terça-feira, 4 de maio de 2021

Carlos Andreazza - O caso Pfizer e as mentiras do governo

- O Globo

A nova versão influente do governo Bolsonaro para se lavar da responsabilidade por não haver contratado a vacina Pfizer em agosto/setembro de 2020 é alegar que inexistia legislação — naquela época — capaz de cobrir a operação. É falso. Mais uma distorção num conjunto de mentiras que pretendeu desqualificar o imunizante — e o próprio valor da imunização.

A primeira mentira: as doses daquele laboratório demandariam uma rede de refrigeração impeditiva. A segunda: a contratação dessa vacina, antes do aval da Anvisa, como se alguém fosse aplicá-la sem a certificação sanitária, colocaria em risco a integridade do brasileiro — o levaria a se tornar jacaré. Lembremo-nos: sem aprovação da agência reguladora, o Ministério da Saúde contrataria, meses depois, os imunizantes Sputnik V e Covaxin. A terceira: a oferta da Pfizer seria modesta. A oferta: 3 milhões de doses até março de 2021, metade das quais a serem entregues já em dezembro do ano passado — volume que, segundo Pazuello, frustraria a população. Lembremo-nos: a malta que argumentara assim comemorou, no final da semana passada, a entrega de 1 milhão de doses dessa mesma vacina.

No curso dessa sucessão de embustes, registre-se, o governo — o presidente se dizia incomodado com alguns termos do contrato — jamais falou na necessidade de uma lei específica destinada a equacionar o que seria um problema. Nada. O Planalto apontava um suposto impasse formal. E nada propunha como saída. Ou poderia ter remetido um projeto em regime de urgência ao Parlamento; né? No entanto: nada.

E então a lei. Diante da crise, o presidente do Senado se reuniria com a Pfizer, colheria dados e formularia o que seria a Lei 14.125/21. Iniciativa do Congresso exclusivamente. Uma lei desnecessária, contudo. Como lei, para o que produz uma lei: desnecessária. Explico. Uma aquisição pública emergencial de vacinas, em meio a uma pandemia e sob a natureza calamitosa do período, ajusta-se às especificidades do que é, afinal, um mercado internacional, ademais tocado em circunstâncias excepcionais; de modo que caberia ao governo justificar a admissão da cláusula considerada excessiva como condição para transitar competitivamente, em nome do interesse do cidadão, no comércio mundial de imunizantes. Seria a Constituição Federal a se sobrepor. O próprio direito à saúde. Um direito fundamental cuja imposição — acima da existência de qualquer lei — deriva diretamente do texto constitucional.

A lei era desnecessária. Porém, vá lá, um governo que fosse genuinamente preocupado, ainda que mal assessorado juridicamente, poderia — uma vez inseguro, e dada a demanda urgente por vacinas — encaminhar e liderar a solução por meio de simples medida provisória; uma como essas tantas que edita para, por exemplo, facilitar a vida de grileiros. Nada fez.

A lei era desnecessária. Repito. O governo poderia ter firmado contrato com a farmacêutica no ano passado. Não quis. Preferiu desacreditar a cultura vacinal e investir na farsa do tratamento precoce. E só se converteu em vacinador convicto ante a imposição do mundo real no corpo da impopularidade crescente. A lei era desnecessária, mas teve um mérito político. Uma lei supérflua atuando como vara no lombo do Planalto. A iniciativa do Senado desamarrou, desnudou politicamente, as desculpas de Bolsonaro. Não haveria mais como rebolar para não assinar. Assinou-se. (Uma lei que deu respaldo para que o valente Bolsonaro se deixasse abusar pelas cláusulas escorchantes da Pfizer. Sei...)

Por outro lado: a lei desnecessária, que teve aquele mérito, desmontar as desculpas do governo, viraria desculpa ela mesma na mão dos narradores bolsonaristas. É onde estamos. Acossado pela CPI, o governo se escora na lei — a prova de que, mui responsável, não poderia ter contratado a Pfizer em 2020. Mentira.

Importante: os governistas alegam que haveria pareceres da AGU e da CGU contrários ao contrato com a Pfizer. Sim. Documentos datados, ambos, de 3 de março — curiosamente, um dia depois da aprovação da lei no Congresso. Uma mente maldosa poderia pensar mal dos órgãos, que teriam — sei que jamais o fariam — produzido pareceres para esquentar o discurso bolsonarista, como se o governo, de súbito zeloso e proativo, tivesse contribuído para a solução legislativa que, na verdade, o botou contra a parede, mas cuja onda ora surfa. AGU e CGU nunca fariam isso — insisto. Os pareceres, entretanto, estão na boca dos milicianos.

Os pareceres vieram tardiamente, incapazes de controlar os dois pesos e duas medidas do governo. Que, escudando-se na Fiocruz, importou — antes da lei, em janeiro de 2021, na correria improvisada para tentar competir com a primazia da CoronaVac — doses prontas do imunizante fabricado pela AstraZeneca. Doses prontas — não para ser envasadas aqui. Adquiridas ao instituto indiano Serum. Compra direta, importação pura — feita sob os mesmos “riscos” que haveria na aquisição junto à Pfizer. Nada a ver com o acordo para transferência de tecnologia pactuado com a AstraZeneca; cujo contrato, diga-se, ainda não foi assinado — sendo fato que a tão esperada produção autônoma pela Fiocruz, essa joia do Brasil, já vai com o calendário comprometido.

Aliás: o que há para que esse contrato — tão usado como propaganda — ainda não tenha sido firmado?

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