segunda-feira, 24 de maio de 2021

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

EDITORIAIS

Os partidos e o candidato da terceira via

O Estado de S. Paulo

O País tem um urgente desafio: encontrar um candidato competente e responsável, capaz de representar uma alternativa viável a Luiz Inácio Lula da Silva e a Jair Bolsonaro. A população não pode ser refém do lulopetismo e do bolsonarismo, opções que – por mais empenho que se coloque para identificar diferenças entre elas – convergem de forma tão cristalina no negacionismo (seja na saúde pública ou na economia), na falta de disposição para promover as reformas, na utilização da máquina pública para interesses particulares (familiares ou partidários), na irresponsabilidade da gestão pública e no exercício do poder para fins exclusivamente eleitorais.

Esse desafio à liberdade e à cidadania – encontrar um candidato a presidente da República responsável e com viabilidade política – é, em alguma medida, tarefa de toda a sociedade. Mas, ainda que todos os cidadãos sejam em alguma medida responsáveis – e é muito oportuno que ninguém se sinta alijado do processo político –, há numa democracia representativa atores institucionais sobre os quais recai especial responsabilidade pelo futuro do País. Faz-se referência aqui aos partidos políticos.

De maneira muito especial, cabe às legendas encontrar um candidato viável da terceira via, comprometido com o interesse público.

Essa específica responsabilidade dos partidos não é mero dever de ocasião, em razão das atuais circunstâncias. Nada mais distante disso. A tarefa é decorrência direta da missão institucional dos partidos políticos em uma democracia representativa: assegurar pluralidade de opções políticas. E ao falar da terceira via, é disto que se trata: garantir que o eleitor, ao votar para presidente da República, tenha uma opção de voto viável e responsável.

Por isso, a Constituição de 1988 coloca os partidos políticos entre as instituições fundamentais para a organização do Estado. Essa menção não é uma espécie de homenagem formal ou de regalia institucional. As legendas têm papel decisivo na qualidade dos candidatos que o eleitor tem à disposição. Tanto é assim que, por expressa determinação constitucional, a filiação partidária é uma das condições de elegibilidade.

Ao contrário do que às vezes se pensa, os partidos são muito relevantes no cenário político. Eles não são – não precisam ser – reféns de Luiz Inácio Lula da Silva ou de Jair Bolsonaro. Por exemplo, nas eleições de 2020, cinco partidos se destacaram quanto ao número de prefeitos eleitos: MDB (783), Progressistas (687), PSD (654), PSDB (521) e DEM (466).

Essas cinco legendas têm, portanto, inegável força política e expressiva capilaridade, não dependendo do lulopetismo ou do bolsonarismo para sua viabilidade eleitoral. Seria, no mínimo, ingênuo que, com tal potencial político, esses cinco grandes partidos não fossem protagonistas nas eleições presidenciais apresentando candidatos competentes, responsáveis e viáveis. 

Vale lembrar que, nas eleições do ano passado, o partido de Lula e aquele pelo qual Bolsonaro foi eleito presidente fizeram muito menos prefeitos que as cinco primeiras legendas. O PT elegeu 182 e o PSL, 90. O DEM sozinho elegeu duas vezes e meia o número de prefeitos do PT.

Os números das eleições de 2020 revelam que o eleitor não é submisso aos extremos lulopetista e bolsonarista. Dessa forma, encontrar um candidato viável da terceira via não é apenas um dever dos partidos, mas também uma oportunidade eleitoral.

Na urgente empreitada de encontrar um candidato de centro viável e responsável, os partidos podem resgatar o aspecto essencial de sua missão: o de intermediar a relação entre poder político e população, aproximando-os. É precisamente esse aspecto que Luiz Inácio Lula da Silva e Jair Bolsonaro negam aos partidos, quando os fazem vassalos de seus interesses particulares.

Sempre, mas especialmente agora, o País precisa dos partidos. Somente com a altiva participação das legendas, o eleitor poderá desfrutar de um mínimo de pluralismo político que o liberte da asfixiante disjuntiva entre Lula e Bolsonaro.

