sábado, 22 de maio de 2021

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

EDITORIAIS

Variante indiana dispara alerta para falta de testes

O Globo

A dúvida não era se a variante indiana do Sars-CoV-2, considerada “preocupação global” pela Organização Mundial da Saúde (OMS), chegaria ao Brasil, mas quando. Dúvida não há mais. Na quinta-feira, o governo do Maranhão confirmou os primeiros casos de Covid-19 provocados pela nova cepa que catapultou a Índia ao indesejável posto de epicentro da pandemia, com o recorde de 4.429 mortes em 24 horas na quarta-feira.

A nova variante foi identificada em tripulantes do navio Mv Shandong Da Zhi, com bandeira de Hong Kong, que chegou a São Luís vindo da África do Sul em 7 de maio. Quinze tripulantes testaram positivo para a Covid-19. Nos seis testes genômicos que puderam ser feitos, todos deram positivo para a cepa B.1.617.2, linhagem da variante indiana. A embarcação, que transporta 24 passageiros, está isolada em alto-mar, sem permissão para atracar.

Tudo sob controle? Claro que não. Pelo menos três pacientes com sintomas de Covid-19 saíram da embarcação para ser atendidos em terra. Tiveram contato com cerca de cem pessoas, em tese rastreadas para testagem e isolamento. Autoridades informaram que não foi constatada transmissão local da variante, mas o flagrante fracasso brasileiro para erguer barreiras sanitárias na pandemia não autoriza despreocupação. Não se sabe se há outros casos da variante indiana circulando silenciosamente pelo país. O governo levou dez dias para cumprir orientação da Anvisa para proibir voos e passageiros vindos da Índia.

A situação se torna mais preocupante porque o Brasil faz pouquíssimos sequenciamentos de genoma, que permitem identificar as mutações sofridas pelo Sars-CoV-2 e monitorar as variantes que circulam. Sem esses testes, o combate à pandemia é conduzido às cegas. Não custa lembrar que o alerta para a variante de Manaus, que levou a capital amazonense a uma tragédia, foi feito por autoridades japonesas. Um vexame. Até o fim do ano passado, o Brasil sequenciara 1.768 genomas, ou 1% dos 134.859 do Reino Unido.

A testagem para Covid-19 também é pífia. O epidemiologista Wanderson Oliveira, secretário nacional de Vigilância em Saúde na gestão de Luiz Henrique Mandetta, lembra que o governo chegou a fazer um planejamento para testagem em massa capaz de monitorar 22% da população (42 milhões). Com as sucessivas trocas de ministros, as estratégias se perderam pelo caminho. No retrato de hoje, quando se analisa o percentual de testes em relação à população, o Brasil ocupa o 25º lugar num ranking de 42 países de todos os continentes, incluindo os com mais de 100 milhões de habitantes. Mas é o 38º quando se observa a relação entre número de testes e casos confirmados, sinal de que aqui se testam apenas casos suspeitos, não para detectar transmissão e prevenir o contágio.

A descoberta da nova cepa indiana no Maranhão deveria fazer soar todos os alertas. Já seria preocupante se o Brasil estivesse com a pandemia controlada, mas estamos longe disso. Infectados e mortos, mesmo estáveis, estão em patamares altíssimos. Enfermarias e UTIs permanecem lotadas. A situação expõe nossa vulnerabilidade na área crítica da testagem, em particular a genômica. Não adianta imaginar que a solução é só vacina. Sem monitorar as variantes que circulam, somos passageiros de uma nau à deriva.

Conflito entre Israel e Hamas enterrou solução de dois Estados

O Globo

O frágil cessar-fogo intermediado pelo Egito entre Israel e o grupo islâmico Hamas traz uma bem-vinda sensação de alívio às populações israelense e palestina dos dois lados da fronteira. Israel dirá ter atingido seu objetivo militar ao reduzir literalmente a pó o arsenal, os túneis e instalações bélicas do inimigo. O Hamas, por seu turno, reivindicará uma vitória política, ao proclamar-se como legítimo defensor do povo palestino, único que resistiu às investidas israelenses em Jerusalém, em contraste com a Autoridade Palestina (AP), que governa a Cisjordânia.

