Ele
cita a empregada da família uma segunda vez perto do fim do volume, em um
parágrafo em que também são lembrados o sociólogo Florestan Fernandes, o
professor que mais o influenciou na USP, e o deputado Ulysses Guimarães, que
liderou o antigo PMDB na oposição à ditadura
militar (1964-1985) .
"São pessoas que todos conhecem", diz Fernando Henrique, que
completará 90 anos em 18 de junho. "Mas existem aquelas que ninguém
conhece que também tiveram muita importância." Alzira entrou no livro
como coadjuvante, mas saiu como símbolo dos que acompanharam à margem a
trajetória do seu autor.
Professor de sociologia na USP até
ser aposentado pelo regime militar, FHC dedicou seus primeiros estudos
acadêmicos à escravidão e às cicatrizes que ela deixou na sociedade
brasileira. Exilado e trabalhando na Cepal (Comissão Econômica para a América
Latina e o Caribe), da Organização das Nações Unidas, apontou a integração com
as economias mais avançadas como caminho
para o desenvolvimento do Brasil e de seus vizinhos.
Nesta entrevista, em que discute os
principais temas do novo livro, o ex-presidente afirma que o Brasil não soube
aproveitar as chances oferecidas pela globalização tão bem quanto outras
nações, como a China, e lamenta que o país tenha se acomodado diante dos
elevados índices de pobreza
e desigualdade que marcam a sociedade brasileira.
Revendo
o seu percurso no livro, é fácil perceber como sua obra acadêmica iluminou o
entendimento de alguns problemas do país e orientou sua ação política no
passado. De que forma ela ainda pode contribuir para enfrentar os problemas
do presente?
Nunca perdi meus laços com a academia. Minha formação sempre me
obrigou a ter uma certa objetividade, o que me ajudou na política, mas também
atrapalhou. Na política, é preciso mergulhar de cabeça. E tenho dificuldade
de mergulhar, porque fico pensando nas alternativas e no que está errado.
O mundo mudou, obviamente. Nasci em
1931, em um país que era basicamente rural. Mudei do Rio para São Paulo em
1940. Foi um choque para mim. São Paulo já era uma cidade industrial, mas
você olhava em volta e as ruas não tinham calçamento. Uma coisa que eu nunca
tinha visto no Rio.
O Brasil tinha crença nesses anos, e
o que talvez nos falte hoje é acreditar no futuro. Somos agora um país
integrado ao mundo. Temos, portanto, os problemas do mundo, além dos
decorrentes do nosso atraso. Não é fácil. Nossa política reflete um pouco
essa dualidade que há no país.
Hoje temos um presidente
que não parece sofisticado , mas ele capta um pouco essa
vulgaridade. É uma palavra forte, mas é algo que tem peso nas coisas do
Brasil. Uma pessoa com a formação intelectual como a que eu tive tem mais
dificuldade de se ajustar ao mundo das pessoas.
Nunca fui uma pessoa difícil para se
relacionar. Pensam que eu sou metido a besta, mas sou mais simples do que
parece. Mas como é que você vai fazer a síntese do Brasil de hoje? Não é
fácil.
No
livro, o sr. diz que a grande obra da sua geração foi a redemocratização após
o regime militar . A ditadura acabou, e o país
ganhou uma nova Constituição, mas muita gente acha que esse processo de certa
forma ainda não se completou. Concorda?
O Brasil não é fácil de entender. Dá impressão de ser uma geleia
geral. A sociedade mudou rápido, e agora parece um pouco paralisada, ou
sedimentada. Nosso sistema partidário é muito pulverizado. Mas temos
liberdade, e a gente só dá valor à liberdade quando ela acaba.
Não dá para imaginar que não se
tenha um sistema político que corresponda às aspirações populares. Bem ou
mal, na hora da eleição todos votam, mas democracia não é só isso. Tem o
sistema judiciário, o Parlamento, a imprensa, os partidos. Embora às vezes
haja ímpetos autoritários de um ou de outro, nosso regime não é autoritário.
