quinta-feira, 27 de maio de 2021

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

EDITORIAIS

Para apuração das denúncias, Salles precisa ser afastado

O Globo

A temperatura subiu no Ministério do Meio Ambiente. Desde a Operação Akuanduba, da Polícia Federal, na semana passada, o ministro Ricardo Salles e seu braço-direito, o presidente do Ibama, Eduardo Bim, enfrentam denúncias graves que envolvem a exportação ilegal de madeira da Amazônia. O delegado Franco Perazzoni informou ao ministro do STF Alexandre de Moraes, a quem coube autorizar a operação, que as provas reunidas são suficientes para acusar Bim de pelo menos dois crimes: facilitação ao contrabando e advocacia administrativa (favorecimento de madeireiras). Sobre Salles, alvo de mandados de busca e apreensão com aval do Supremo, ele afirmou haver “fortes indícios” de envolvimento.

A situação do ministro não é nada confortável. As investigações da PF incluem um relatório do Coaf que aponta movimentação suspeita de R$ 1,8 milhão do escritório de advocacia de Salles, entre outubro de 2019 e abril de 2020, quando ele já era ministro. Segundo o documento, chamou atenção o “volume expressivo”, “destoando do perfil histórico de movimentações”. As informações enviadas à PF serviram de base para a Akuanduba, que mirou também servidores do Ibama. Salles classificou a operação de “exagerada” e “desnecessária”.

Ele enfrenta uma tempestade perfeita. Não faz dois meses, o então superintendente da PF no Amazonas, delegado Alexandre Saraiva, enviou ao STF notícia-crime contra Salles, acusando-o de obstruir a investigação da maior apreensão de madeira ilegal já realizada no país, além de advocacia administrativa e organização criminosa — na época, o ministro alegou que o carregamento era legal e pediu à PF para acelerar a liberação do material (cerca de 65 mil árvores derrubadas). Apesar da gravidade das denúncias, a decisão do governo Bolsonaro foi exonerar Saraiva, o denunciante.

A despeito de conduzir uma política ambiental tóxica, contaminada por recordes de desmatamentos e queimadas — que degrada a imagem do Brasil e causa prejuízos ao agronegócio —, Salles continua com prestígio diante do chefe. Um dia depois da operação que escancarou o escândalo envolvendo o ministro e o presidente do principal órgão ambiental do país, Bolsonaro disse que Salles é um “excepcional ministro”. Pior para quem bate de frente com ele. Como o coordenador de Economia Verde do Ministério da Economia, Gustavo Fontenele, demitido por pressão de Salles.

Ontem Salles faltou à reunião do Conselho da Amazônia — nem sequer mandou representante. Irritou o vice-presidente, Hamilton Mourão, que reagiu: “Falta de educação”.

É certo que, por ora, são apenas denúncias. Mas graves. Onde já se viu haver prova de crime ambiental contra o presidente do Ibama? Salles deveria ser afastado do cargo enquanto durarem as investigações, assim como ocorreu com Eduardo Bim. É evidente que o fato de continuar ministro intimida testemunhas que podem contribuir para a apuração.

Ao participar da Cúpula sobre o Clima há cerca de um mês, o presidente Jair Bolsonaro prometeu, diante de 39 líderes mundiais, zerar o desmatamento ilegal até 2030 e neutralizar emissões até 2050. Com a sucessão de escândalos na área ambiental envolvendo extração ilegal de madeira da Amazônia, essas propostas entram em combustão espontânea.

China deveria ser mais transparente em relação à origem do coronavírus

O Globo

Reportagem do GLOBO no domingo mostrou como a China tem usado a propaganda para driblar as acusações de crimes contra a humanidade na província de Xinjiang, onde 800 mil muçulmanos, a maioria uigures, foram mantidos presos em “campos de reeducação” para seguir os desígnios do Partido Comunista Chinês. Por mais que o combate ao terrorismo justificasse ação, é um pretexto absurdo para as atrocidades documentadas por organizações de direitos humanos na província. A China fez de Xinjiang um laboratório de vigilância, um “big brother” que mistura genética, reconhecimento facial e telefonia 5G. Apesar disso, os repórteres foram apresentados a uma Xinjiang de fantasia, com plena liberdade religiosa, versão século XXI das “aldeias Potemkin” (cidades de fachada exibidas à imperatriz russa Catarina em 1787, desmontadas assim que a caravana passava).