Limites do trabalho remoto

O Estado de S. Paulo

A rapidez com que muitas empresas, em acordo com seus empregados, conseguiram instituir regimes de trabalho diferenciados para reduzir os contatos pessoais e, assim, reduzir também os riscos de contágio pela covid-19, sem perda perceptível no resultado final, mostrou que o trabalho remoto pode ser uma boa solução para muitas atividades. O crescimento do home office durante a pandemia foi uma das transformações mais notáveis no mercado de trabalho em todo o mundo. Sua adoção permitiu a continuidade de uma grande variedade de serviços mesmo nos momentos mais graves da pandemia. É enganoso, porém, imaginar que seu alcance sobre as diferentes atividades humanas remuneradas continuará a crescer como se observou até agora. A grande maioria das profissões só pode ser exercida de maneira presencial.

O título de reportagem publicada pelo Estado (21/3) é esclarecedor: Trabalho remoto não passa nem perto da maioria.

Um imenso grupo de trabalhadores não tem como trabalhar em casa. No fim de 2019, alguns meses antes do início da crise da covid-19, esse grupo que não pode trabalhar em regime de home office somava 79,7 milhões de pessoas, ou 86% do total de empregados no País. Na ocasião, considerava-se que 12,9 milhões de trabalhadores (os 14% restantes) podiam desempenhar suas tarefas a distância, de acordo com estudo da IDados ao qual a reportagem teve acesso.

Durante o ano passado, pesquisadores do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) acompanharam a evolução do trabalho remoto, com base nos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Covid-19 que o IBGE realizou até dezembro. No dado mais recente, de novembro, o Ipea constatou que o contingente de trabalhadores atuando de forma remota somava 7,3% milhões de pessoas, o que correspondia a 9,1% das pessoas ocupadas e não afastadas. No mês anterior, correspondia a 9,6% do total.

A diferença se deve a conceitos e metodologias utilizadas em um e em outro estudo, mas ambos mostram que, mesmo quando o home office alcançou seu porcentual mais alto durante a pandemia, mal alcançou 10% do total de pessoas ocupadas. De fato, não chega perto da maioria dos trabalhadores, como diz a reportagem.

O estudo do Ipea mostra, além do limite de abrangência, o caráter diferenciado do trabalho remoto sob várias perspectivas. Quanto à renda, por exemplo, é notório que quem trabalha em regime de home office ganha em média mais do que os demais trabalhadores. Embora não constituíssem 10% do total de pessoas ocupadas em novembro do ano passado, os que trabalhavam em home office haviam recebido 17,4% da massa total de rendimentos efetivamente gerados naquele mês.

Outra característica do trabalho remoto é seu alto índice de formalização. Dos que trabalhavam em home office em novembro, 84,8% tinham registro em carteira, enquanto em todo o mercado de trabalho a informalidade alcança cerca de metade do trabalhadores.

A distribuição geográfica é outro diferencial do trabalho remoto em relação às demais ocupações. Os trabalhadores em home office concentram-se no Distrito Federal, em São Paulo e no Rio de Janeiro.

O perfil traçado pelo Ipea da pessoa em teletrabalho é predominantemente de pessoa ocupada no setor formal, com escolaridade de nível superior completo, do sexo feminino, de cor branca e idade entre 30 e 39 anos.

É um perfil muito diferente da média do trabalhador brasileiro que forma quase 90% do mercado. Este ganha menos, tem menor escolaridade, tende a estar no mercado informal, seu porcentual é maior em regiões menos desenvolvidas e está mais sujeito aos riscos de contágio por causa dos deslocamentos para o trabalho presencial. Suas oportunidades de ocupação são mais escassas e seus riscos de demissão, maiores. Com o fim do auxílio emergencial, sua renda média certamente caiu.

É essa imensa maioria do mercado de trabalho que precisa da atenção preferencial das autoridades.

