quarta-feira, 12 de maio de 2021

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

EDITORIAIS

Orçamento para os amigos

O Estado de S. Paulo

O presidente Bolsonaro ofereceu às raposas do Congresso não somente as galinhas, como os ovos e as chaves do galinheiro

O governo de Jair Bolsonaro montou um esquema de rateio de recursos públicos entre parlamentares de sua base, fora dos controles orçamentários, conforme mostraram reportagens do Estado publicadas desde domingo.

Trata-se de um escândalo que espanta não apenas pelos valores envolvidos – em torno de R$ 3 bilhões, até onde a reportagem pôde verificar –, mas também pela sorrateira engenharia para escamotear a escassez de critérios técnicos e a abundância de critérios políticos para a distribuição do dinheiro. Nada nessa história parece nem remotamente republicano.

No esquema, dezenas de parlamentares governistas ganharam a chance de determinar a destinação de verbas do Ministério do Desenvolvimento Regional. O manejo dos recursos, por lei, cabe somente à pasta, dentro dos limites estabelecidos pelo Orçamento, mas o governo, no afã de agradar a sua base, simplesmente abriu mão dessa prerrogativa.

As verbas em questão resultam das chamadas “emendas de relator”, modalidade de emenda parlamentar ao Orçamento introduzida no ano passado. O relator-geral do Orçamento pode encaminhar emendas para, entre outros objetivos, remanejar recursos para determinadas áreas. Nessa modalidade, não cabe ao relator indicar qual município receberá o dinheiro nem qual obra será financiada. Essa tarefa – a execução orçamentária – é do Ministério.

Mas o governo de Jair Bolsonaro concedeu a parlamentares aliados a possibilidade de direcionar essas verbas remanejadas conforme seus interesses políticos. Deputados e senadores já têm a prerrogativa de encaminhar emendas pessoais ao Orçamento, nas quais apontam o beneficiário e a justificativa técnica do gasto, e em geral servem para atender a suas bases eleitorais. Nesse caso, as cotas são iguais para todos os parlamentares – e limitadas a R$ 8 milhões por ano. No esquema revelado pelo Estado, contudo, quem vota com o governo ganha a chance de apadrinhar projetos cujo valor vai muito além do limite estabelecido para as emendas.

A título de exemplo, o senador Davi Alcolumbre (DEM-AP), um dos premiados, determinou a destinação de R$ 277 milhões de verbas do Ministério do Desenvolvimento Regional. O senador levaria 34 anos para conseguir indicar esse valor caso se restringisse a encaminhar emendas parlamentares.

Os ofícios enviados pelos parlamentares para movimentar o Orçamento fora dos controles públicos mostram a sem-cerimônia. Nos documentos, obtidos pela reportagem, os políticos usam expressões como “minha cota”, “fui contemplado” e “recursos a mim reservados”.

Para adicionar insulto à injúria, parte considerável do dinheiro manejado pelos parlamentares destinou-se à compra de máquinas agrícolas a um custo várias vezes superior ao estabelecido pela tabela do governo. Portanto, há claros sinais de superfaturamento.

Grande como é, o escândalo agora revelado embute um outro, igualmente impressionante: é a incrível expansão da Codevasf (Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba), estatal que recebeu boa parte dos recursos irregularmente direcionados pelos parlamentares governistas.

A estatal, criada em 1974 para atender 504 cidades e desenvolver as margens do Rio São Francisco, hoje atua em nada menos que 2.675 municípios – alguns dos quais distantes 1.500 km do rio.

A dilatação da Codevasf foi patrocinada pelo presidente Bolsonaro, que incluiu mil municípios na cobertura da estatal com vista a ganhar apoio à sua reeleição. Até o Amapá do senador Alcolumbre, a léguas do Rio São Francisco, agora é atendido pela Codevasf. Ademais, Bolsonaro loteou as diretorias da Codevasf entre os partidos do Centrão, que trataram de articular a abertura de superintendências regionais para distribuí-las a aliados.

Assim, o presidente Bolsonaro ofereceu às raposas do Congresso não somente as galinhas, como os ovos e as chaves do galinheiro. Como se sabe, a elaboração e a execução do Orçamento são reguladas por rígida legislação, que exige total transparência. Mas Bolsonaro e seus felpudos associados não gostam muito de leis.