Surgirá naturalmente a percepção de que está de volta o equilíbrio instável de alta tensão, com choques esporádicos desde que Israel devolveu a Faixa de Gaza aos palestinos em 2005 e que o Hamas passou a governá-la em 2007. Nada mais enganoso. O cessar-fogo inaugura uma nova fase no conflito, em que ilusões se desfazem — e as perspectivas não são nada animadoras.

Do ponto de vista político, a maior vítima é a solução de dois Estados proposta nos Acordos de Oslo, de 1993. Enfraquecida desde o choque entre Israel e Hamas em 2014, ela se tornou decididamente causa perdida. Seus defensores, tanto entre israelenses quanto entre palestinos, estão enfraquecidos. Simplesmente não há clima para nenhum tipo de negociação, nem força política para que quaisquer concessões possam ser impostas ao campo político de qualquer lado. Além de 243 palestinos e 13 israelenses, o conflito matou o pouco que ainda restava do que um dia se chamou processo de paz.

Israel consolidou a política de colonização da Cisjordânia, que hoje praticamente inviabiliza as fronteiras imaginadas para o Estado palestino. Desde Oslo, a população judaica no território cresceu de 123 mil para 475 mil. Ao mesmo tempo, Israel caminhou para a direita. Movimentos de colonos e grupos religiosos nacionalistas contrários a qualquer concessão aos palestinos têm importância a cada dia maior na política interna. Nas últimas eleições, a extrema-direita racista obteve pela primeira vez assento no Parlamento.

Legislação e políticas em detrimento dos árabes com cidadania israelense fizeram fermentar entre os jovens uma revolta inédita, que os aproxima da população de Gaza e Cisjordânia. O conflito em Jerusalém Oriental, pretexto para o Hamas disparar seus foguetes, é exemplo disso. O cancelamento das eleições palestinas previstas para este ano, as primeiras depois de uma década e meia, enfraquece ainda mais a liderança de Mahmoud Abbas na AP. O Hamas tenta aproveitar o vácuo para consolidar seu poder e, com apoio do Irã, expandir a visão apocalíptica que sempre pregou a destruição de Israel.

É incerto o que o futuro reserva a esse embate. Cresce o protagonismo dos partidos árabes na política israelense. Em certa medida, trocaram o sonho do Estado palestino pela luta por direitos dentro de Israel. Ao mesmo tempo, os foguetes do Hamas e a revolta inédita entre os árabes com cidadania israelense são a prova de que, embora o processo de paz esteja morto, o nacionalismo palestino ainda está vivo.

A banalidade da mentira

O Estado de S. Paulo

A CPI está sendo útil para que os brasileiros se convençam de que estão sendo governados por um grupo político que milita ferozmente contra a verdade

O ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello mentiu várias vezes em seu depoimento à CPI da Pandemia. Em dois dias de oitiva, o general intendente, mesmo estando sob juramento, inventou respostas para questões sobre os mais variados temas – o relator da comissão, senador Renan Calheiros, apontou nada menos que 14 ocasiões em que Pazuello “mentiu flagrantemente” e “ousou negar suas próprias declarações”.

O repertório de imposturas é vasto. As mais relevantes dizem respeito à negociação para a compra de vacinas. O ex-ministro negou o que está fartamente documentado – que o governo ignorou ou boicotou diversas ofertas de imunizantes.

Pazuello chegou a dizer que o presidente Jair Bolsonaro “nunca” lhe deu ordem para interromper as conversas com o Butantan para a aquisição da Coronavac, fabricada pelo instituto paulista em parceria com a China. Confrontado com a lembrança de que Bolsonaro publicamente, e de maneira enfática, disse que jamais compraria a “vacina chinesa”, o ex-ministro teve a ousadia de argumentar que essa declaração do presidente não constituía uma ordem para cancelar a compra da Coronavac, e sim apenas uma “posição do agente político (Bolsonaro) na internet”.

