sábado, 29 de maio de 2021

George Gurgel de Oliveira* - Brasil (in)sustentável: a luta pela libertação e a realidade atual da população negra no Brasil

No mês da consciência negra, é fundamental para o presente e o futuro da sociedade brasileira o debate sobre a história da escravidão e a realidade da população negra, hoje no Brasil.

Saber como se desenvolveu e os fundamentos da escravidão no Brasil, o processo de libertação da escravatura até à atualidade, são desafios para avançarmos e superarmos a difícil realidade que vive a população negra ainda hoje no Brasil.

As lutas de libertação e a abolição da escravatura 

O Abolicionismo foi um movimento político iluminista e consolidou-se como uma das formas mais representativas dos movimentos políticos, no século XIX, que tinha como objetivo a abolição da escravatura e do comércio de escravos africanos. No Brasil, eram pessoas ou organizações que defendiam o fim da escravidão.

As leis abolicionistas, decretadas entre 1850 e 1888, refletiam os conflitos e as contradições do período monárquico frente à pressão dos abolicionistas e das lutas dos negros  organizados que resistiram  e se organizavam nos quilombos, desde o início da escravidão no Brasil, no final do século XVI.

A abolição da escravatura no Brasil, em 13 de maio de 1988, assinada pela princesa Isabel, foi fruto das mudanças que já vinham acontecendo na sociedade brasileira, pressionada pelas transformações políticas, econômicas e sociais que aconteciam na Europa, na própria América, a exemplo do movimento de libertação dos escravos no Haiti, que foi fundamental na proclamação da República naquele pais. A libertação dos escravos aqui atendia aos interesses da Inglaterra em plena industrialização, que necessitava de novos mercados fora da Europa para consolidar a sua hegemonia no cenário internacional. 

A escravidão negra na América já tinha precedentes: com a chegada de Cristovão Colombo ao nosso continente, em 1492, iniciou-se o massacre e escravização de todas as populações indígenas, inclusive no Brasil.

Até à chegada da corte portuguesa ao território brasileiro, no inicio do século XIX, os colonizadores portugueses mataram, a cada 100 anos, cerca de 1 milhão de indígenas através de guerras de extermínio, assim como de doenças e enfermidades trazidas com a colonização europeia. Dos 4 milhões de índios, na chegada de Pedro Álvares Cabral, a população indígena foi reduzida a menos de 1 milhão de pessoas, no início do século XIX, quando a família real aqui chegou.

Assim, a escravidão indígena já existia no Brasil, antes da escravidão negra, inclusive os prisioneiros de guerra trabalhavam como escravos para as tribos vencedoras. No entanto, não existia como na África, como mercado organizado, desde o século XV, como mercadoria de valor de uso e de troca, gerando riquezas fabulosas durante séculos.

A existência anterior da escravidão na história da humanidade, inclusive a escravidão de brancos e de indígenas, não traz relatos de sofrimentos e de perdas tão significativas e duradouras como a dos povos africanos, realidade que nos agride como humanidade até à atualidade.

A escravidão africana, até meados do século XIX, era um dos fundamentos  da vida econômica na América. Fazia parte da estrutura das relações políticas, econômicas e sociais, base de acumulação de riquezas dos países da Europa, inclusive da Inglaterra, berço da revolução industrial.  A mão de obra escrava foi a base da economia colonial na América como as máquinas da primeira revolução industrial foram primordiais na acumulação capitalista, a partir do século XVIII, na Europa.

A cultura do racismo, como conhecemos, nasce como uma maneira de exclusão dos povos africanos da vida e das conquistas da sociedade humana, desde o século XV, deixando marcas profundas até à atualidade. A escravidão passa a ser diretamente relacionada aos povos africanos, como uma maldição, a partir de uma visão cultural e religiosa eurocêntrica nas colônias da América, na Europa e no próprio continente africano. O Brasil foi o país de maior concentração de escravos africanos no mundo. Chegou a uma população de 5 milhões deles, ao longo dos mais de 300 anos nos quais perdurou a escravidão negra entre nós.