O exemplo do agro

O Estado de S. Paulo

O País se consolidou como um dos grandes exportadores mundiais de alimentos

Há cerca de uma década as disfuncionalidades estruturais do Estado brasileiro têm dado sinais de uma exaustão que compromete brutalmente o crescimento econômico e o desenvolvimento social. A crise fiscal pressiona as contas públicas e há cada vez menos espaço para investimentos e implementação de políticas capazes de reduzir as desigualdades sociais. O Brasil tributa, gasta e se endivida como um país rico, mas oferece serviços públicos de um país pobre. Na economia, o resultado foi uma década perdida. Entre 2011 e 2020, o setor de serviços cresceu apenas 1,5%; a indústria encolheu 12,8%; e o PIB, como um todo, 1,2%. 

Mas há um Brasil que dá certo. Ao focar no empreendedorismo, tecnologia, aprendizagem democrática, liberdade individual e menos burocracia, a agropecuária cresceu, no mesmo período, 25,4%. Um estudo do Instituto Millenium radiografou a cadeia produtiva do agronegócio a fim de compreender as causas e efeitos de seu sucesso.

Em algumas décadas o Brasil passou de importador de alimentos a um dos principais exportadores mundiais. Hoje o País está entre os 5 maiores exportadores em cerca de 30 produtos agrícolas.

Em 2020, a agropecuária foi o único setor com resultado positivo, evitando que o desastre econômico da pandemia fosse ainda maior. Enquanto o PIB do País encolheu 4,1%; o da indústria, 3,5%; e o dos serviços, 4,5%; o do agro cresceu 2%. Há anos o agro tem sido a chave para o superávit da balança comercial brasileira. Entre 2019 e 2020, enquanto a agropecuária apresentou crescimento nas vendas externas de 6%, as vendas da indústria extrativa caíram 2,7% e as da indústria de transformação, 11,3%.

Há, claro, externalidades favoráveis, como a depreciação cambial e a alta internacional dos preços dos alimentos. Mas o estudo evidencia que o agro só pôde “surfar nesta onda” por estar imerso em um crescimento de investimentos tecnológicos, aumento da mecanização, melhoria da qualidade dos pesticidas e técnicas de cultivo intensivo que resultaram no aumento da produtividade, na progressiva diversificação da cadeia e na diminuição da diferença entre a área plantada e a área colhida.

Entre 2006 e 2017, o número de estabelecimentos agrícolas com tratores, por exemplo, aumentou 50%, com grandes ganhos de produtividade para produtos como cana, soja, cereais e milho. Nos últimos 10 anos, o arroz, por exemplo, apresentou aumentos expressivos na entrega ao mesmo tempo que reduziu 50% de sua área plantada.

O estudo detalha ainda os diversos efeitos positivos na geração de emprego e renda e redução das desigualdades. O setor está fortemente capitalizado. Apenas 15% dos mais de 5 milhões de estabelecimentos buscam algum tipo de financiamento, e quase metade dele é composta por capital de bancos privados. Isso deixa espaço para que as subvenções governamentais possam ser canalizadas para setores mais vulneráveis – 70% delas estão vinculadas à agricultura familiar –, ao mesmo tempo que o capital privado é orientado para investimentos em tecnologia e incrementos de produtividade.

“Essa mistura de tecnologia e inovação significa menos água, menos área ocupada, maior sustentabilidade e resultados”, disse a secretária executiva do Millenium, Priscila Pereira Pinto. “O agronegócio é um exemplo positivo de como o setor privado realmente despontou e está criando oportunidades, aumentando a produtividade, e continuou produzindo apesar de todas as confusões, dificuldades diplomáticas e tributações absurdas.”

O agro evidencia o quanto “o crescimento da produtividade precisa de uma agenda liberal econômica com foco na independência do empresariado”, conclui o Millenium, “para que haja captação de recursos através de investimentos privados, treinamentos internos, termos de exportação e importação claros e criação de ecossistemas que gerem confiança e soluções para pequenos problemas”. Nada ilustra melhor a condição exemplar do agronegócio do que o slogan adotado pelo instituto na apresentação de sua análise: “Agro: plantar tecnologia e produtividade é colher desenvolvimento”.