Xinjiang não é o único exemplo de falta de transparência da China. O mais revelador cerca a origem do novo coronavírus. O presidente americano, Joe Biden, deu ontem 90 dias de prazo para a inteligência americana esclarecer o mistério que ainda cerca a questão.

Desde o início da pandemia, uma coincidência intrigante deu azo a toda sorte de teoria da conspiração: Wuhan, onde foram relatados os primeiros casos da Covid-19, abriga o mais avançado instituto de virologia da China, onde ficam armazenadas amostras de vírus extraídos de morcegos.

Logo que surgiram os primeiros casos na cidade, o governo chinês restringiu acesso às informações. Depois endossou a hipótese de que o vírus surgira num mercado de animais, apesar de casos anteriores terem sido detectados noutros lugares. O mistério cresceu em julho, quando o “Sunday Times” noticiou que uma doença respiratória de 2012 nas cavernas de Yunnan, a 1.800 quilômetros de Wuhan, fora provocada pelo parente mais próximo do Sars-CoV-2, identificado em Wuhan pela virologista Shi Zhengli, depois pioneira no alerta para a atual pandemia.

Nesta semana, o “Wall Street Journal” confirmou um despacho diplomático americano de janeiro, noticiando três casos de uma doença respiratória similar à Covid-19 no laboratório de Wuhan em novembro de 2019, um mês antes do primeiro caso oficial de infecção pelo Sars-CoV-2. A notícia reforça a hipótese de que o vírus pode ter se originado no laboratório onde a equipe de Shi fazia experiências genéticas com coronavírus de morcegos.

Se o vírus vazou de lá, isso não significa que tenha sido intencional, muito menos que estejamos diante de uma arma biológica. Mas há razões para investigar a hipótese de acidente, como sustentou o jornalista científico Nicholas Wade, secundado por 18 cientistas de renome na revista “Science”. O relatório da OMS que concluiu por origem natural argumenta que é um cenário de probabilidade baixa. Não há motivo para questionar a seriedade da conclusão. Mas a missão da OMS sofreu restrição de acesso a informações. A falta de transparência da China não esconde os abusos em Xinjiang — e alimenta teorias da conspiração na pandemia.

É hora de ampliar os cuidados

O Estado de S. Paulo

O governo de São Paulo decidiu adiar a flexibilização do Plano São Paulo de enfrentamento da pandemia de covid-19 em decorrência do aumento do número de casos da doença em todo o Estado. Segundo o secretário estadual de Saúde, Jean Gorinchteyn, em uma semana foram registrados aumentos de 8,3% no número de casos de covid-19 e de 7,8% nas internações em leitos de UTI e enfermarias. Os indicadores epidemiológicos mostram que São Paulo está em uma curva ascendente na média móvel de casos, o que, evidentemente, impõe o aumento das restrições à circulação de pessoas, não o contrário.

Em boa hora, prevaleceu a recomendação do Comitê de Contingência da Covid-19, composto por especialistas altamente qualificados, de ao menos manter as atuais restrições. Sabe-se das pressões de natureza econômica para que a guarda seja baixada. Mas o governador João Doria (PSDB) foi prudente ao acatar os argumentos do colegiado científico que o assessora. “Não seria conveniente neste momento (manter) a flexibilização que seria iniciada no dia 1.º de junho”, disse o coordenador executivo do Comitê de Contingência, João Gabbardo. Já Doria afirmou que “os indicadores da pandemia recomendam cautela”. A decisão do Palácio dos Bandeirantes havia sido antecipada pelo Estado.

Assim, a vigência da fase emergencial foi prorrogada até o dia 14 de junho. Portanto, shoppings, lojas, restaurantes, salões de beleza e academias, entre outros estabelecimentos comerciais, seguem podendo funcionar das 6h às 21h, com ocupação máxima de 40% da capacidade.

