sexta-feira, 28 de maio de 2021

César Felício - Uma ideia nefasta

- Valor Econômico

“Voto auditável” é armadilha para contestar eleições

A discussão hoje da impressão do voto, como instrumento para auditar a urna eletrônica, está muito longe de ser apenas uma ideia ruim, como era antes. A proposta impulsionada pela ala bolsonarista do PSL, com a adesão de uma ou outra liderança de esquerda e abençoada pelo presidente da Câmara, Arthur Lira, tornou-se agora a maior ameaça potencial ao sistema democrático no país.

O que a Câmara está discutindo não é a volta do voto em cédula. Se fosse isso, seria um retrocesso, mas ainda assim muito melhor do que o que está posto em debate. O voto em cédula é um mecanismo de consulta popular altamente vulnerável a fraudes, mas que, com amadurecimento institucional e o desenvolvimento de ferramenta de controles, é aceito em diversas partes do mundo.

A emenda constitucional em discussão prevê a instalação de uma impressora acoplada à urna eletrônica que, em tese, permitiria ao eleitor conferir se o seu voto está sendo computado corretamente. Em seguida, o papel seria picotado e cairia automaticamente em um recipiente. O mecanismo permitiria que uma seção eleitoral fosse auditada. Se a sistematização dos votos na urna eleitoral for diferente dos votos impressos no recipiente físico, estaria visualizado o buraco na armadura.

Não é preciso muito esforço para desconstruir essa ideia. O sistema para auditar o voto com a impressão significa o seguinte: o modelo mais seguro, que é o que está blindado contra qualquer interferência humana e em relação ao qual nunca houve evidência de fraude, passaria a ser controlado pelo modelo menos seguro.

Em uma “live” do site “Jota”, a deputada Margarete Coelho (PP-PI) sintetizou o perigo: “Onde estes recibos da votação vão ser armazenados? Vão todos para um galpão? Quem vai manuseá-los? De que forma? Basta sumir uma impressão, uma única que seja, acabou a eleição. Processo eleitoral é jogo de poder, e o jogo do poder é bruto”, sintetizou. O histórico das eleições no Brasil dispensa comentários sobre a probabilidade de alguma força política manipular os recibos para melar todo o processo.

Para o advogado Diogo Rais, professor de direito eleitoral da Universidade Mackenzie, talvez essa seja a ideia: arrumar um mecanismo para impugnar as eleições. “Fabrica-se uma atmosfera de incerteza e insegurança para deslegitimar a eleição”, comentou. Seria a reedição aperfeiçoada da canhestra tentativa de Donald Trump de levar no grito a eleição de 2016 nos Estados Unidos.

A impressão do voto seria, portanto, uma espécie de cavalo de Troia. Para fraudar o sistema eletrônico é necessária uma operação de terrorismo cibernético. Para fraudar a votação impressa, os descaminhos já são bem conhecidos e consagrados pelo uso.

Propostas de voto impresso já foram aprovadas pelo Congresso anteriormente, é razoável supor que a emenda que prevê este instrumento conte com boas chances de aprovação no Legislativo. Se isso acontecer, há crise institucional pela frente.

O Tribunal Superior Eleitoral estará sob a presidência do ministro Luís Roberto Barroso até março do próximo ano. Por alguns meses, a corte será presidida por Edson Fachin. E em setembro assume o TSE o ministro Alexandre Moraes.

Barroso, Fachin e Moraes têm traços em comum: não se intimidam em entrar em confrontos com outros Poderes, se entenderem necessário.

Rais aponta que há um caminho para se aplicar o mecanismo de cláusula pétrea em relação ao sistema de voto brasileiro.

O artigo 60 da Constituição, em seu parágrafo 4º, inciso II, estabelece o seguinte: não pode ser objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir “o voto direto, secreto, universal e periódico”. A menção ao sigilo do voto é uma brecha que se abre, portanto, para se considerar que a impressão viola um princípio imutável na Constituição. Por que a partir da criação de um registro por escrito do que se fez na cabine indevassável, pode-se argumentar que o dispositivo está sendo desrespeitado. Não é inédita a situação do Supremo Tribunal Federal, que atua em sintonia com o TSE, declarar inconstitucional uma emenda constitucional.

Haverá uma crise contratada com o Judiciário. Não será a única: certamente será judicializado o decreto que o presidente Bolsonaro estuda assinar regulamentando o marco civil da Internet, a se confirmar o teor já vazado em minutas que circularam por Brasília. Em síntese, o decreto irá concentrar o controle de moderação de conteúdo na internet para o Estado, o que é um disparate. Se os dois movimentos cursarem de modo simultâneo, a turbulência no processo eleitoral será certa.

CPI

A CPI da Covid é a primeira transmitida simultaneamen- te por TV e “streaming” em muitas de suas sessões. É uma CPI que pegou, atraiu a opinião popular, está sendo acompanhada por pessoas que não são aficcionadas por política. Compreende-se agora porque o governo temia sua instalação. Não há como evitar o desgaste da imagem presidencial. Desconte-se o depoente que lá esteve disposto a atacar o governo, no caso Mandetta, ou os que por mentiras, omissões e manobras evasivas tentaram defendê-lo, como Pazuello, Wajngarten, Mayra Pinheiro e Marcelo Queiroga.

Calaram mais fundo nos espectadores comuns os depoimentos de caráter mais técnico, como o do representante da Pfizer, o do presidente da Anvisa e por último, ontem, o do diretor do Butantan. São depoentes que aparentam estar fora do jogo político e que, carregados de credibilidade, deixam claro que o governo federal não tomou decisões por critérios científicos e, no mínimo, foi negligente na questão das vacinas.

Uma CPI com essas características produz suas celebridades. O senador Marcos Rogério exerce protagonismo na tropa de choque de governo. Incisivo nos depoimentos, articulado, deve ganhar pontos entre os aliados incondicionais do presidente. O gaúcho Luis Carlos Heinze é o grande reciclador de narrativas duvidosas com trânsito nas redes sociais. Pode se fortalecer na extrema-direita negacionista. O carnaval da tropa de choque em torno da cloroquina tem seu propósito: exorciza a desídia do presidente contra a pandemia. Ao se apresentar a cloroquina como uma tentativa válida, significa que ao menos Bolsonaro tentou.

No outro espectro, ganham destaque Otto Alencar, sempre hábil em explorar a sua formação em medicina e Omar Aziz, que aparenta dureza mesmo quando cede à pressão dos governistas.

O que não se pode esperar é o que essa CPI não tem como entregar. Não há, ali, elementos que permitam antever dificuldades para Bolsonaro permanecer no poder.

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