Aos fatos. A primeira proposta do Butantan ao governo federal foi feita em julho do ano passado. Somente no dia 19 de outubro, o Ministério da Saúde assinou com o instituto um protocolo de intenções para adquirir 46 milhões de doses da Coronavac. O entendimento foi anunciado numa reunião de Pazuello com governadores no dia seguinte. Ato contínuo, Bolsonaro informou que havia mandado cancelar o protocolo: “Já mandei cancelar. O presidente sou eu, não abro mão da minha autoridade”. Depois, gravou um vídeo com Pazuello em que o intendente declarou sobre o assunto: “Um manda, o outro obedece”. Mais claro, impossível.

Pazuello ofendeu a inteligência alheia a respeito de diversos outros temas, do desabastecimento de oxigênio em Manaus que resultou em muitas mortes até a campanha irresponsável pelo uso de remédios sem eficácia. O ex-ministro tinha um habeas corpus para se manter calado, de modo a não produzir provas contra si mesmo, mas aparentemente preferiu mentir o tempo todo, produzindo inúmeras provas de que a mendacidade é o que melhor traduz o governo Bolsonaro.

Isso já havia ficado evidente no depoimento do ex-chanceler Ernesto Araújo, quando ele teve a coragem de negar que ajudou a criar inúmeras rusgas com a China – nosso principal parceiro comercial e origem dos insumos para a fabricação da vacina responsável por 80% da imunização no Brasil até este momento. A senadora Kátia Abreu chamou Araújo, muito apropriadamente, de “negacionista compulsivo”.

Assim, a CPI está sendo extremamente útil para que os brasileiros afinal se convençam de que estão sendo governados não apenas por mitômanos, mas por um grupo político que milita ferozmente contra a verdade. A mentira não é acidental ou circunstancial. Não é contada para escapar de situações constrangedoras ou para enganar eleitores na disputa por votos. É a essência da estratégia bolsonarista de destruição dos alicerces da democracia.

Não é possível alcançar consensos democráticos e formular políticas públicas realistas num ambiente em que o embuste é a norma e quando o debate público é travado com base em mentiras escandalosas produzidas por quem tem máxima autoridade política, como o presidente da República e seus ministros. Como informou singelamente o próprio ex-ministro Pazuello, as palavras do presidente Bolsonaro ditas em público são apenas “coisa de internet” – portanto, não devem ser levadas a sério.

Ou seja, a Presidência é ocupada hoje por um animador de auditório, que, de novo segundo o intendente Pazuello, “diz o que vem à cabeça”, para êxtase de seus fanáticos seguidores. E, ao contrário de ser cômico, esse comportamento é trágico. O quase meio milhão de mortos pela pandemia e a indiferença de parte da sociedade com a perda de 2 mil vidas por dia são o resultado da progressiva desmoralização da verdade.

Guerra contra a cultura

O Estado de S. Paulo

Desmantelamento da cultura vem crescendo cada vez mais com o governo Bolsonaro

O presidente Jair Bolsonaro subiu ao poder como paladino de uma “guerra cultural” em nome dos valores tradicionais e contra supostos não patriotas. Se já não fosse alarmante a ideia de um governo de todos os brasileiros movendo guerra contra alguns, a realidade é mais perniciosa: não uma guerra contra tal ou qual cultura, mas uma guerra contra a cultura.

Mapeando detalhadamente o rastro de destruição dessa guerra, a Ordem dos Advogados do Brasil protocolou uma ação civil contra “uma série orquestrada de atos do Poder Executivo Federal que têm por objetivo declarado o desmonte da cena cultural no país”

Já em seus primeiros dias, sob o pretexto em si pertinente das pressões fiscais, o governo rebaixou o status do Ministério da Cultura, subordinando-o como Secretaria primeiro ao Ministério da Cidadania, depois ao do Turismo, e interrompendo o fornecimento de verbas e a continuidade de políticas públicas sem maiores justificativas técnicas.

Em dois anos, foram seis secretários com os perfis cada vez mais diferentes e menos qualificados, culminando na indicação do ator Mário Frias, um militante bolsonarista sem experiência em gestão cultural. Para o comando da Secretaria de Fomento, foi recrutado o ex-PM André Porciuncula, notório por suas provocações a artistas e produtores culturais. Essa intrépida trupe promoveu toda sorte de demissões e exonerações de técnicos e especialistas, em um “aviltante processo de perseguição e tentativa de controle político partidário ideológico”.