Você tem liberdade, tem recursos, instituições que funcionam.
O desgaste que essas instituições têm sofrido no governo
Jair Bolsonaro corrói a confiança que as pessoas depositaram nelas?
Pode ser. Na democracia, você tem que estar sempre com o olho na
liberdade, nas instituições, naquilo que se organiza, que garante a
alternância no poder. Se você não toma cuidado, vira outra coisa. O regime
político nunca é dado para sempre. Bem ou mal, conseguimos construir uma base
institucional razoável para a democracia. Pode se perder? Pode. Mas está
perdida? Não.
O
aumento da presença de militares em postos-chave do governo representa um
risco?
Você tem gente competente nas Forças
Armadas , e eles aderiram ao sistema democrático. Isso pode mudar?
Pode. Todos nós podemos mudar de uma hora para outra. Mas não acho que exista
um risco de militarização.
Tem muito militar no governo porque
o presidente, além da origem no Exército, tem pouco contato com o resto da
sociedade. Ele conhece esse pessoal, foram seus colegas na escola militar,
ele tem mais naturalidade com eles. O risco é acabar perdendo a capacidade de
falar com os civis.
Mas não creio que exista no meio
militar hoje uma vocação para fechar as instituições. Conheço um ou outro.
São pessoas de cabeça normal, criadas com valores democráticos. Não atribuo
ao presidente
Bolsonaro o propósito de fazer aqui uma ditadura militar.
Meu pai era general, meu avô era
marechal. Os militares, no passado, eram um partido político. Derrubavam
governos. Agora não. Eles aceitam o resultado da vontade popular, aceitam
a institucionalidade . O que não quer dizer que você não tenha que
cuidar o tempo todo.
O
sr. revisita mais uma vez seu trabalho sobre a teoria da dependência, em
especial o livro escrito com o chileno Enzo Faletto. Acha que a obra foi mal
compreendida?
Ela foi exageradamente compreendida. O objetivo do trabalho era
fazer uma crítica às teses
da Cepal sobre o desenvolvimento econômico, chamando atenção
para aspectos que não eram tomados em conta, como as instituições, a
democracia e as diferenças na estrutura econômica dos países.
Muitos pensavam na época que éramos
todos dependentes e continuaríamos sendo, a menos que viesse o socialismo.
Nunca foi a nossa visão. Não era automático que passaríamos da dependência
para o socialismo. Nem haveria, como não existe hoje, uma independência
completa.
Muitos leram nosso livro como se
fosse um manifesto terceiro-mundista, mas ele nunca foi isso. Queríamos que
os países tivessem o máximo de autonomia que pudessem, mas no contexto da
globalização, que ainda não tinha esse nome e estávamos descobrindo.
Acha
que o Brasil aproveitou bem as oportunidades oferecidas pelo processo de
globalização, ou perdemos esse bonde enquanto outros países aproveitaram
melhor as chances que tiveram?
A China aproveitou melhor. Entenderam a importância da
tecnologia, deram muita atenção à ciência, à educação. No Brasil, as coisas
se deram como se os ganhos viessem de barato, mas não era assim. Tinha que
fazer mais esforço.
O Brasil está situado em uma região
do mundo em que temos um peso grande e por isso ficamos, talvez, confortáveis
demais na nossa cadeira. Teria sido melhor se tivéssemos um pouco mais de
necessidade de competir, nos termos do futuro.
Nós aqui aceitamos muito a
marginalização de pessoas e grupos sociais. Não incluímos essa gente. Então
temos ainda uma agenda mais complicada do que a dos países que conseguiram
incluir. Os chineses perceberam, com mais rapidez do que outros povos, e se
ajeitaram.
Ainda temos aqui problemas que não
se justificam, porque a desigualdade de renda no Brasil é muito acentuada.
Além do que seria razoável, mesmo para um país capitalista. E acho que tem
uma coisa mais grave do que isso, ou tão grave quanto. Nós naturalizamos a
pobreza.