O espetáculo e a Justiça

O Estado de S. Paulo

O Estado tem o dever de investigar e punir os crimes cometidos, assim como o de prevenir e reprimir ações criminosas. A atuação estatal deve ser eficiente. Respeitando os direitos e as liberdades fundamentais, não se pode transigir com a criminalidade. No entanto, o braço repressor do Estado tem sido usado muitas vezes para criar espetáculos, como forma de constranger e ameaçar, em clara manipulação de suas finalidades.

Veja-se, por exemplo, o caso do inquérito do Decreto dos Portos (Decreto n.º 9.048/2017), envolvendo o ex-presidente Michel Temer. Desde o início das investigações, o caso foi alardeado como um grande escândalo, dando como certa a ocorrência de crimes “há mais de 20 anos”.

Segundo a Procuradoria-Geral da República (PGR), o Decreto dos Portos era apenas o “ato de ofício mais recente identificado, na sequência de tratativas ilícitas que perduram há décadas”. No entanto, a Justiça absolveu sumariamente todos os acusados. Vale lembrar que o inquérito foi prorrogado diversas vezes, dando oportunidade para que se realizassem todas as diligências necessárias para a investigação. 

A sentença da Justiça Federal de Brasília é contundente quanto à fragilidade da denúncia apresentada pela PGR. “A par de serem inverossímeis, os fatos indicados na denúncia não se fizeram acompanhar de elementos mínimos que os confirmassem. Não se apontou quais seriam as vantagens indevidas recebidas ou prometidas; não se indicou como teria se dado esse ajuste entre os denunciados; não se apontou uma única razão pela qual terceiros iriam despender valores em favor de agente público por um período indefinido de tempo, ausente qualquer indicação de que teria atribuição para a prática do ato de ofício almejado. Essas informações são essenciais a qualquer denúncia que verse sobre o suposto cometimento do crime de corrupção passiva qualificada”, disse o juiz Marcus Vinícius Reis Bastos.

O caso do Decreto dos Portos não é único. Observa-se um tom exagerado em muitas denúncias. A peça que marca o início do processo penal e, portanto, deve ser extremamente rigorosa na narração dos fatos e na avaliação jurídica dos fatos narrados tem ganhado uma nota de hipérbole.

Parece que, depois da Lava Jato, nenhuma peça acusatória, para ser relevante, pode denunciar apenas crimes “comuns”. Sob essa estranha ótica, o resultado de uma investigação deveria ser sempre o desbaratamento de uma organização criminosa, além da revelação de algum sistema de lavagem de dinheiro. Muitas vezes, os fatos investigados são banais, mas a denúncia atribui-lhes dimensão de um grande escândalo.

Se o único problema dessas denúncias fosse o ridículo gerado pela discrepância de seu tom com os fatos, menos mal causaria. No entanto, esse tratamento hiperbólico dos fatos – com a atribuição de uma qualificação jurídica incompatível com o que se apurou na investigação – tem facilitado a impunidade, mesmo nos casos em que há elementos altamente comprometedores.

Tal fenômeno tem sido observado em relação às rachadinhas parlamentares, uma prática lamentável que merece punição rigorosa. Em vez de se basear nos fatos e na lei, promotores têm agido como se bastasse o escândalo público para a condenação. Por exemplo, o crime de peculato – apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio – para se caracterizar exige mais do que tem sido narrado em muitas denúncias.

Além de ser nefasta para a efetividade do sistema de Justiça, a transformação dos casos em espetáculos públicos tem um perigoso efeito colateral. Ao dar a dimensão de escândalo a toda nova operação, a toda nova investigação, nega-se à população a possibilidade de discernir entre o que tem fundamento e o que é apenas fumaça. Com isso, cada absolvição, seja correta ou não, reforça na população a ideia de que a impunidade está vencendo, que a lei é ruim e que o crime compensa. Assim, em vez de pacificar os conflitos, o sistema de Justiça os potencializa.

A vez da Eletrobras?