A rigor, o novo afrouxamento da chamada fase de transição da fase emergencial, ora vigente, para a fase laranja, anunciado na semana passada, nem sequer deveria ter sido cogitado. Só o foi porque então havia estabilidade do número de casos e mortes decorrentes da covid-19 em São Paulo. O problema é que estes patamares de estabilidade, e não apenas no Estado, mas no País, estão muito elevados, o que impõe uma pressão constante sobre os sistemas de saúde público e privado, que já operam no limite de sua capacidade em muitos municípios.

O Observatório Covid-19 da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) mostra que, pela primeira vez em 15 meses de pandemia, a mediana de idade dos internados em todo o País está abaixo dos 60 anos. É verdade que a taxa de mortalidade dos mais jovens é menor. Mas, em contrapartida, este contingente populacional permanece internado por mais tempo, o que sobrecarrega as UTIs e enfermarias. Quanto menor a capacidade dos hospitais de absorver todos os doentes que a eles acorrem, maior é o número de mortes dos pacientes mais vulneráveis. E a Nação não pode tolerar o agravamento deste quadro macabro como se fosse um fato da natureza.

A ser mantida a atual média móvel de mortes diárias, o Brasil chegará ao meio milhão de mortos por covid-19 em cerca de um mês. A projeção mais pessimista do Instituto para Métricas de Saúde e Avaliação (IHME) da Universidade de Washington para o Brasil indica que o País terá perdido 973 mil de seus cidadãos em setembro caso as medidas de proteção contra o vírus sejam negligenciadas – coletiva e individualmente.

Não se pode perder de vista alguns fatos incontornáveis. O coronavírus segue fora de controle. Há novas cepas identificadas no País, potencialmente mais contagiosas, como a variante indiana. A vacinação da população é claudicante, em velocidade muito aquém da velocidade de circulação do patógeno. No momento, apenas 10% da população recebeu as duas doses da vacina. É muito pouco diante da urgente necessidade de conter o avanço da doença e – o que é uma vergonha – diante da capacidade do Sistema Único de Saúde (SUS) de executar o Plano Nacional de Imunizações (PNI), que só não repete a excelência de campanhas passadas por falta de imunizantes.

Os epidemiologistas têm alertado para o risco de uma terceira onda de covid-19 no País, ainda mais mortal. Esta peste não terá fim até que a população-alvo esteja totalmente imunizada contra o vírus, o que exige um farto estoque de vacinas. Até lá, o isolamento social e o uso correto de máscaras são as únicas formas de amainar este flagelo que se abateu sobre a Nação. 

Presidencialismo de submissão

O Estado de S. Paulo

O Ministério da Economia editou uma portaria para dar ares de legalidade às manobras destinadas a permitir que congressistas aliados do governo de Jair Bolsonaro possam determinar o destino de vultosos recursos orçamentários, definição que caberia ao Executivo.

Como o Estado revelou, o governo permitiu que, no Orçamento do ano passado, parlamentares de sua base interferissem diretamente na gestão de R$ 3 bilhões, alocados ao Ministério do Desenvolvimento Regional. Esse dinheiro se origina das chamadas emendas do relator-geral do Orçamento, conhecidas pela sigla RP9.

Por lei, a RP9 se presta somente a remanejar recursos no Orçamento, com o objetivo de fazer correções na elaboração final, em geral para reparar algum erro técnico. Em nenhum momento essa emenda especifica em quais projetos o dinheiro deve ser empenhado, pois se trata de atribuição do Ministério para o qual a verba foi distribuída.

O Congresso tentou impor a destinação das emendas de relator, mas o presidente Bolsonaro vetou o dispositivo, alegando, com razão, que o texto “investe contra o princípio da impessoalidade que orienta a administração pública ao fomentar cunho personalístico nas indicações e priorizações das programações decorrentes de emendas, ampliando as dificuldades operacionais para a garantia da execução da despesa pública”. Obviamente, não foi Bolsonaro quem escreveu essa justificativa, e sim algum funcionário com noção mínima do manejo da coisa pública, que o presidente nunca teve.

