sexta-feira, 23 de abril de 2021

Ricardo Abramovay* - O liberalismo miliciano de pires na mão em Washington

- Folha de S. Paulo

Querem legitimar atividades destrutivas como virtudes do empreendedorismo

Tontura, olhos pesados, sono profundo —e você só acorda no dia seguinte. Aí percebe que está num mundo novo. Não é mais possível qualquer atividade que conduza à emissão de gases de efeito estufa.

O cidadão norte-americano, canadense ou chinês não pode tirar o carro da garagem. Luz elétrica ou internet, só algumas poucas horas por dia, já que a matriz energética desses países (e da maior parte dos outros) depende da queima de combustíveis fósseis. Se a vida não parar, o colapso do sistema climático, as secas, os incêndios, os furacões e a subida no nível do mar vão se tornar ainda mais destrutivos.

pandemia de Covid-19 ofereceu uma versão suave desse cenário apocalíptico. Em média, durante 2020, as emissões de gases de efeito estufa tiveram, globalmente, retração inédita de 7%. Tal declínio só foi alcançado com uma redução brutal das atividades econômicas e da interação social.

O ritmo de queda da dependência humana dos combustíveis fósseis é muito mais lento do que o necessário para evitar a intensificação dos eventos climáticos extremos. Por isso, Estados Unidos e União Europeia comprometem-se a reduzir pela metade suas emissões nos próximos dez anos. E, claro, não querem fazer isso paralisando a vida econômica.

O caminho, então, é duplo: em primeiro lugar, enfrentar interesses poderosos que ajudam a perenizar nossa dependência dos combustíveis fósseis. O mais importante, porém, é que essas metas só serão alcançadas caso melhorem muito as tecnologias ligadas às energias renováveis modernas, e sua armazenagem, para contrabalançar a intermitência da solar e da eólica.

Nos EUA serão introduzidos 50 milhões de automóveis elétricos e 3 milhões de pontos de abastecimento dos veículos com energia elétrica até 2030. A siderurgia, a produção de cimento e outros setores altamente dependentes de emissões terão que ser transformados, e muito rapidamente. A agropecuária também terá que emitir muito menos que hoje.

São transformações que vão exigir investimentos altíssimos, mudanças de hábitos, novos padrões de produção e de consumo. E tudo isso só será possível se a ciência avançar e abrir caminho a tecnologias que tornem viáveis esses novos padrões. Em outras palavras, o que os especialistas chamam de “descarbonização profunda (que terá de ocorrer nos próximos dez anos) atinge diretamente a vida cotidiana dos cidadãos e a oferta de bens e serviços. Tudo isso supõe pesquisa de ponta.

E nós? O dado mais importante para a reunião climática, convocada pelo presidente Joe Biden, é que, entre os dez maiores emissores globais, o Brasil é hoje o único (junto com a Indonésia) em que quase metade das emissões de gases de efeito estufa vem do desmatamento. Ora, zerar o desmatamento não depende de ciência e tecnologia, não exige novos hábitos —nem de produção nem de consumo.

Se você é o cidadão que caiu em sono profundo e acordou num mundo de desmatamento zero, sua comida não ficará mais cara, seus hábitos de consumo não serão modificados nem serão necessárias transformações estruturais na vida econômica e social de seu país. Haverá, é verdade, alguma redução na renda gerada pelo desmatamento, vinculada frequentemente a trabalho escravo e à menor compra de equipamentos para a ocupação de áreas públicas, invasão de terras indígenas e para a mineração ilegal.

Hoje, se o desmatamento cresce e se o governo federal tenta fazer crer ao mundo que zerar a destruição é tão difícil quanto descarbonizar a matriz dos transportes e da energia, isso se deve a uma razão: a retórica e a prática do Planalto e da Esplanada dos Ministérios tentam legitimar uma espécie de liberalismo miliciano em que atividades sabidamente criminosas e destrutivas buscam aparecer como se fossem a expressão máxima das virtudes do empreendedorismo.

É essa gente, que depende politicamente da apologia ao crime e da tentativa de sua legalização, que vai agora alegremente a Washington de pires na mão. E voltarão de mãos abanando, dizendo, ferozes, que os outros fazem pouco para combater a crise climática.

*Professor sênior do Instituto de Energia e Ambiente da USP, é autor de ‘Amazônia - Por uma economia do conhecimento da natureza’ (ed. Elefante)

 

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