Folha de S. Paulo

Senado deve aperfeiçoar texto que permite privatização, mas é preciso celeridade

Não sem incluir dispositivos que pioram o texto, a Câmara dos Deputados aprovou a medida provisória que autoriza o governo a privatizar a Eletrobras. A MP segue para o Senado, que tem a oportunidade de aperfeiçoar sua redação.

Aprovado com placar de 313 votos a 167, o diploma garante recursos para a continuidade de patronagem política em estados menos desenvolvidos. Ao interferir na organização do setor, pode trazer efeitos indesejáveis, como o aumento da conta de luz.

A proposta original do governo já fora montada para aplacar resistências políticas, sobretudo das bancadas do Norte e do Nordeste, ao prever R$ 8,75 bilhões em dez anos para essas regiões, direcionados à revitalização da bacia do São Francisco e dos reservatórios de Furnas e à redução dos custos de geração na Amazônia Legal.

Tais aportes podem se justificar, apesar do risco de má gestão que sempre acompanha intervenções desse tipo. Entretanto a Câmara foi além e acrescentou outras exigências que interferem na regulação e podem se mostrar ineficientes e custosas para o consumidor.

Uma das mais esdrúxulas é a exigência de contratação de 6.000 MW de energia termelétrica, com usinas a gás natural a serem construídas no Norte, no Nordeste e no Centro-Oeste. Como não há infraestrutura, será preciso construí-la, e o custo irá para a conta de luz.

Abandona-se o critério de eficiência para a localização de usinas —em prol de interesse político.

Apesar de tudo, o saldo ainda é positivo. A proposta permite ao governo seguir com a operação de aumento de capital da Eletrobras. Haverá emissão de novas ações, mas a União não buscará manter sua participação na empresa, que cairá de 58,7% para cerca de 45%.

O processo deve render ao menos R$ 50 bilhões, dos quais metade irá para os cofres públicos e metade para reduzir a tarifa de energia. A União também reterá uma classe especial de ações, permitindo veto em temas estratégicos, e nenhum grupo poderá deter mais de 10% do capital da hoje estatal.

A médio prazo, o governo poderá vender suas ações remanescentes, em parte ou no todo, capturando a esperada valorização da empresa no mercado. Ao final, o ganho com a privatização pode facilmente superar R$ 100 bilhões.

Mesmo com balanço ainda favorável no mérito, o Senado deveria retirar do texto os dispositivos resultantes de demandas paroquiais, que interferem na organização do setor elétrico e impõem custos desnecessários ao consumidor. É preciso, sobretudo, conferir celeridade ao exame da MP, que perderá sua validade em 22 de junho.

Aborto revisitado

Folha de S. Paulo

Com maioria conservadora, Suprema Corte dos EUA debaterá esse direito da mulher

A Suprema Corte dos Estados Unidos anunciou que analisará um caso que pode mudar a jurisprudência no país sobre o direito da mulher ao aborto legal. O processo trata de uma lei aprovada no Mississippi, em 2018, que proíbe a interrupção da gravidez depois da 15ª semana de gestação.

A depender da decisão da maioria conservadora da corte, o regramento do assunto passará a ser definido estado por estado, e não mais em âmbito federal.

Em jogo está um direito instituído no país há quase cinco décadas —desde o caso Roe versus Wade, de 1973. Ali se estabeleceu a possibilidade de abortar se o feto não tiver condições de sobreviver fora do útero (em geral até por volta da 23ª ou 24ª semana de gestação).

Não faltam tentativas de grupos antiaborto de provocar novamente a Suprema Corte para rever o precedente, em especial em estados mais conservadores. Restrições nas legislações locais têm sido mais comuns, como aconselhamento obrigatório, períodos de espera e entraves burocráticos.

Em dois episódios recentes, a Suprema Corte interveio em leis dessa natureza. Em junho de 2020, vetou, por 5 a 4, uma regra da Louisiana que exigia de médicos que realizam abortos um convênio com hospital próximo de onde trabalham.