Mas este é só o pano de fundo. O objeto da ação são as limitações ilegais e intervenções indevidas no procedimento de aprovação dos projetos culturais no âmbito da Lei Rouanet, o principal mecanismo de fomento à cultura.

Note-se que não cabe ao poder público escolher quais projetos serão financiados, e sim às pessoas físicas ou jurídicas que optam por destinar uma parte de seus impostos a projetos que consideram valiosos. Não é função da Secretaria avaliar a qualidade dos projetos – se têm ou não “valor” –, mas apenas a sua adequação a critérios formais, como a compatibilidade do orçamento aos valores de mercado ou a competência técnica dos produtores.

Mas o governo não só limitou drasticamente a quantidade de projetos aprovados, como está fazendo – ou tentando fazer – aquilo mesmo que recriminava em seus opositores: orientar as aprovações conforme suas afinidades político-ideológicas.

Entre 2011 e 2020, foram aprovados em média 8,7 mil projetos por ano. Para 2021, a pasta estabeleceu uma meta arbitrária de 4,4 mil análises. Como nem todos os projetos analisados são aprovados, e nem todos os projetos aprovados captam recursos, estima-se que em 2021 seriam executados apenas 316 projetos – cerca de 1/5 da média anual da última década. Para piorar, a Secretaria vem negando a prorrogação dos prazos de captação para os projetos aprovados, prevista legalmente em situação de casos fortuitos, como a pandemia.

Mais grave é o uso político. A pasta determinou a suspensão da captação de projetos em praças onde vigoram restrições à circulação, alegando, com flagrante hipocrisia, riscos de aglomeração. Isso impede que os projetos captem recursos para a execução após a flexibilização das restrições. Assim, para retaliar os governos subnacionais contrários à política bolsonarista de enfrentar o vírus de “peito aberto”, o governo está asfixiando as produções.

De resto, a pasta não publicou o edital de convocação da Comissão de Incentivo à Cultura, o órgão colegiado responsável pela aprovação dos projetos, e concentrou arbitrariamente seus poderes nas mãos de Porciuncula.

Bolsonaro chegou ao poder capitalizando as inquietações do eleitorado com as ambições de hegemonia cultural das militâncias de esquerda, cuja expressão mais nefasta é a chamada “cultura do cancelamento”. Ao invés de sanear os mecanismos públicos de fomento à pluralidade de ideias e valores, neutralizando o autoritarismo da cultura do cancelamento, o autoritarismo bolsonarista está promovendo indiscriminadamente o cancelamento da cultura. 

Títulos verdes

O Estado de S. Paulo

Produtividade do agro deve se apoiar em critérios de sustentabilidade

Ano após ano o agronegócio brasileiro vem quebrando recordes de produtividade. Nas últimas décadas, o empreendedorismo apoiado por boas políticas públicas, sistemas de crédito eficientes e investimentos em tecnologia promoveu uma revolução. Em nossa geração, a atividade agropecuária tem o desafio de tornar sua produção plenamente sustentável. Essa nova meta, longe de ser antagônica à anterior, pode impulsioná-la. Os ingredientes são os mesmos, e os resultados, além dos benefícios ambientais, também: produtividade, rentabilidade e empregabilidade.

Para alavancar essa transformação, o financiamento é crucial. Em meados da última década surgiu o mercado global de títulos verdes, que hoje contabiliza mais de US$ 800 bilhões em emissões. O Brasil – o maior exportador de carne bovina, aves, soja, café e suco de laranja – é identificado como um dos mercados com maior potencial de absorção de títulos verdes. Inicialmente, esse potencial estava restrito aos exportadores do setor florestal. Mas nos últimos anos o cenário vem mudando.