Reforma com seriedade

O Estado de S. Paulo

Em vez de fatiar a reforma tributária, é bom seguir o plano do relator

Para crescer, competir e criar empregos e bem-estar, a economia brasileira precisa de impostos mais funcionais e mais justos, e para isso será necessária uma reforma ampla e ambiciosa. O Brasil tem uma das piores tributações do mundo e o peso dos encargos é apenas um dos problemas. Mas uma reforma fatiada, como propõem a equipe econômica e o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), muito dificilmente produzirá efeito relevante. O rumo para uma boa revisão do sistema está disponível, no entanto, desde a semana passada, quando o deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB) apresentou seu relatório à Comissão Mista de Reforma Tributária.

Simplificação é a marca mais visível da proposta do relator, construída a partir de três projetos em tramitação no Congresso. O novo desenho inclui a substituição de cinco encargos por um Imposto sobre Bens e Serviços (IBS). Serão substituídos três tributos federais (PIS, Cofins e IPI), um estadual (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços - ICMS) e um municipal (ISS). A cobrança ocorrerá no destino e ainda será preciso regular a repartição da receita entre União, Estados, Distrito Federal e municípios.

Com essa unificação, será eliminada uma das estranhas peculiaridades do sistema brasileiro, a competência estadual em relação ao principal tributo sobre o valor agregado, o ICMS. Na Europa, onde esse tipo de imposto foi inicialmente implantado, a competência sempre foi do poder central, com regras para divisão do bolo. Eliminada essa jabuticaba, o sistema se tornará mais simples e mais ordenado, sem espaço para as 27 legislações ainda possibilitadas pelo ICMS.

A grande reforma, com a unificação de tributos, seria o tronco das mudanças. A partir desse tronco seria necessário estabelecer regras complementares, como detalhes de cobrança e de repartição da receita, eliminação de isenções e mitigação de problemas distributivos.

Mesmo com diferenciação de produtos da cesta básica, o ICMS tem peso desproporcional sobre os consumidores de renda baixa ou média baixa. Esse peso aumentará, se isenções forem eliminadas. Para evitar maior custo para os mais pobres, um problema reconhecido pelo relator, será preciso modular a incidência do IBS ou buscar compensação por meio de transferência de renda.

De toda forma, o caráter regressivo do sistema brasileiro, muito dependente de tributos indiretos, é amplamente reconhecido. O relator Aguinaldo Ribeiro mencionou uma possível diminuição, no futuro, da tributação sobre o consumo, adotando-se como compensação um aumento de encargos sobre o patrimônio. Não se tem dado muita atenção, nos debates sobre a reforma, à tributação sobre a renda. Já se admite amplamente a conveniência de aumentar o imposto sobre dividendos, mas como forma de compensar uma redução, amplamente defensável, do encargo incidente sobre o lucro empresarial. Há espaço para uma discussão mais ampla sobre os impostos diretos.

Diante do texto produzido pelo deputado Aguinaldo Ribeiro, tem pouco sentido continuar dando atenção ao projeto de fusão do PIS e da Cofins, apresentado há meses pela equipe econômica. É quase grotesco usar a expressão “reforma tributária” para qualificar essa proposta governamental. Mas o presidente da Câmara tem defendido prioridade para a votação desse projeto. Seria a etapa inicial da grande transformação – mas haveria, mesmo, etapas seguintes? Isso parece muito improvável, até pela aproximação do período eleitoral. Além disso, o ministro da Economia, Paulo Guedes, nunca se mostrou muito interessado numa renovação ambiciosa do sistema tributário. Além da fusão do PIS e da Cofins, ele se limitou, quase sempre, a defender a desoneração da folha de pessoal e a recriação da aberrante CPMF.

Para desemperrar a economia e tornar os impostos mais equitativos, será preciso buscar objetivos mais amplos e discutir muito mais seriamente a funcionalidade do sistema e seus efeitos distributivos. O relatório do deputado Aguinaldo Ribeiro, apoiado pelo presidente do Senado, é um bom ponto de partida.