O veto continua em vigor, mas a natureza bolsonarista também: para driblar sua própria determinação e assim agraciar aliados no Congresso com verbas, o presidente permitiu que se elaborasse um mecanismo pelo qual os governistas pudessem direcionar o dinheiro da RP9 para obras eleitoreiras.

Depois que o esquema veio à luz, gerando justificada e geral estupefação, o governo tentou desmentir o que os documentos atestavam. Sem sucesso, agora baixa uma portaria para regularizar a prática – ou para “legalizar a bandalha”, como bem qualificou o economista Gil Castelo Branco, da Associação Contas Abertas.

O malabarismo normativo do governo não anula a essência do escândalo: o governo entregou dedos e anéis ao Congresso, em particular ao Centrão, hoje senhor do destino de Bolsonaro.

O presidente abriu mão de vez de qualquer papel na administração, assumindo tão somente a função de animador de reacionários e vivandeiras. Como disse o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello na CPI da Pandemia, o que Bolsonaro vocifera é apenas “coisa de internet”, que não se traduz em ordens ou diretrizes dentro do governo. Quem manda é o Centrão.

Isso ficou claro também no modo como o governo foi apenas coadjuvante, sentado no fundo da sala, nos debates que resultaram no projeto de privatização do sistema Eletrobrás. Permitiu que os parlamentares contrabandeassem “jabutis” que, na prática, determinam como o governo deve gastar parte dos recursos oriundos do negócio. E não é por acaso que uma gorda fatia desse dinheiro ficará sob administração da Codevasf – a estatal do São Francisco que, sob administração do Centrão e com as bênçãos de Bolsonaro, incluiu cidades a centenas de quilômetros do rio e recebeu também boa parte do dinheiro das manobras orçamentárias.

Caracteriza-se assim uma nova etapa na degradação do chamado presidencialismo de coalizão, que marca a política brasileira desde a redemocratização. Depois de ter sido rebaixado a presidencialismo de cooptação com o lulopetismo, agora se transformou em presidencialismo de submissão – em que o presidente se torna vassalo do Congresso.

O modelo bolsonarista nada tem a ver, por exemplo, com a Presidência de Michel Temer, que trabalhou com o Congresso para, de fato, promover reformas requeridas pela nação. Então, a relação era de compartilhamento de poder, reduzindo muito o custo da governabilidade.

Já no caso de Bolsonaro, o presidente decidiu ser mero despachante do Centrão, na expectativa de que o Congresso não o amole enquanto ele brinca de mandão.

 Freio nas obras e no emprego

O Estado de S. Paulo

A criação de empregos é um dos principais benefícios associados à indústria da construção. No ano passado o setor abriu 112.174 postos de trabalho formal, resultado líquido de admissões e demissões. Esse total foi 5,18% maior que o do ano anterior – a maior taxa de aumento de contratações com carteira assinada, segundo números do Ministério da Economia. Além disso, o setor movimenta uma ampla teia de fornecedores de matérias-primas, bens intermediários e equipamentos, contribuindo poderosamente para a criação de vagas em outras atividades. Num momento de alto desemprego no Brasil, a perda de impulso da indústria imobiliária é especialmente preocupante, exceto, talvez, para o governo federal.

Incorporadoras têm lançado menos imóveis do que poderiam, embora a demanda permaneça robusta. Lançaram-se 28.258 unidades no primeiro trimestre. Esse número é 3,7% maior que o de um ano antes. Nesse período foram vendidas 53.185 unidades, com aumento de 27,1% em relação ao total comercializado entre janeiro e março de 2020. Mas, apesar do aumento das vendas, os lançamentos em 12 meses – 168.673 unidades – foram 10,5% menores que no período anterior.

Diante do aumento de preços dos materiais de construção, as empresas têm sido cautelosas, por insegurança quanto à evolução dos custos depois do início das obras, como informou o Estado. O material de construção encareceu quase 30% nos 12 meses até abril. Isso deverá refletir-se em preços mais altos para os compradores finais – mais precisamente, para aqueles em condições de absorver despesas maiores.