Como mostrou reportagem do Estado, espera-se que em 2021 o montante cresça ao menos 50%. Em 2020, usinas de açúcar e etanol lideraram as transações. Mas empresas produtoras de grãos e ovos também contribuíram para a captação chegar a R$ 1,47 bilhão no Brasil e US$ 655 milhões no exterior – US$ 940,8 milhões ao todo. Neste ano, as captações já totalizaram US$ 1,213 bilhão.

No ano passado, muitas iniciativas do setor público e do privado ajudaram a melhorar o ambiente de negócios para a emissão de títulos verdes. A B3, que já trabalhava com o Índice de Sustentabilidade Empresarial e o Índice de Carbono Eficiente, lançou um índice de critérios ambientais, sociais e de governança para seleção de carteiras.

A Lei 13.986/20 introduziu inovações para atrair investimentos internacionais. Uma delas é a concessão de terras rurais como garantia a investidores estrangeiros, reduzindo seus riscos. Além disso, abre a possibilidade de emitir Certificados de Recebíveis do Agronegócio (CRAs) diretamente em moedas estrangeiras no mercado offshore. Isso deve facilitar emissões de títulos para produtores médios e cooperativas.

Vale lembrar que há uma lacuna no financiamento da agricultura familiar. Atualmente, ela responde por quase 80% dos estabelecimentos agrícolas no Brasil e 23% da receita, mas recebe apenas 14% do crédito para o setor.

Recentemente, a Confederação da Agricultura e Pecuária e a Embrapa lançaram o Projeto Pravaler, com o intuito de levar ao campo as pesquisas desenvolvidas pelo Projeto Biomas e outros conhecimentos para “viabilizar aos produtores soluções para a proteção, a recuperação e o uso econômico e sustentável de propriedades rurais”.

Em setembro, o Banco Central havia lançado uma agenda ampla de sustentabilidade que inclui desde créditos rurais até o monitoramento de fazendas por satélite. Uma das preocupações desse programa é estabelecer altos padrões de transparência para evitar danos reputacionais do chamado “greenwashing” – negócios que se travestem fraudulentamente de “sustentáveis” para receber investimentos verdes.

Em parceria com a Climate Bond Initiatives (CBI), a maior autoridade mundial em títulos verdes, o Ministério da Agricultura lançou, em agosto passado, um plano de investimentos voltado para financiar projetos de agricultura sustentável. Entre os desafios apontados pela CBI estão o aprimoramento de requisitos regulatórios a fim de facilitar o acesso ao mercado de capitais; a construção de um pipeline de investimentos verdes; e – sobretudo ante os atos e palavras irresponsáveis do atual governo na área ambiental – comunicar melhor as realizações já alcançadas na agricultura sustentável.

O Brasil é o guardião do bioma mais diverso do planeta e caminha a passos firmes para se tornar o “celeiro do mundo”. Para integrar essas duas vocações e promover uma revolução verde, é preciso reprimir as práticas agrícolas predatórias e fomentar as sustentáveis – ou seja, separar o joio do trigo. A boa notícia é que o último produto vem crescendo em escala muito maior que o primeiro.

Lobby incansável

Folha de S. Paulo

Magistrados logram mais uma vez preservar férias injustificáveis de 60 dias

Mais uma vez, os magistrados e procuradores brasileiros escaparam de um acerto de contas com os princípios republicanos. Conseguiram adiar a votação de uma proposta de emenda constitucional que poderia pôr fim às férias de 60 dias, um dos muitos privilégios de que gozam as duas categorias.

Desta vez, o pretexto foi a pandemia —o momento não seria oportuno para esse tipo de mudança.

Não é de hoje que se tenta acabar com a regalia, indisponível para a esmagadora maioria dos trabalhadores do país. Iniciativas para fazê-lo surgem há décadas, mas são invariavelmente frustradas pelo poderoso lobby do setor.

Os motivos alegados para a permanência do duplo descanso vão do trivial ao escárnio. Não se trata de carreiras como as demais, dizem alguns. O nível de estresse a que estão sujeitos os magistrados é muito alto, proclamam outros.

A verdade é que não faz sentido econômico, organizacional ou filosófico dobrar as férias para compensar uma ou outra aspereza das carreiras, que já estão entre as mais bem remuneradas do serviço público, desconsiderados os penduricalhos extrassalariais.