Emendas perigosas

Folha de S. Paulo

Fragilidade política do governo Bolsonaro leva a aviltamento da política pública

Quanto mais frágeis os laços programáticos em uma coalizão governista, maior a probabilidade de surgirem episódios rumorosos de fisiologismo ou mesmo de corrupção nas relações entre governo e partidos de sua base. Começam a se conhecer melhor, agora, os custos da outrora improvável aliança entre o centrão e Jair Bolsonaro.

Está claro que o gelatinoso bloco parlamentar, desinteressado na agenda ideológica do Planalto, avança com rara voracidade sobre o depauperado Orçamento federal —a tal ponto que o presidente foi obrigado a vetar parte das despesas programadas para este ano, sob pena de incorrer em descumprimento dos limites legais.

Depois de uma avalanche de emendas de deputados e senadores à peça orçamentária de 2021, foi necessário promover às pressas um corte de quase R$ 20 bilhões em gastos, além de um bloqueio preventivo de outros R$ 9 bilhões.

Com as emendas, os congressistas buscam, como de hábito, destinar recursos para obras e outras benesses em seus redutos eleitorais. Embora tais escolhas sejam questionáveis, trata-se, em tese, de instrumento legítimo —desde que respeitadas as normas fiscais e garantidas a transparência e a lisura na aplicação dos recursos.

Na prática política, o cumprimento dessas condições nem sempre está acima de qualquer suspeita. O Brasil tem amplo histórico de desvios de verbas originárias de emendas, que em geral dependem da conivência ou no mínimo da omissão do Executivo.

Desta vez, reportagem do jornal O Estado de S. Paulo afirma que se instalou no Ministério do Desenvolvimento Regional um esquema em que parlamentares governistas comandam diretamente o uso de somas elevadas —muito acima dos pouco mais de R$ 16 milhões que cada deputado e senador tem o direito de incluir no Orçamento.

A pasta, de longa tradição fisiológica, recebeu cerca de R$ 8 bilhões em 2020 e R$ 6 bilhões neste ano em emendas do relator da lei orçamentária, uma nova modalidade de intervenção do Congresso na despesa pública. Parte desses montantes recompensaria os congressistas fiéis ao Planalto.

O caso demanda esclarecimentos e investigações, em particular quanto à regularidade na aplicação do dinheiro. Certo é que a ofensiva perdulária e eleitoreira do centrão e de Bolsonaro comprometem a gestão pública num quadro de deterioração fiscal gravíssimo.

Há sacrifícios de todas as dimensões em curso. O governo se endivida para pagar mais R$ 44 bilhões em auxílio emergencial; um corte de R$ 2 bilhões inviabiliza o Censo; sob pressão internacional, prometem-se mais de R$ 200 milhões para o Meio Ambiente; uma perda de R$ 6 milhões prejudica o banco de dados de combate à corrupção.

Um cenário como esse exige a sofisticação do debate orçamentário e da negociação parlamentar. Entretanto a fragilidade política do governo desemboca em aviltamento da política pública.

Socorro aos yanomamis

Folha de S. Paulo

À situação deplorável de saúde soma-se conflito provocado pelo garimpo ilegal

imagem brutal de uma criança yanomami desnutrida, publicada pela Folha, ilustra a crise humanitária em territórios indígenas do país, particularmente em Roraima.

Relatório divulgado pela Unicef em 2019 apontou que 81,2% das crianças menores de cinco anos da área yanomami tinham baixa estatura para a idade, 48,5% tinham baixo peso e 67,8% estavam anêmicas. Além dos relatos de alta da malária, há o impacto da Covid-19.

A uma situação de saúde deplorável somam-se conflitos fundiários impulsionados pelo garimpo ilegal, em ascensão avalizada pelo presidente Jair Bolsonaro.

Estima-se que existam hoje aproximadamente 20 mil garimpeiros ilegais dentro da Terra Indígena Yanomami, segundo o representante do Conselho de Saúde Indígena Yanomami e Ye’kwana (Condisi-YY), atuante na região. No último dia 10, três morreram durante ataque a yanomamis, na comunidade indígena Palimiu (RR), acirrando as tensões no local.

