sexta-feira, 30 de abril de 2021

Monica de Bolle - Cem dias

- Revista Época

Biden está resgatando o Estado indutor, mas com inovações interessantes e em sintonia com as necessidades do mundo pós-pandemia

Prestes a completar 100 dias — espécie de marco estabelecido na política americana que o Brasil recentemente decidiu importar —, há muito o que dizer sobre o governo de Joe Biden, e quero fazê-lo com lentes próprias, escrevendo a partir de minha própria experiência, como alguém que passou a maior parte da vida em Washington, D.C. Em particular, escrevo da ótica de quem viveu intensamente os anos disruptivos de Trump e tem convivido com a ruptura que tem se mostrado ser Joe Biden. Já não há estridência, tampouco a ansiedade causada pelo próximo terrível tuíte, ou mesmo os descalabros e suas relativizações. Talvez seja difícil para leitores brasileiros imaginarem o que é viver na paz relativa das democracias maduras, com desavenças, claro, mas sem balbúrdia e absurdos.

Para entender o atual momento político americano, penso que ajuda evitar análises-fetiches, como algumas produzidas por quem olha para o país do norte com lentes e foco sulistas, e fantasias sobre os Estados Unidos, que ocupam um lugar privilegiado no imaginário de diferentes grupos no Brasil contemporâneo. Os EUA nunca foram a terra prometida da iniciativa privada como pensam os liberais à brasileira. O Estado indutor sempre foi fundamental para a visão desenvolvimentista de longo prazo americana desde o século XIX. Biden está resgatando esse Estado indutor, mas com inovações interessantes e em sintonia com as necessidades do mundo pós-pandemia. Conjuntamente, o American Jobs Plan e o American Families Plan estabelecem o meio ambiente e a proteção social como pilares da política pública. Uma crítica pertinente é que faltou o pilar da saúde pública na inevitável reforma pela qual o sistema americano precisa passar. No entanto, a saúde pública na forma do combate à pandemia já é o grande legado do governo Biden, que conseguiu, em 100 dias, vacinar cerca de 200 milhões de pessoas com pelo menos uma dose de alguma das três vacinas em uso.

O American Jobs Plan é um plano de ações para investimento público voltado para a renovação da infraestrutura e a criação de emprego nos Estados Unidos. Criticado no Brasil por liberais à brasileira e interpretado por outros como algo a se pensar para o país do sul, está alinhado com necessidades dos Estados Unidos já identificadas há vários anos. O plano parte do pressuposto de que é preciso renovar a estrutura logística do país e reorientar setores para tratar adequadamente do meio ambiente, inclusive de questões relativas à descarbonização da economia. Aguardo a discussão sobre tributação de carbono, cujo projeto de lei já existe.

O American Families Plan, que a Casa Branca definiu como o plano de infraestrutura humana, destina recursos para as famílias mais pobres e para as de classe média por meio de renúncias fiscais, custeio de programas de cuidado infantil e facilitação do acesso à educação superior para os jovens provenientes de famílias de baixa renda. Também torna permanentes algumas iniciativas contidas no plano de combate à pandemia aprovado no início de 2021.

Trata-se de uma construção primordial de um Estado de Bem-Estar Social mais robusto, que tanto falta aos EUA, um país desenvolvido e profundamente desigual.

Os dois planos precisam agora ser aprovados pelo Congresso dos Estados Unidos. Juntos, eles custarão cerca de US$ 4 trilhões, o que pode causar medo e delírio na turma liberal à brasileira. Tal medo e delírio podem escalar ainda mais quando se considera que Biden já respondeu a pergunta “de onde vão vir os recursos?” assim: a alíquota de imposto de renda dos mais ricos vai subir de 37% para 39,6%, a tributação sobre ganhos de capital aumentará substancialmente, as renúncias fiscais para os investidores imobiliários — como o ex-presidente Trump — serão extintas, e as lacunas que permitem aos mais ricos pagarem menos tributos serão eliminadas.

Já vejo olhos revirarem a ponto de perigarem não mais voltar às órbitas. Mas trago conforto. Os Estados Unidos continuarão a ser o país emissor da moeda de reserva internacional mesmo que todo o planejado seja aprovado pelo Congresso, o que não será fácil. O privilégio exorbitante que resulta de ser o emissor da moeda de reserva permanecerá intacto. E a inflação? Talvez chegue a 3% ou 4%. Talvez não. Isso realmente importa? Desconfio que, no mundo de hoje, não o do século passado, a resposta seja não. Só desconfio.

*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins

 

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