Em outro caso, de 2016, derrubou norma do Texas que impunha condições rígidas a médicos e clínicas de aborto no estado.

Hoje, com a nomeação pelo ex-presidente Donald Trump da juíza Amy Coney Barrett, os conservadores contam com 6 dos 9 assentos na corte. A decisão pendente deve ser proferida apenas em meados de 2022, ano eleitoral.

Deve-se observar que, à diferença do Supremo Tribunal Federal brasileiro, a Suprema Corte americana escolhe quais processos aceitar. Trata-se, pois, de um movimento consciente dos juízes, com impacto no debate político do país.

Pesquisas de opinião revelam que a maioria dos americanos (entre 60% e 70%, a depender da sondagem) não querem que o colegiado reverta o precedente Roe vs. Wade.

No entender desta Folha, a interrupção da gravidez por decisão da gestante deve ser tratada sob a ótica da saúde pública, não do direito penal. O procedimento, nas condições estabelecidas em lei, deve ser um direito das mulheres, como se dá na maioria das democracias mais desenvolvidas.

O Brasil faria bem em ampliar as possibilidades de aborto legal; aos Estados Unidos conviria evitar retrocessos nessa matéria.

Distorções revelam urgência da reforma administrativa

O Globo

Não faltam motivos para uma reforma administrativa séria. Não bastasse ser a segunda maior despesa do Orçamento, menor apenas que a Previdência, a folha do funcionalismo público apresenta distorções nos níveis salariais entre os vários Poderes. Os maiores beneficiados, segundo o último Atlas do Estado Brasileiro, do Ipea, com dados de 2019, estão nas áreas que mais costumam resistir às mudanças: Judiciário e Ministério Público.

A média salarial dessas duas categorias, segundo o Atlas, é de R$ 12.115, enquanto no Legislativo está em R$ 6.011, e, no Executivo, em R$ 4.026. A distorção ainda é maior no âmbito federal, em que a média salarial das duas é R$ 15.274. No Legislativo federal, é R$ 9.438. Na realidade, os valores são ainda maiores no topo das carreiras, porque o levantamento não considera penduricalhos que inflam a remuneração de juízes e procuradores, nem as benesses de deputados e senadores. “Entre as dez ocupações mais bem pagas do serviço público brasileiro, sete são federais e nove estão no Judiciário ou no Ministério Público”, afirma o estudo lançado com o Atlas. O mundo desses funcionários é muito diferente do setor privado. Há férias de mais de 30 dias, promoções baseadas apenas em tempo de serviço e muitas outras regalias pagas pelo contribuinte. Na esfera federal, cerca de 49% dos servidores ganham mais de R$ 15 mil, valor que os coloca com folga entre os 5% de maior renda no país.

Pois a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) da reforma administrativa encaminhada pelo governo ao Congresso poupa justamente magistrados, procuradores, promotores e parlamentares, categorias classificadas como integrantes de outros Poderes. Pela lógica discutível do governo, o Executivo só poderia encaminhar uma PEC restrita a seus próprios servidores. Caberia ao Congresso tentar ampliar o alcance das mudanças.

Outra deficiência é que as mudanças valerão apenas para servidores contratados depois da sanção da PEC. Foi, segundo o governo, uma maneira de reduzir resistências políticas. É outro argumento discutível, já que essa oposição existirá de qualquer forma.

A questão salarial no funcionalismo é sempre explosiva e tem hoje no presidente Jair Bolsonaro uma barreira de resistência, por motivos eleitorais e corporativistas. Como aconteceu na reforma da Previdência — e como sempre ocorre quando se trata de algo que afete militares e o pessoal de segurança pública, suas bases eleitorais.

A PEC mantém a estabilidade apenas para carreiras consideradas típicas de Estado, um princípio até razoável. Mas será necessário reduzir os elevados patamares iniciais dos salários no serviço público. Pesquisa do Banco Mundial constatou que os servidores federais brasileiros recebem em média o dobro do salário dos empregados do setor privado em funções semelhantes. É a maior diferença encontrada na relação de 53 países analisados.