Trata-se de um problema de grandes proporções e crescente. Relatório divulgado em março deste ano por organizações indígenas mostrou que, em 2020, os garimpos avançaram sobre 500 hectares de terras indígenas, um aumento de 30% em relação ao ano anterior.

Operação da Polícia Federal na Terra Indígena Yanomami neste ano encontrou barracos capazes de abrigar 2.000 garimpeiros, além de festas de Carnaval, prostíbulos e sorteios de revólveres.

A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) pediu ao Supremo Tribunal Federal a retirada urgente de invasores. Na corte tramita um caso sobre proteção a indígenas na pandemia.

É conhecida a hostilidade do governo Bolsonaro à política indigenista. Sua orientação se baseia em teses militares anacrônicas segundo as quais os territórios indígenas representariam ameaça à soberania nacional. A agenda do Palácio do Planalto contempla um controverso projeto de lei para regulamentar a mineração nessas áreas.

O cerco a esses povos se dá em paralelo à destruição ambiental, também obra da ideologia bolsonarista. Ambos merecem o mesmo repúdio doméstico e externo.

É preciso pôr fim à emenda do relator no Orçamento

O Globo

Depois do escândalo dos Anões do Orçamento, em 1993, foi retirado do relator da peça orçamentária o poder de incluir novas despesas ao longo do ano. Descobriu-se na ocasião um grupo de parlamentares, apelidados “sete anões”, que chegaram a emendar 76 mil vezes o Orçamento num único ano para mandar dinheiro a apaniguados mediante pagamento de propinas. Ficou claro que dar poder ao relator para determinar o destino de gastos sem critérios objetivos e transparentes era um convite a desvios.

Mesmo com tal histórico, esse poder voltou no Orçamento de 2020. Ficou estabelecido que o relator, deputado Domingos Neto (PSD-CE), poderia distribuir ao longo do ano recursos estimados em R$ 20 bilhões a iniciativas de ministérios e outros órgãos públicos, submetidas a fiscalização posterior dos organismos de controle. Como revelou o jornal “O Estado de S.Paulo”, o expediente foi usado para destinar R$ 3 bilhões a obras, projetos e prefeituras indicados por parlamentares, em troca do apoio à eleição de Arthur Lira (PP-AL) e Rodrigo Pacheco (DEM-MG) para presidentes da Câmara e do Senado, respectivamente.

O dinheiro era alocado a projetos dos interessados via Ministério do Desenvolvimento Regional e estatal Codevasf. Em vez de incluí-los formalmente no Orçamento, bastava ao parlamentar aquinhoado enviar ofício ao órgão do Executivo solicitando a liberação. Sobre vários, como a compra de tratores, pesam suspeitas de superfaturamento. O artifício beneficiou governistas como Ciro Nogueira, Fernando Bezerra Coelho, Eduardo Gomes ou a hoje ministra Flávia Arruda. Ampliou os gastos à disposição dos agraciados para muito além das emendas individuais de R$ 8 milhões a que todo parlamentar tem direito.

A manobra serviu ainda para driblar as regras do orçamento impositivo, que obrigam as emendas dos parlamentares, tanto individuais quanto de bancada, a ser distribuídas de modo equânime. Os recursos alocados pelo relator passaram ao largo das exigências e foram negociados em troca de apoio ao governo, conforme demonstra um “ranking de fidelidade” mantido pelo Planalto e revelado pelo GLOBO.

As emendas parlamentares, concebidas como forma legítima de destinar recursos a projetos locais, se tornaram com o tempo moeda de troca. Desde 2015, três emendas constitucionais tentaram lhes dar maior transparência. Para evitar que dessem margem a chantagem do Executivo sobre o Parlamento, a execução de uma parcela passou a ser obrigatória. Agora, sob o pretexto conveniente de devolver controle do Orçamento aos congressistas, voltou-se a abrir a brecha a desvios numa super-emenda do relator que, este ano, soma R$ 18,5 bilhões (juntas, as individuais somam R$ 9,7 bilhões).