Tivemos um grande avanço
na educação primária e com a criação do Sistema Único de
Saúde, mas precisamos também de empregos para quem tem só esse nível de
conhecimento.
Os danos causados pela
pandemia serão duradouros?
Não acho que o Brasil vá ficar paralisado quando isso terminar.
O país levou um susto, claro, todo o mundo leva, mas tem capacidade de
recuperação. Teremos momentos difíceis. Todo o mundo está com medo agora.
Medo de morrer, principalmente. Mas você não tem trabalho também, e a renda
diminuiu.
Depois da pandemia, teremos uma
agitação grande. As pessoas vão querer espaço. E precisaremos de governos
capazes de entender a realidade, que não fechem os olhos à realidade. O
Brasil tem muitas bolhas, mas não dá para governar numa bolha.
Por
muito tempo, em especial a partir do seu governo, houve a crença de que
reformas e uma maior integração econômica permitiriam reduzir de forma mais
expressiva as nossas desigualdades. Por que isso não aconteceu?
Não foi só aqui. Muitas vezes os países crescem e você deixa de
olhar os que ficaram para trás. Agora, quando é que você olha os que estão
para trás? Quando eles reclamam. Quando não havia liberdade, era mais difícil
perceber. Quando há liberdade, eles reclamam. É assim no Brasil também.
Em São Paulo, eu morei em uma região
próxima de onde estavam as fábricas da família Matarazzo. Na hora do almoço,
os operários comiam na calçada, com as marmitas que traziam de casa. Quando
passava um engravatado, abriam espaço para o sujeito passar. Hoje, duvido que
abrissem espaço.
Porque hoje essas pessoas existem.
Quem está por cima não olha para baixo. A não ser que o de baixo machuque o
pé de quem está em cima. É chato isso, mas é necessário. Quando o dominado
começa a se movimentar é que você percebe. Nada vem de graça na vida, na
sociedade.
O
sr. dedicou boa parte de sua vida acadêmica ao estudo da escravidão e recorda
no novo livro a babá da sua infância, filha de uma ex-escrava de seu bisavô.
O que ela representa para o sr. hoje?
Na casa do meu pai, Alzira comia na mesa conosco. Isso não era
comum na época. Ela era quase branca. Mas o habitual era uma coisa mais
discriminatória. Nesse tempo, as famílias tradicionais tinham muitos agregados,
e Alzira sentava na nossa mesa. Na minha avó, não.
Então ela simbolizou para mim tanto
a escravidão como a necessidade de tomar consciência de que os negros não
eram mais escravos. Eles têm liberdade, e você tem que tratá-los como iguais.
É fácil falar e dificílimo fazer. Você sentir o outro como igual.
As famílias tradicionais eram assim.
Quer dizer, tinha muita empregada, era fácil, era barato. Viviam mal as
empregadas. Eu nem percebia, não notava. Isso mudou completamente. Nós aqui
nascemos com a ideia de que ter empregada é eterno. Não é. Cada um vai ter
que cuidar de si.
Como
o sr. vê as formulações teóricas mais recentes sobre a questão racial no
Brasil, como o conceito de racismo estrutural?
A sociedade está melhorando, está avançando, está reconhecendo o
outro, independentemente da posição social. Agora, isso é fácil de falar, mas
quando você tem posição de mando, é complicado.
O racismo
estrutural existe. Vem da escravidão e está enraizado. Os
estrangeiros que vieram para cá, que não conviveram com a nossa escravidão,
sentiram isso também. Mas também existe hoje um sentimento de
autossuficiência da parte dos negros, a valorização da cor, da religião, do
seu modo de viver.
Então acho que as coisas melhoraram,
no sentido de que o mundo atual permite mais convivência. Quando não tem
convivência, você vê o outro como estrangeiro. Quando você está ao lado,
percebe a humanidade da pessoa, se você for minimamente aberto. Acho que isso
melhorou no Brasil.