Isso exclui uma grande parcela de possíveis compradores. Também por isso incorporadoras estão deixando o programa Casa Verde e Amarela (CVA), versão atualizada do Minha Casa Minha Vida. No primeiro trimestre de 2020 os projetos vinculados ao programa proporcionaram 55,6% dos lançamentos. Neste ano a participação se reduziu a 44,4%.

Mas também o governo diminuiu seu comprometimento com o CVA e isso é muito mais grave que a mudança de posição do setor privado. Em abril, o Broadcast, serviço em tempo real da Agência Estado, mostrou o corte da verba orçamentária prevista para o programa. O governo decidiu, no entanto, rever sua posição, mas sua nova proposta só contemplou o remanejamento de R$ 400 milhões, ou 27% do valor cortado. Em abril, estavam previstos 769 empreendimentos. Eram 211,2 mil moradias. Estavam em andamento 42% das obras, 21,5% estavam paradas, 5% nem haviam sido iniciadas e 31,5% estavam prontas, segundo informação oficial citada em reportagem.

A recomposição da verba poderá manter o programa em funcionamento, mas serão necessárias mais informações para uma avaliação dos possíveis danos ao CVA. A diminuição de recursos para essas obras é duplamente prejudicial, porque reduz a oferta de moradias para famílias de baixa renda e, ao mesmo tempo, limita a criação de empregos e freia a retomada econômica.

Os dois efeitos são particularmente graves em vista das condições do mercado de emprego e da recuperação ainda incerta da economia. Os últimos dados oficiais mostraram desocupação de 14,4% da força de trabalho no trimestre dezembro-fevereiro. A evolução do Produto Interno Bruto (PIB) no primeiro trimestre pode ter sido melhor do que se previa no começo do ano, mas isso ainda será verificado quando sair o balanço do período. De toda forma, a maior parte das projeções aponta para este ano crescimento econômico inferior a 4%. Se isso se confirmar, só em 2022 o País sairá do buraco onde afundou em 2020, quando o PIB encolheu 4,1%.

As incertezas quanto à evolução da pandemia, agravadas pelo avanço ainda lento da vacinação, pioram a insegurança econômica. Um avanço vigoroso da construção, incluído o programa CVA, tornaria mais veloz e mais fácil essa travessia, mas essa ajuda está sendo em parte desperdiçada. Nenhuma dessas incertezas, no entanto, parece causar grande inquietação às figuras do Executivo, em especial ao presidente da República, empenhado principalmente em exibir poder para seus mais devotos seguidores.

Vacina para o mundo

Folha de S. Paulo

Por razões morais e pragmáticas, países ricos deveriam doar doses aos pobres

Vacinas contra a Covid-19 não somente foram desenvolvidas em tempo recorde —menos de um ano desde a declaração da pandemia— como foram produzidas, distribuídas e aplicadas em larga escala.

Apenas seis meses depois de a primeira dose ter sido inoculada em uma pessoa fora de situações experimentais, 1,6 bilhão de doses já foram injetadas em braços humanos. Espera-se que, até o fim deste ano, a indústria farmacêutica produza 11 bilhões de doses, em tese suficientes para imunizar toda a população adulta do planeta.

A história soa menos gloriosa quando analisamos a repartição das vacinas até aqui. Países ricos, que agregam 15% da população mundial, abocanharam quase metade dos imunizantes disponíveis.

Enquanto um terço de seus habitantes recebeu ao menos uma dose, nas nações pobres essa proporção mal chega a 0,2%.

Há aí, como classificou o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom, um “fracasso moral catastrófico”. E, mesmo para quem assume a lógica do eu primeiro, pode haver um erro de cálculo.

Afinal, ao deixar grandes populações sem proteção, aumenta-se a probabilidade de surgirem, por seleção natural, variantes mais perigosas do vírus, com potencial de atingir todos os países, inclusive os ricos e avançados na vacinação.

Não é necessário, porém, mais do que um pouco de realismo para perceber que a repartição equitativa dos imunizantes nunca teve a menor chance. O mundo está dividido em países e não se deve esperar que o presidente dos EUA, por exemplo, dê à vacinação dos moçambicanos a mesma prioridade que dá à dos americanos.