No presidencialismo de coalizão, é natural que o Executivo negocie apoio no Parlamento em troca de espaço no governo. Só que a fragmentação partidária tornou inviável a distribuição de cargos e ministérios entre dezenas de partidos, muitos formados por interesses meramente paroquiais. Restou aos parlamentares avançar com avidez sobre o Orçamento. Em vez do toma lá dá cá obscuro, com ofícios secretos informando para onde deve ir esta ou aquela verba, é preciso haver transparência e regras objetivas. A emenda do relator rediviva não passa de um artifício opaco para driblar as poucas regras existentes. Por isso, precisa ser extinta.

É inoportuna a portaria que permite furar o teto do funcionalismo público

O Globo

Até o vice Hamilton Mourão criticou a portaria do Ministério da Economia que permitiu estourar o teto do funcionalismo. Editada em 30 de abril, ela estabelece que, para quem recebe dois vencimentos do poder público, será possível calcular o teto para cada um deles em separado. Antes, o teto era calculado sobre a soma, agora virou um teto “duplex”. Com uma penada, dobrou-se na prática o valor, fixado pelo salário de ministro do Supremo (R$ 39,2 mil).

A medida deverá ter impacto de R$ 181 milhões no Orçamento deste ano e, pela própria definição, só beneficia a elite do funcionalismo. Trata-se de mais um escárnio, em pleno ano de pandemia, quando, além do efeito do desemprego, o salário de milhões na iniciativa privada voltará a ser cortado em virtude do novo programa que permite redução de rendimento e jornadas aprovado no Congresso.

Para não falar na situação fiscal crítica: o déficit orçamentário é estimado em quase R$ 150 bilhões, sem contar a projeção de pelo menos outros R$ 100 bilhões, fora do teto de gastos, com todas as despesas alocadas à luta contra o coronavírus. Não se sabe a troco do que exatamente foi tomada a decisão.

Ontem mesmo o ministro Paulo Guedes defendeu a redução da estabilidade e novas regras de avaliação para os servidores. Seria bom se, ao discurso, seu próprio ministério aliasse também a prática. Um bom começo seria revogar a portaria que dobrou o teto do funcionalismo, dando mais um privilégio àqueles que já estão entre os mais privilegiados do Brasil. Noutra ocasião, Guedes já chegou a afirmar que o teto é baixo para o governo atrair bons profissionais. Se isso é mesmo verdade, o contexto ideal para a mudança é a reforma administrativa, que pode liberar recursos no Orçamento e, pelo visto, acabou adiada para 2023.

Pegam carona no presente dado pelo ministério à elite do funcionalismo os militares que estão no governo. Reformado na patente de capitão, Bolsonaro receberá mais R$ 2,3 mil mensais, que se somam à remuneração presidencial de R$ 40 mil, incluindo R$ 10 mil a título de “benefícios”, também fora do teto. O vice Mourão, por ser general, terá um aumento de R$ 24 mil, resultando num salário total de R$ 63,5 mil.

Ele está certo ao declarar que a medida “não é ética”, pelo momento econômico, fiscal e social que o país atravessa. Disse que, ao receber o novo salário, analisará o que fazer, se doará a seu partido ou a alguma instituição. Saem beneficiados, ainda, Luiz Eduardo Ramos, ministro-chefe da Casa Civil , e Braga Netto, da Defesa, também generais, e os incontáveis militares reformados que Bolsonaro colocou no governo em altos cargos comissionados.

Burlas “legais” ao teto são antigas, concedidas por decisões judiciais. Há muitas “indenizações” ou “gratificações” obtidas na Justiça que não atenderiam à emenda constitucional que estabeleceu o teto do funcionalismo, em 2003. A portaria fura-teto é mais uma demonstração de como o governo se curva à pressão do funcionalismo e demonstra descaso com a pandemia. 

Operação em Jacarezinho pede investigação com transparência

Valor Econômico

Fica difícil melhorar a vida das comunidades sem atacar a corrupção que dominou o aparelho de Estado

A megaoperação policial na favela do Jacarezinho, na zona norte do Rio, que terminou com 28 mortes - a mais mortífera já realizada no Estado -, deixou em segundo ou terceiro plano, como costuma ocorrer após intervenções policiais violentas, o fato de que o maior flagelo das comunidades são as gangues do narcotráfico e as milícias. Os comandantes da ação infringiram várias leis, a começar por uma das mais básicas da democracia: mesmo criminosos têm o direito a um julgamento imparcial feito segundo os preceitos legais. Como assinalou o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, há sinais de que houve “execução sumária” - atos que lembram a barbárie e não o Estado de direito.