A PEC está na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara. Para haver mudanças mesmo, elas precisam valer para todos, em particular funcionários de Judiciário e Ministério Público. Nessa batalha, estará em jogo a chance de o governo modernizar a administração de pessoal e adotar práticas que permitam prestar serviços melhores aos cidadãos. 

Sociedade não pode ser conivente com a violência contra as crianças

O Globo

A morte do menino Henry Borel, de 4 anos, em 8 de março, vítima de tortura e agressões, causou comoção no país. A mãe, Monique Medeiros da Costa e Silva, e o padrasto, o vereador Jairo Souza Santos Júnior, o Dr. Jairinho, foram denunciados por homicídio triplamente qualificado e estão presos preventivamente. O casal alegou que o menino caíra da cama, mas o laudo de necropsia desfez a farsa. Apontou hemorragia interna, rompimento no fígado, contusão nos rins e no pulmão, lesões na cabeça, escoriações no nariz e hematomas no punho e no abdômen, sinais inequívocos de uma agressão monstruosa. Tão chocante quanto as muitas marcas da barbárie no corpo da criança é o fato de as sessões de tortura serem do conhecimento de várias pessoas. Pelo menos a mãe e a babá sabiam. E ninguém fez nada para salvá-lo.

Histórias como a de Henry infelizmente são uma rotina vexatória no país. Sem distinção de classe social, crianças são torturadas, espancadas e abusadas sob um silêncio criminoso. Menos de dois meses depois do assassinato covarde de Henry, a menina Ketelen Vitória da Rocha, de 6 anos, morreu depois de passar dias internada num hospital, vítima de ferimentos graves causados por espancamento. A criança fora torturada e agredida pela mãe e pela madrasta em sua casa de Porto Real, Sul Fluminense. As duas estão presas. A avó tinha conhecimento das constantes agressões, que incluíam chicotadas com o fio da TV, mas alegou medo de represália para não denunciá-las.

Um estudo da Fundação para a Infância e Adolescência (FIA) do Rio mostra que crianças de até seis anos são as maiores vítimas dessas agressões (58%). Na maior parte das vezes, elas acontecem dentro de casa. As que têm entre 7 e 11 anos representam 30%, e as de 12 a 17 anos, 12%. A violência é mais comum contra meninas (62%). Pais e padrastos são os autores mais frequentes (40% e 20% respectivamente). Quase metade dos casos (49%) envolve abuso sexual. Violências psicológica e física respondem, juntas, por 40%.

De acordo com dados do Observatório da Criança e do Adolescente da Fundação Abrinq, a situação em todo o país tem se agravado. Em 2009, foram feitas 9 mil notificações de casos de violência contra crianças. Em 2018, já eram 59 mil.

Muitas dessas histórias escabrosas poderiam ter tido outro desfecho. Se quem sabia das agressões reiteradas de Jairinho a Henry tivesse comunicado o fato à polícia, inclusive a mãe — importante dizer, não se trata de uma opção, mas de obrigação prevista em lei —, talvez o menino pudesse ter sido afastado do convívio com o padrasto — e isso salvaria a sua vida.

O perfil violento do vereador era conhecido pela ex-mulher e por ex-namoradas, cujos filhos também foram agredidos por Jairinho, que era chamado de “monstro”. No entanto integrava o Conselho de Ética da Câmara Municipal, de que só foi destituído após o crime. Há casos em que o silêncio pode ser tão letal quanto uma arma. A sociedade não pode ser cúmplice dessa barbárie que envergonha o país.

Evidências de recuperação e a sina dos voos de galinha

Valor Econômico

Os pacotes de retomada da economia lançados pelos países ricos e a alta das commodities vão salvando o dia. Já vimos isso antes. Não dura

Os sucessivos recordes na arrecadação federal mostram que a economia tem sobrevivido melhor do que o esperado ao flagelo do coronavírus. O recorde histórico de abril, R$ 156,8 bilhões, reflete a melhora generalizada da atividade econômica, comemorou o ministro da Economia, Paulo Guedes. O recolhimento de tributos no primeiro quadrimestre é igualmente recorde na série iniciada em 1995.

