elementos constitutivos.
Em
geral, a urgência de um movimento desse tipo sucede à percepção de um risco
cuja natureza é, acima de tudo, existencial: vemo-nos, como indivíduos ou como
coletividade, diante de forças que escapam ao nosso controle, com potencial de
destruição que só podemos antever recorrendo às distopias mais contundentemente
imaginadas. Em situações assim, podemos tocar Orwell com as mãos.
Como sociedade nacional, entramos num túnel alucinante com a mais grave crise sanitária em pelo menos um século. Uma crise verdadeiramente global, como é da natureza do nosso tempo de humanidade (contraditoriamente) unificada, mas que afeta cada uma das sociedades de maneira particular e quase única, a depender de fatores variadíssimos, como a demografia, a capacidade econômica ou a própria organização política.
“Escolhemos”
enfrentar o grande drama abrindo mão, quase inteiramente, de vantagens
preciosas, como a coesão social, a vontade democraticamente orientada para fins
de saúde pública e defesa econômica, a mobilização consciente dos recursos
científicos de que o País tradicionalmente dispunha e, certamente, ainda
dispõe. Este, afinal, é o país de Oswaldo Cruz, de Carlos Chagas e da plêiade
de médicos e gestores que ergueram, na redemocratização, o Sistema Único de
Saúde.
Por
decisão própria – e para espanto dos muitos amigos do Brasil em todo o mundo
que nos percebiam, às vezes ingenuamente, como uma das possibilidades mais
interessantes de criação de um soft power não só em escala regional, mas
global – nos encerramos, desde 2018, numa aventura em que cotidianamente se
conjugam, em doses colossais, atraso, fanatismo e irracionalismo.
Para
alguma tentativa de explicação será preciso talvez recorrer a mais do que ao
cansaço com a experiência do petismo no poder. Para remediar tal cansaço
existiam, e existem, remédios políticos adequados, como a crítica severa, a
tenaz construção de alternativas, a proposição de projetos concorrentes, mas
certamente não a convocação de alguns dos piores traços recessivos da nossa
formação como povo e como Estado nacional.
Uma
parte das elites econômicas pretendeu que valia a pena difundir massivamente a
mensagem do liberalismo extremado, associando-o ao fundamentalismo ideológico e
religioso. Um liberalismo assim entendido dificilmente se poderia associar a
qualquer ideia de “sociedade aberta”, como alguns chegaram a encenar,
soletrando um Karl Popper aprendido de orelha. Como era previsível, antes daria
origem a uma realidade atravessada por formações meramente reativas, entre elas
a do “politicamente incorreto”, que sustenta ações e palavras particularmente
cruéis em relação aos sujeitos socialmente “fracos”, negros, indígenas,
mulheres. E, horror dos horrores, em relação aos mortos da pandemia, o que faz
de nós um caso único de desprezo à vida e à dor humana no seu sentido mais
elementar.
De
fato, desequilibramo-nos, passamos a conviver com uma realidade anomalamente
povoada de sociopatas. Individual e coletivamente, ao perder o “centro”, nos
empobrecemos. Difunde-se em falas e documentos oficiais uma noção amputada de
liberdade, só pela qual, segundo alguns, valeria sacrificar a vida. A liberdade
que se proclama, com grau poucas vezes visto de irresponsabilidade, é aquela
destituída de impedimentos de qualquer natureza, dando a cada indivíduo a
possibilidade de se movimentar selvagemente entre outros indivíduos igualmente
livres de freios e obrigações. Exercer tal liberdade seria rebelar-se, quem
sabe com armas na mão, contra as limitações que nós mesmos livremente nos
damos, a exemplo das que são indicadas consensualmente há séculos em situações
de pestes e epidemias. Paradoxalmente, no entanto, a imposição de tal liberdade
anárquica e prepotente não dispensa a mão pesada do Estado nem a difusão de
bandos e milícias no corpo da sociedade civil.
O
preço do “descentramento” e mesmo das excentricidades a que assistimos,
bestificados, é de conhecimento geral: internamente, rompe-se o tecido social;
externamente, poucas vezes a imagem do País terá descido a níveis tão baixos.
Em meio a ruína ainda maior, intelectuais italianos de peso quiseram saber,
antes da retomada da democracia no pós-guerra, se os 20 anos de fascismo teriam
sido um “breve parêntese” ou, na verdade, a “autobiografia da nação”. Nós
também logo acordaremos do pesadelo, mas por muito tempo não escaparemos de
análogo exame da nossa História, tão marcada por “parênteses” autoritários,
que, caso tornem a se repetir, terminarão por definir a fisionomia de uma nação
recorrentemente enredada em terrores noturnos e medos infantis.
*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das ‘Obras’ de Gramsci no Brasil
Muito bom Luiz Sérgio . Sempre brilhante.
ResponderExcluirLuiz Sérgio Henriques, que é de uma coerência notável e uma das vozes que mais vale a pena ler e ouvir, tem registrado incansavelmente o caos em que estamos mergulhados como pessoas, como comunidade e como nação. Lamentavelmente, o "descentramento", o desgoverno, o retrocesso e a degradação do país estão claros para todo o mundo (literalmente), exceto para um bando de pessoas de mente curta e para os beneficiários da desorganização. São, todos, traidores da pátria e, sem exagero, da humanidade.
ResponderExcluirBrilhante o texto de Luiz Sérgio, parabéns
ResponderExcluirBrilhante texto de Luiz Sérgio, parabéns
ResponderExcluirParabéns e obrigada pelo texto .
ResponderExcluir