terça-feira, 4 de maio de 2021

Merval Pereira - A ‘fulanização’ da política

- O Globo

 ‘É verdade que o Renan é muito amigo do Lula?’, teria perguntado o presidente Bolsonaro ao ex-presidente José Sarney, para quem bateu continência na entrada e na saída, em respeito a quem, como ele é, já foi comandante em chefe das Forças Armadas.

A política brasileira segue “fulanizada”, o papel da aliança partidária quase sempre é substituído pelas relações pessoais, e aí aparece uma das fragilidades de Bolsonaro. Mesmo tendo ficado no Congresso por quase 30 anos, Bolsonaro não tem amigos na política, os seus estão em outras áreas, como a militar, com suas imbricações na vida civil, com ex-militares que se desviaram para a milícia.

O Centrão é uma base política multipartidária para Bolsonaro, mas não existe uma relação interpessoal desses neoaliados com ele, assim como não existia com o ex-presidente Lula no início de seu primeiro mandato. A aliança com o PMDB foi costurada pelo então todo-poderoso chefe do Gabinete Civil, José Dirceu, e prontamente rejeitada por Lula, que não queria peemedebistas em seu governo.

Coube ao tempo provar que Dirceu estava certo, e a aliança acabou saindo pela cooptação por meio do mensalão. A convivência estreitou essa relação, que foi eterna enquanto duraram os recursos do Caixa da União. Rompido no governo Temer, depois do impeachment da então presidente Dilma, o Centrão custou a engrenar uma intimidade maior com Bolsonaro, cujo mote principal era acabar com a “velha política”.
Um lema autofágico, que foi abandonado pela necessidade de defender-se e aos filhos de antigos hábitos da “velha política”, como rachadinhas, funcionários “fantasmas” e favores fisiológicos. O porto seguro foi o Centrão e sua tradição de fazer política a curto prazo. Mas surgiu Lula no caminho desse relacionamento tão frágil. Um velho amor que voltou a ter condições de oferecer expectativa de poder, que é do que vive o Centrão.

O presidente da Câmara, Arthur Lira, que um dia mostrou o cartão amarelo a Bolsonaro com palavras duras, usa hoje o mesmo tema, o combate desorganizado à pandemia, para desdenhar a CPI da Covid, que ele considera desnecessária.

O presidente da Câmara está querendo assumir o papel de grande apoiador do governo no Congresso. Defende a ideia de que a CPI da Covid está sendo superestimada e afirma que não colocará em pauta nenhum pedido de impeachment contra Bolsonaro.

Nada mais é do que uma disputa de poder com o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, ambos eleitos com apoio do Palácio do Planalto, e com o senador Renan Calheiros, também de Alagoas, uma jogada política às vésperas da eleição. A CPI tem um potencial brutal de atingir o governo. Pode até ser que não ela tenha nenhuma consequência, mas é quase inevitável que saia fragilizado.

Pacheco teve que abri-la por determinação do Supremo Tribunal Federal, e os Bolsonaros sentiram-se traídos. Lira aproveita o momento em que o pior inimigo parece a Bolsonaro ser o senador Renan Calheiros para tentar esvaziar a relatoria da CPI e ganhar o apoio de Bolsonaro na disputa eleitoral de Alagoas em 2022.

Calheiros, por seu lado, sonha com a vice de Lula na chapa da eleição presidencial, que não terá o General Mourão, que fica de regra três para acalmar os militares caso a CPI leve a um improvável, mas possível, impeachment de Bolsonaro.

A “fulanização” da política, que não agradava a Ulysses Guimarães, levou a que fosse criada a tese estapafúrdia de que o então juiz Moro prendeu Lula para impedir que ele derrotasse Bolsonaro na eleição de 2018, quando Moro e Bolsonaro nem sequer se conheciam.

Um encontro dos dois no saguão do Aeroporto Santos Dumont, no Rio, durante a campanha presidencial, serve bem de exemplo: Bolsonaro bateu continência a Moro, que o tratou com displicência. No futuro, se acaso Moro ou algum aliado seu for eleito para a Presidência da República, tudo mudará de novo, e dirão que o STF anulou as condenações de Lula para estimular sua candidatura à Presidência contra o próprio Moro, e Bolsonaro, que estimula seus seguidores a atacar o STF. A fulanização da política leva a essas teorias da conspiração, que são sempre certas quando coincidem com nossa opinião pessoal.

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