A abolição da escravatura em solo brasileiro atendia aos interesses das oligarquias nacionais, que já não podiam manter o custo da mão de obra escrava, e a realidade internacional pelo que o Brasil já representava em função do território, riquezas naturais, particularmente minerais, potencialidades agrícola e pecuária, no contexto da economia mundial.  

As leis abolicionistas entre nós promoveram, de maneira gradual, a emancipação dos escravos. A primeira foi a Lei Eusébio de Queiroz, em 1850. Posteriormente, a Lei do Ventre Livre, em 1871, e a Lei dos Sexagenários, em 1885. Finalmente, a lei assinada pela Princesa Isabel em 13 de maio de 1888 que abolia a escravidão no Brasil. São consideradas as principais lideranças negras abolicionistas: André Rebouças, José do Patrocínio e Luiz Gama. Ainda devem ser destacadas as lideranças femininas como Maria Tomásia, Adelina e Maria Firmina dos Reis, entre outras lideranças abolicionistas brasileiras.

Em uma outra perspectiva, aconteceu a luta dos quilombolas. Os quilombos eram formados como espaços de resistência, de libertação e de construção de novas relações políticas, econômicas e sociais. O de Palmares é o mais conhecido e aclamado na liderança de Zumbi, cuja data de sua morte, 20 de novembro, passou a ser a data nacional de resistência e de luta pelos direitos da população negra no Brasil,  desde  2011.

Assim, a libertação dos(as) negros(as) em território brasileiro é o resultado das lutas de resistência dos movimentos de libertação, desde quando os africanos chegaram ao Brasil como escravos(as), nos movimentos dos Quilombolas e dos abolicionistas como espaços de luta, de resistência e de conquistas no processo de emancipação da população negra como parte integrante da sociedade brasileira, com seus conflitos e contradições históricos e atuais.

Desde então, por tudo o que o Brasil representava e continua representando, inicialmente como Colônia, depois como Monarquia até à proclamação da República e atualmente, a população negra vinda da África para realizar o trabalho escravo e seus descendentes continuam, regra geral, sem a devida representação na vida política, econômica e social no Brasil. 

Portanto, os desafios históricos de inclusão da população negra na sociedade brasileira continuam atuais.

Hoje, quais são os compromissos dos que governam, da sociedade e da cidadania em geral frente a essa realidade de exclusão da população negra brasileira?

A situação atual da população negra no Brasil é causa e/ou consequência da realidade brasileira historicamente construída ou é um fenômeno conjuntural ampliado por causa da própria pandemia que estamos vivendo?

O que pensam hoje o Movimento Negro e os outros movimentos políticos, econômicos,  sociais, ambientais e multiculturais frente à atual realidade brasileira e quais os caminhos de superação da exclusão histórica e atual da população negra e de outras populações, a exemplo da população indígena, marginalizadas no País? São as questões a serem consideradas no caminho de inclusão da população negra na sociedade brasileira.

Desde a Abolição da Escravatura no Brasil, no século XIX, quando a sociedade saiu do trabalho escravo e foi desenvolvendo as bases do capitalismo comercial e industrial, a ciência e a técnica começaram a ser incorporadas, cada vez mais, nos processos de produção e distribuição de mercadorias, construindo novas relações políticas, econômicas e sociais em nossa sociedade.

Os escravos recém-libertos não foram incorporados a esta nova realidade política, econômica e social. Sem a terra e a escolaridade necessárias, os(as) negros(as) libertos(as) ficaram à margem da sociedade brasileira na sua imensa maioria, situação que continua na atualidade, apesar das conquistas e dos avanços desde a Constituição de 1988.

Desde então, a população negra e a sociedade brasileira estão desafiadas à construção de uma sociedade que supere os conflitos e as contradições  gerados nessa sociedade historicamente construída, na busca de uma sociedade mais democrática, inclusiva na sua organização política, econômica e social, distribuindo melhor a riqueza produzida por todos os brasileiros.