São exatamente as singularidades e responsabilidades de juízes e procuradores que deveriam justificar esses altos salários.

Do ponto de vista da relação custo-benefício, observe-se, nossa Justiça está entre as piores do mundo.

Em 2019, o Judiciário brasileiro consumiu 1,5% do Produto Interno Bruto (sem contar ministérios públicos e defensorias). É uma proporção de despesa muitas vezes maior do que a de vários países das Américas e da Europa.

O México, por exemplo, gasta 0,49%; o Uruguai, 0,32%; a Itália, 0,18%; a França, 0,15%; os EUA, 0,14%. Ao que consta, a eficiência de nossa Justiça não equivale a dez vezes a da francesa.

Os únicos países cujos gastos se aproximam dos do Brasil são a Costa Rica (1,25%), Argentina (1,05%) e El Salvador (0,99%).

É claro que eliminar as férias dobradas de juízes e reverter os inumeráveis penduricalhos acoplados a seus vencimentos não bastariam para tornar o Judiciário brasileiro eficiente, mas representaria um excelente primeiro passo.

Num cálculo simples, só acrescentar 30 dias de trabalho ao expediente anual dos magistrados poderia elevar sua produção em 10%.

Para além das questões orçamentárias, existem os princípios. Um dos mais fundamentais numa república é o que assevera a igualdade de todos diante da lei. Só isso já recomenda que magistrados e procuradores não tenham férias de 60 dias quando os demais servidores públicos e trabalhadores têm 30.

Quente e frio

Folha de S. Paulo

Ártico e Antártida emitem alarmes; ainda há tempo para conter a crise do clima

Os extremos gelados da Terra, nos polos Norte e Sul, emitem alguns dos sinais mais claros da iminente transformação ameaçadora do clima como o conhecemos. O planeta passou por várias reviravoltas, entre períodos glaciais e interglaciais, porém nada desencadeado por potências estranhas à natureza, como agora.

A indústria humana se tornou uma força geológica com as emissões de gases a intensificar o aquecimento global, elevar o nível dos oceanos e perturbar correntes marinhas e massas de ar. Por isso o Acordo de Paris fixou em 2º Celsius —preferivelmente 1,5ºC— o nível de segurança para aumento da temperatura na superfície.

O aquecimento varia de região para região. Nenhuma esquentou tão rapidamente nas últimas décadas quanto o Ártico, onde termômetros registraram incremento de 3,1ºC, de 1971 a 2019, segundo relatório publicado na quinta (20).

No planeta todo, a temperatura média já subiu um terço disso, 1ºC. O consequente derretimento do gelo sobre o oceano Ártico, que pode desaparecer por completo nalgum verão da próxima década, não contribui para elevar o nível do mar, mas preocupa.

Com a superfície refletora reduzida, as águas se aquecem mais sob a luz do sol, o que afeta correntes por todo o globo. O aquecimento boreal também derrete geleiras sobre terra, como as da Groenlândia, capazes de acrescentar 7,4 metros ao nível do mar em caso de desaparição completa (o que tomaria séculos ou milênios).

Nas antípodas do polo Sul, desprendeu-se para o oceano, há poucos dias, o maior iceberg conhecido, de 4.320 km², área de três municípios como São Paulo.

Mesmo que a ruptura não seja consequência do clima quente, uma aceleração do processo pode enfraquecer o freio que plataformas de gelo representam para as geleiras sobre a terra. Estas escorregariam mais depressa para o mar, e há quase oito vezes mais gelo na Antártida que na Groenlândia. O que acontece nos polos não fica nos polos, como se vê.

Nem tudo é alarme. Uma boa nova vem da Agência Internacional de Energia: estima-se que a capacidade instalada para obter energia de fontes renováveis cresceu 45% em 2020 e que ainda é factível estancar as emissões de carbono até 2050.

Para isso, seria preciso congelar novos investimentos em carvão, petróleo ou gás natural e parar de fabricar veículos movidos a combustíveis fósseis até 2035. Não é impossível —só muito improvável.

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