Não faltam dados para confirmar o otimismo do ministro. No entanto, essa demonstração de força da economia ocorre em meio à tragédia das mortes provocadas pelo coronavírus, contadas aos milhares por dia. É aflitivo ver a lentidão com que a população brasileira tem sido imunizada.

No primeiro quadrimestre, as receitas com o Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) avançaram 24,75%, em termos reais, sobre igual período de 2020. Reflete maior lucratividade das empresas, avalia a Receita.

As microempresas também dão mostra de vigor. Os recolhimentos do Simples ficaram em R$ 35,276 bilhões no quadrimestre, 16,96% maiores, em termos nominais, do que em 2020. Outro dado: embora tenham sido autorizadas, em abril, a adiar os recolhimentos do Simples Nacional, apenas 23% das microempresas e dos Microempreendedores Individuais (MEIs) usaram essa prerrogativa.

O aumento de 5,7% no valor em dólares das importações é outro sinal de economia em aquecimento. As importações, lembra a Receita, são principalmente de insumos para uso industrial.

A renda das pessoas físicas que pagam Imposto de Renda também aumentou. Os recolhimentos do IRPF cresceram 41,78% na comparação com o primeiro quadrimestre do ano passado, impulsionados por ganhos em aplicações nas bolsas de valores, pelo recolhimento de cotas do imposto e por ganhos apurados na venda de empresas de sua propriedade.

A movimentação em participações societárias explica parte do aumento nas receitas do IRPF e também do IRPJ e da CSLL. Não é possível saber, segundo a Receita, se esse dado reflete crise ou recuperação. O fato é que essas movimentações ocorreram e pelo menos parte delas geraram ganho de capital.

Os dados de abril refletem o estado da economia de março. Assim, a base de comparação em 2020 ainda estava afetada pelas medidas de isolamento social que derrubaram a atividade econômica no ano passado. Há crescimento mesmo desconsiderando esse efeito, informa a Receita.

Os dados da arrecadação confirmam o que bancos, corretoras e analistas já haviam visto: a economia está rodando num patamar mais alto do que o esperado no início do ano. O governo revisou para cima, de 3,2% para 3,5%, sua estimativa de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB). É uma projeção até conservadora, pois há quem calcule uma expansão na casa dos 4%.

Ainda assim, é imperativo sublinhar: se o processo de vacinação dos brasileiros estivesse mais avançado, a recuperação estaria num ritmo ainda maior, mostram dados do Ministério da Economia.

Estudo divulgado esta semana pela Secretaria de Política Econômica (SPE) da pasta mostra que há uma correlação direta entre a quantidade de pessoas vacinadas e as perspectivas de expansão do PIB. Quanto maior a imunização, mais forte é o crescimento.

Isso torna ainda mais graves as constatações, feitas na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid, de que o governo desperdiçou oportunidades de comprar vacinas em maior volume e num calendário mais antecipado do que o que se vê agora.

A chance desperdiçada de um crescimento mais robusto tem sido mascarada pelos sinais de uma recuperação puxada pelo setor externo. Os pacotes de retomada da economia lançados pelos países ricos e a alta na demanda das commodities vão mais uma vez salvando o dia. Já vimos isso antes. Não dura.

Enquanto isso, os sinais de deterioração da estrutura econômica continuam a se mostrar. Como alertou o secretário especial de Fazenda, Bruno Funchal, a alta dos juros longos, animada pela incerteza sobre os rumos das contas públicas no país, encarece investimentos. O tempo para aprovar reformas é cada vez mais exíguo e a disposição dos congressistas para adotar medidas amargas, cada vez menor. Chances são desperdiçadas uma a uma, e assim seguimos na sequência de “voos de galinha”.

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