sábado, 3 de abril de 2021

Miguel Reale Júnior* - Aprendiz de feiticeiro

- O Estado de S. Paulo

Mais poder para quê? Para confrontos e mobilização com ‘seu’ exército? Não haverá!

Entre os motivos por que alertava para não se votar em Bolsonaro, eu ressaltava, nesta página de outubro de 2018, ser o candidato pessoa que não tivera ao longo da vida relações sociais ou políticas, sendo um outsider, sem densidade e compreensão da pluralidade própria do nosso mundo e para quem o Brasil, na sua complexidade, era visto como um quartel.

No quartel não há dissidentes ou debate livre entre membros de escalões diferentes, pois, como ensina o Manual de Campanha – Ordem Unida do Exército, 4.ª edição, 2019, as principais características de uma instituição militar são a disciplina e a coesão, entendida a disciplina como o predomínio da ordem e da obediência, sendo esta pronta, espontânea e entusiástica.

Bolsonaro, formatado na ordem unida, transformou o Ministério da Saúde num quartel, com ministro general e secretário executivo coronel, imperando o que haviam aprendido na caserna: disciplina, ou seja, um manda e o outro obedece às ordens superiores, com submissão cega às determinações do presidente Bolsonaro. Conclusão: nem no prédio do ministério se usavam máscaras.

Enquanto o presidente brincava de “marcha soldado”, milhares de brasileiros morriam. Mas quando chegou a três centenas de milhar, as elites políticas e econômicas resolveram dar um basta à brincadeira.

O repertório de encenações do pretenso mito está a se esgotar. Deu, então, uma cambalhota no palco presidencial para reafirmar sua autoridade. Tosco no plano político, sem traquejo na montagem de negociação, que presume ter-se fim preciso a ser alcançado e meios a serem negociados para chegar à meta, Bolsonaro imaginou que, abandonando seus correligionários originais e se unindo ao Centrão, estava garantido no poder para o que desse e viesse.

Como o aprendiz de feiticeiro, Bolsonaro desencadeou forças sobre as quais pensou ter controle, mas que o dominam. Como só conhece as regras da ordem unida, e não a arte da mudança de rumos e da aceitação de uma pluralidade de soluções, imaginou que teria à frente da Câmara e no Senado, em razão de seu apoio, dois outros Pazuellos.

Bolsonaro é presidente, mas sente que não mais governa, só administra crises e corre atrás do prejuízo. Diante do desastre sanitário gigantesco, o Centrão resolveu intervir no governo. Forçado pelos dirigentes das Casas do Congresso, Bolsonaro demitiu o ministro da Saúde, mas não seguiu a orientação de nomear médica de São Paulo, para desgosto em especial de Arthur Lira, que chegou a dizer serem os remédios do Parlamento amargos, podendo mesmo ser fatais.

Bolsonaro, em vista dessa pressão decorrente do número de mortos e do desespero da situação hospitalar, resolveu convocar os chefes dos Poderes para possível pacto, deixando, contudo, de convidar governadores, prefeitos e secretários da Saúde, contra os quais se voltou em posterior reunião do comitê, para culpá-los pelo desemprego decorrente das sabidamente necessárias medidas restritivas. O presidente do Senado, ao contrário, reuniu-se com governadores e deles recebeu várias sugestões.

Há evidente parlamentarismo branco. Os presidentes da Câmara e do Senado impuseram a saída do ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, cuja gestão fora desastrosa para o Itamaraty. Araújo pediu demissão, apesar de já demitido por Rodrigo Pacheco e Arthur Lira.

Tendo-se feito de surdos-mudos em meio à tormenta, na resistência, própria das vítimas de estelionato, a se reconhecerem enganadas, como o foram, por Bolsonaro, os agentes econômicos (Fiesp e Febraban) finalmente resolveram se juntar aos presidentes da Câmara e do Senado e tomar posição em face do presidente. Formou-se, então, um conjunto consistente de pressão sobre o governo.

Em reação, o presidente demitiu o Ministro da Defesa, que preservara as Forças Armadas como instituição de Estado, merecendo por isso o apoio dos comandantes das três Armas. No campo militar e nos ministérios da área jurídica, Bolsonaro tenta criar nichos de obediência, com ministros próximos à família, serviçais como Pazuello, a permitir-lhe até mesmo o devaneio do estado de sítio e de se afirmar como presidente.

A esquizofrenia se faz presente no governo: de um lado, caudatário do Centrão, entrega a Secretaria de Governo para inexpressiva deputada gerenciar emendas e cargos; de outro, temeroso da ingerência do Centrão, reforça com amigos a linha repressiva: delegado ligado à bancada da bala no Ministério da Justiça, o disciplinado André Mendonça na AGU e Braga Netto na Defesa. Com tal time e a possível mobilização de polícias militares pelo governo federal, concretiza-se o risco de caminho antidemocrático.

Pouca preocupação há em dotar o governo de capacidade gerencial ante a pandemia e a crise econômica que se avizinha: o que se quer é poder. E assim o aprendiz de feiticeiro tenta novos contorcionismos visando a sobrenadar no mar dos seus desatinos. Mas mais poder para quê? Para confrontos e mobilização nacional com o “seu” exército? Não haverá!

*Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça

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