 A sustentabilidade como possibilidade

A partir da base técnica e científica da sociedade contemporânea, a humanidade poderia enfrentar e resolver qualquer problema social e/ou econômico, inclusive os da fome, de moradia, de melhoria da saúde e educação que atingem uma parcela considerável da população brasileira e mundial, inclusive a situação das populações negras destacadas no presente texto.

As modificações ocorridas na economia mundial, nas últimas décadas, possibilitaram novas maneiras de produzir e de distribuir mercadorias, de comércio, de turismo e de lazer, transformando radicalmente as relações de trabalho, impactando a vida de milhões de trabalhadores(as) no mundo e no Brasil. A internet, a robótica, a microeletrônica, as tecnologias de informação, os novos materiais e as energias renováveis entraram definitivamente nas nossas vidas, transformando as relações de trabalho estabelecidas: hoje, muitas atividades laborais podem ser realizadas em casa; a pandemia apenas acelerou este processo, modificando a maneira de ser e estar de milhões de pessoas no planeta.

As mudanças em curso evidenciam a interdependência entre a educação, a ciência e a tecnologia, as transformações ocorridas e as que estão ocorrendo no mundo do trabalho com reflexos políticos, econômicos e sociais na sociedade contemporânea. A população negra e as suas organizações devem estar preparadas para a luta e a defesa dos seus interesses frente a essas transformações nas sociedades brasileira e mundial.

Os brasileiros continuam desorientados e reféns das narrativas políticas e eleitorais. A insegurança é total. Os dados em relação à contaminação e às mortes são assustadores. As estatísticas apresentadas diariamente nos meios de comunicação dão a dimensão da tragédia. O governo federal, como principal responsável pela Política Nacional de Combate à Pandemia com sua política negacionista, só faz agravar a situação contribuindo para uma polarização que não ajuda a resolver as nossas urgências econômicas, sociais e de vacinação.

Os(as) trabalhadores(as) de menor renda e os(as) desempregados(as) em geral, na sua maioria negra, continuam enfrentando sérias dificuldades, entre as quais a falta de uma renda emergencial permanente que lhes assegure o mínimo de dignidade para atravessar a crise, agravada com a contaminação de milhões e a morte de mais de 400 mil pessoas pela Covid-19, tragédia  que atinge sobretudo a população de baixa renda, as mulheres na sua dupla jornada de trabalho, as populações indígena e negra historicamente excluídas  no Brasil.

A inclusão da população negra (54% da nossa população, segundo o IBGE), deve ser realizada a partir de pautas afirmativas e de reparação com o olhar do presente no caminho de um futuro que unifique a sociedade brasileira, construindo uma agenda nacional para a saída da crise no caminho da consolidação e ampliação da democracia brasileira. A população negra e suas representações devem estar em diálogo permanente com a opinião pública e a sociedade em geral fortalecendo suas redes sociais e de comunicação em diálogo permanente, defendendo a melhoria das condições de vida de todos, apostando em uma agenda nacional que retire o Brasil desta grave crise política, econômica, social e de valores que estamos vivendo.

Portanto, a população negra e a sociedade brasileira em geral estão desafiadas a construir uma agenda propositiva a ser pactuada no enfrentamento dos reais problemas  nacionais agravados com a pandemia: realizar as reformas no caminho de uma nova economia, pensando o Brasil nos próximos 5, 10, 15 e 20 anos, considerando a sua dimensão continental, as potencialidades  nacionais e regionais, seus ativos naturais e a diversidade cultural. A base desta construção democrática é a educação, a ciência e a tecnologia que devem ser incorporadas como estruturantes e estratégicas, melhorando a qualidade de vida dos(as) trabalhadores(as), da população negra e de toda a sociedade, nas próximas décadas.

*George Gurgel de Oliveira, Professor da Universidade Federal da Bahia, da Oficina da Cátedra da UNESCO-Sustentabilidade e do Conselho do Instituto Politécnico da Bahia

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