Há espaço para aprofundar políticas afirmativas como as cotas para acesso à
universidade pública ?
Sou favorável às cotas. Acho que foram benéficas, porque levam à
convivência e ao respeito ao outro e dão uma certa garantia para aqueles que
eram discriminados. Você já vê, mesmo em restaurantes melhores, pessoas
negras com mais frequência. Eu acho isso um sinal positivo.
Tem que melhorar mais? Tem. Pode.
Mas melhoraram. E isso em parte porque houve luta para que melhorasse. Sem
luta, nada acontece. Tem que haver sempre quem reclame. Eu não sou do tipo de
reclamar, porque nunca precisei reclamar muito. Mas quem precisa tem de
reclamar.
Como
tem sido sua rotina na pandemia?
Durmo oito horas por dia. Levanto, tomo café, leio jornais,
venho para o computador e começo a trabalhar. Paro, almoço, durmo depois um
pouquinho. Vejo os amigos que moram perto, ando pelo bairro. Mas é chato. É
uma vida pobre, esse semi-isolamento em que somos obrigados a viver.
Eu não tenho medo de morrer, nem de
pegar o coronavírus. Tomei a vacina e tomo cuidados, por causa dos outros,
mas não fico preocupado com esse negócio. Está chato.
TRECHOS DO LIVRO
Exílio
em 1964 "No avião,
chorei baixinho; não entendia por que eu. Por que comigo? Estava mais
interessado na tese e em ocupar uma cátedra [na USP] do que em apoiar João
Goulart ou 'as esquerdas'."
Maio de 1968 na
França "Os
operários haviam sido convidados a entrar [na universidade de Nanterre] e
assistiam, com certo pasmo, as discussões nas quais se falava de amor, de
solidariedade, da cultura, mas nada sobre salários."
Teoria
da dependência "Critiquei,
às vezes duramente, os que acreditavam na inviabilidade do crescimento do
capitalismo na região latino-americana e viam, por todo lado, o aumento das
populações marginais. Não que estas inexistissem, mas eu julgava que não
seriam empecilhos para que alguns países da região se
industrializassem."
Assembleia
Nacional Constituinte "As discussões apaixonantes sobre o sistema de governo e
mesmo sobre as regras para a formação de partidos passavam longe de algumas
das questões sociais, como, por exemplo, as relativas aos preconceitos de cor
(supunha-se fossemos uma democracia racial), ou ao desemprego. Mesmo nas
econômicas, primava o interesse nacional, camuflando as questões da
desigualdade de rendas. Era como se, havendo crescimento da economia e
manutenção da democracia, a sociedade e também a política mudariam sem haver
necessidade de que essas questões se colocassem."
Candidatura
presidencial em 1994 "Lula estava crescendo e alguém tinha que enfrentá-lo. O PT
criticava duramente o Plano Real, a eleição de Lula parecia ser um risco de
retrocesso. Foi por isso que aceitei ser candidato. Não era uma aspiração
minha, pelo menos consciente. Pode ser que no fundo eu quisesse, não
sei."
Tucanos
e petistas "Não
é apenas a extrema direita que se perde em sua própria intolerância e
negacionismo. Lula e o PT cometeram o erro estratégico de considerar o PSDB
como seu principal inimigo. Não
éramos, nunca fomos. A principal ameaça à democracia era e é
a extrema direita autoritária e regressiva."
Bolsonaro
no poder "Enganam-se
os que pensam que 'o
fascismo ' venceu. Enganam-se tanto quanto os que vêm o 'comunismo'
por todos os lados. Essa polarização não existe mais no mundo real, apenas na
mente dos que acreditam nos delírios que propagam."
UM INTELECTUAL NA
POLÍTICA: MEMÓRIAS
Preço R$ 69,90. 432 págs.
Autor Fernando Henrique Cardoso
Editora Companhia das Letras
Análise clara e coerente de um estadista que ama o Brasil.
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