Durante a pandemia o STF proibiu as incursões policiais nas favelas do Rio. A determinação foi desrespeitada, sem que se saibam os motivos. A Polícia Civil vem mudando suas versões, o que é mais um motivo para que tudo seja apurado com rigor e transparência. Em princípio, a operação foi deslanchada porque bandidos estariam aliciando menores de idade para o tráfico - uma verdade banal e trágica da vida nas comunidades. Entretanto, esse fato, pela recorrência, não justificaria a mobilização de 200 policiais, helicópteros e blindados a uma das áreas sob domínio do Comando Vermelho.

Depois, o argumento das autoridades foi o de que havia mandato de prisão de 25 pessoas, todas com antecedentes criminais por envolvimento com o tráfico de drogas. Essa versão se chocou com a realidade. Duas pessoas mortas não tinham antecedentes, 12 vítimas tinham de fato cometido crimes ligados ao tráfico, segundo relatório da inteligência da Polícia Civil. E 13 tinham passagens por delitos, como furto, posse de armas, roubo etc.

Embora tenham sido recebidos a bala, um tiroteio de 7 horas com 28 mortos, raros presos, um lote minguado de armas apreendidas, denotam improvisação e o desejo de ir às últimas consequências para agarrar os procurados, vivos ou mortos. Os corpos foram removidos de cena, o que não deveria ocorrer, e chegaram até 24 depois ao Instituto Médico Legal, mas não necessitavam de socorros médicos - estavam sem vida.

A polícia vence espalhafatosas batalhas menores em uma guerra que o Rio de Janeiro vem perdendo há um bom tempo. A violência é incapaz de vencer o narcotráfico, financeira e militarmente poderoso, capilarizado na política e até nas forças policiais. O uso da força bruta, que com frequência vitima inocentes, porém explorados politicamente.

“A reação dos bandidos foi a mais brutal dos últimos tempos”, disse o governador Claudio Castro, que substitui o impedido Wilson Witzel, e que também é investigado no processo de corrupção que derrubou seu antecessor. Para o secretário da Polícia Civil, Allan Tournowski, a atuação da polícia foi “técnica” e demonstrou “maturidade” e profissionalismo”. O presidente Jair Bolsonaro parabenizou os policiais e o vice Hamilton Mourão disse que eram todos “bandidos”, como se a lei não os incluísse. Muita gente discorda. “Nunca vi uma operação com tamanha quantidade de mortos”, disse o ex-secretário nacional de Segurança Pública, José Vicente da Silva Filho.

A corrupção endêmica do Estado no Rio facilitou a entrada do narcotráfico na política e na polícia. O exemplo vem de cima: em 4 anos, 5 governadores e ex-governadores foram presos e um foi afastado por corrupção. A Assembleia Legislativa não é melhor. 16 deputados estaduais são réus na Justiça ou estão presos por corrupção, falsidade ideológica e compra de votos. 27 dos 70 deputados são investigados por “rachadinhas”, captura do salário de funcionários dos gabinetes, reais ou fantasmas, entre eles o senador Flavio Bolsonaro.

Assaltado pela bandidagem de terno e gravata ou de camiseta e havaianas, o Rio de Janeiro é a base política do presidente Jair Bolsonaro, que o reelegeu por quase três décadas como deputado federal. Ele e seus filhos aprovam e elogiam a atuação das milícias. Não há interesse ou vontade política de acabar com o narcotráfico, supondo que isso ainda seja possível. A melhor experiência recente foi a das Upas, que falhou por falta de continuidade e amplitude, e porque o então governador Sergio Cabral estava muito ocupado assaltando os cofres públicos.

Há meios eficientes, testados e conhecidos de combater o tráfico de drogas e armas e melhorar a vida das comunidades - um trabalho de anos. Mas a tarefa torna-se muito mais difícil sem que se ataque a corrupção que dominou o aparelho de Estado.

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