sábado, 10 de abril de 2021

Poesia | Charles Baudelaire - O Cisne

"Andrômaca, só penso em ti! O fio d'água
Soturno e pobre espelho onde esplendeu outrora
De tua solidão de viúva a imensa mágoa,
Este mendaz Simeonte em que teu pranto aflora,

Fecundou-me de súbito a fértil memória,
Quando eu cruzava a passo o novo Carrossel.
Foi-se a velha Paris (de uma cidade a história
Depressa muda mais que um coração infiel);

Só na lembrança vejo esse campo de tendas,
Capitéis e cornijas de esboço indeciso,
A relva, os pedregulhos com musgo nas fendas,
E a miuçalha a brilhar nos ladrilhos do piso.

(...)

Andrômaca, às carícias do esposo arrancada,
De Pirro a escrava, gado vil, trapo terreno,
Ao pé de ermo sepulcro em êxtase curvada,
Triste viúva de Heitor e, após, mulher de Heleno!

E penso nessa negra, enferma e emagrecida,
Pés sob a lama, procurando, o olhar febril,
Os velhos coqueirais de uma África esquecida
Por detrás das muralhas do nevoeiro hostil;

Em alguém que perdeu o que o tempo não traz
Nunca mais, nunca mais! nos que mamam da Dor
E das lágrimas bebem qual loba voraz!
Nos órfãos que definham mais do que uma flor!

Assim, a alma exilada à sombra de uma faia,
Uma lembrança antiga me ressoa infinda!
Penso em marujos esquecidos numa praia,
Nos párias, nos galés... e em outros mais ainda!"

Dedicado a Victor Hugo.

(in: As Flores do Mal. Poesia e Prosa Poética, edição organizada por Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995. p.172-174)

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