terça-feira, 11 de maio de 2021

Luiz Werneck Vianna* - Uma rota de saída do inferno

Recebemos como herança maldita uma sociedade saída do ventre do latifúndio e da escravidão e fomos em nossa história lenientes em recusá-la. Ao contrário, seguimos em frente na ilusão de estarmos realizando obra civilizatória sem remover esse lastro pestilencial e até se aproveitando dele no que propiciava o ingresso na moderna ordem burguesa. Pagamos agora, gregos e troianos, nossos vícios de origem com as pragas que emulam com as das cenas bíblicas como as do bolsonarismo, da pandemia descontrolada, com a carnificina exercida sobre jovens pretos favelados e sob ameaça de que a fome venha ainda mais a afligir nossas populações desvalidas. Isolados do resto do mundo, não temos para onde fugir. As portas do êxodo estão fechadas para nós, que temos de ficar aqui e encontrar as vias de saída do inferno que nosso país se tornou.

O caminho para esta jornada é o da política que na aparência se mostra fértil para as incursões redentoras, mas basta que elas se iniciem para que se encontrem com os muros das nossas taras congênitas como as do patrimonialismo e do patriarcalismo que sempre o acompanha, engrenagens poderosas treinadas em barrar os processos de mudança, presentes em número expressivo na nossa representação parlamentar. Pois é preciso que se atente para o fato de que o atual governo não deve sua existência apenas à desastrada ação na política dos partidos democráticos, mas a uma concertação – elaborada sem dúvida açodadamente – de setores das elites cujas raízes se vinculam à formula reacionária com que o país veio ao mundo, tal como no caso exemplar das relações entre o secular latifúndio e o moderno agronegócio, uma das peças de sustentação do estado de coisas reinantes.

Tal circunstância, do ponto de vista do operador político democrático, deve ser levada em conta a fim de reparar na distância mantida entre as dimensões da política, em que o governo Bolsonaro mingua com as do social – entendidas aí restritivamente como a malha de interesses estruturadas a partir das ações das elites econômicas dominantes – até então confortáveis, em que pesem os desatinos presidenciais, com o terreno seguro que têm encontrado para a expansão dos seus negócios. Atuar nesse cenário, no contexto de uma pandemia que imobiliza a sociedade, reclama pela presença de personagens à altura do desafio de nos reconduzir à plenitude dos meios democráticos na condução da administração pública, objetivo ao alcance das mãos se tivermos a sabedoria de alguns dos nossos maiores como Ulisses Guimarães e Tancredo Neves na articulação de uma ampla coalizão democrática para a próxima sucessão presidencial, ou antes dela, na melhor das hipóteses.

Faz-se necessário compreender que a coalizão reacionária no poder, apesar da sua aparência caótica, nasce e persiste – como se evidencia no comportamento dos senadores governistas na atual CPI – como um projeto orientado para malbaratar o marco democrático fixado pala Carta de 1988 com os direitos sociais que consagrou e com seus procedimentos de controle do poder político. Imprimir um movimento de marcha à ré nas conquistas acumuladas por parte da sociedade em todas as suas esferas, das institucionais às culturais e comportamentais, tem sido o leit motiv do governo que aí está.

Com essa direção enviesada Bolsonaro arremedou a política retrô em questões internacionais e sobretudo ambientais de Donald Trump, fragorosamente derrotada nas últimas eleições americanas pela candidatura de Joe Biden cujo programa defendeu o retorno do seu país ao cultivo dos seus valores fundacionais. Essa metamorfose da cena internacional, de óbvio impacto em nosso continente, soma-se às dificuldades internas para que o “regime” Bolsonaro se reproduza, uma tentativa anacrônica de nos devolver aos idos do AI-5, especialmente vistas da perspectiva das questões ambientais e direitos humanos, em maré montante nos EUA e na União Européia, com a força gravitacional que suas políticas exercem sobre a cena brasileira.

Por dentro e por fora, as pretensões de continuidade do atual governo se confrontam com o mundo das coisas reais. Bolsonaro demonstra conhecer as dificuldades à sua frente, e, tal como Trump, de que é patética caricatura, envereda pelo atalho sinistro da conspiração contra o processo eleitoral, investindo contra o voto eletrônico, de notória lisura, atestada por várias investigações especializadas. Ainda como Trump, Bolsonaro visa melar o processo eleitoral, e, desde agora inicia esse movimento aliciando a ralé de camadas médias que o acompanha em ridículas passeatas de motocicletas, quando confessa sem rebuços, como Bonaparte às vésperas do golpe de 18 Brumário que leva seu nome, que a legalidade é o que nos mata.

Não será sem atropelos que teremos de volta a democracia livre dessa permanente conspiração que a assedia, para tanto, contamos com a vacinação massiva da população, agora alavancada pelos debates suscitados na CPI que esclarecem os motivos obscuros da inação do governo na obtenção de vacinas e destrancam as vias pelas quais elas podem ser melhor negociadas, a fim de que afinal, como já acontece em vários países, as ruas se abram às manifestações populares, que é o que nos falta para nos livrarmos da tormenta desse pesadelo.

Não é de ciência certa, em política nada é, mas se conseguirmos a lucidez que nos propicie, por cima dos pequenos apetites e das idiossincrasias que infestam a nossa política, articular o maior arco de alianças possível, está ao alcance das mãos trazer de volta a sanidade na administração pública e uma nova possibilidade para um ajuste necessário com o que subsiste em nós da herança maldita que recebemos ao vir ao mundo.

*Luiz Werneck Vianna, Sociólogo, PUC-Rio

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