Tal constatação, obviamente, não desobriga os líderes dos países ricos de agir moralmente e pensar também no resto do mundo, se esforçando para tornar a distribuição um pouco menos desbalanceada.

No primeiro semestre de 2020, quando ainda não se sabia quais imunizantes seriam aprovados, fazia sentido para um país como o Canadá encomendar o equivalente a dez unidades de vacina por habitante. Hoje, sentar-se em cima desses estoques é injustificável.

É imperativo que as nações ricas agilizem as doações das doses que não irão usar, de preferência para os países mais pobres e/ou sob maior risco epidemiológico. Adicionalmente, deveriam assumir uma posição ainda mais ativa num programa para assegurar a vacinação imediata pelo menos das equipes médicas das nações carentes.

Por qualquer cálculo de custo e benefício, é inaceitável que adolescentes saudáveis de países ricos, cujo risco de agravamento em caso de infecção é muito pequeno, já estejam sendo imunizados, enquanto médicos da linha de frente de regiões pobres ainda não.

Estado policial

Folha de S. Paulo

Polícia do RJ avança na brutalidade impondo sigilo à investigação do Jacarezinho

Ao decretar sigilo de cinco anos sobre a investigação do morticínio do Jacarezinho, a Polícia Civil do Rio de Janeiro parece se atribuir a prerrogativa de agir —no caso, provocando a morte de cidadãos— sem prestar contas à sociedade.

Desde sua realização, em 6 de maio, a batida policial levanta suspeitas de afrontas ao Estado de Direito. Está em jogo o cumprimento de precauções e precondições fixadas pelo Supremo Tribunal Federal para prevenir a repetição de incursões letais nos morros cariocas.

Em revelador desafio à autoridade do Supremo, já na lamentável entrevista coletiva sobre a operação dirigentes policiais se permitiram criticar um eventual ativismo judicial dos ministros, que estariam dificultando investigações e prisões. Em realidade era barbárie que se tentava evitar.

A ação objetivava prender 21 investigados e acabou por deter só 3 deles (mais outras 4 pessoas). Para resultado tão pífio, deixou 28 cadáveres nas vielas da comunidade, entre eles o de um policial. Trata-se de um fracasso evidente, mas a Polícia Civil quer fazer crer que não.

São abundantes os indícios de violência abusiva, para dizer o mínimo, segundo testemunhos e vídeos dos moradores. Em desacato a ordem do STF, corpos foram retirados do local para descaracterizar a cena do crime e impedir perícia.

Seguindo o padrão de acobertamento, Rodrigo Oliveira, subsecretário de Planejamento e Integração Operacional da corporação, impede agora a imprensa de obter documentos da investigação via Lei de Acesso à Informação (LAI).

Um escárnio: alega-se que tal divulgação poderia “comprometer atividades de inteligência, bem como de investigação ou fiscalização em andamento”. A legislação veda negar publicidade a informações relacionadas com possíveis violações de direitos humanos por agentes público, e disso se trata.

Não para a polícia fluminense, para a qual “falar em violação aos direitos humanos antes da conclusão das investigações é precipitado e busca politizar a discussão”.

Sob pretexto da infrutífera guerra ao tráfico, policiais instauram por conta própria o amplo “excludente de ilicitude” sonhado por Jair Bolsonaro, que seus seguidores não lograram fixar em lei. Esse populismo da brutalidade, deploravelmente, pretende justificar os piores atos de forças incapazes de prover o básico da segurança pública.


Portaria regulariza caixa preta das emendas do relator

Valor Econômico

Portaria legitimadora facilita a corrupção e a manipulação escusa do orçamento

Toda a esdrúxula bagunça na aprovação do orçamento de 2021, com os inacreditáveis cortes nas despesas obrigatórias para satisfazer emendas do relator, concentradas no Centrão, foi esclarecida pela revelação de que R$ 3 bilhões dessas emendas no orçamento anterior foram feitas por baixo do pano e dirigidas principalmente a alguns parlamentares da base do governo. Os recursos foram para a compra de tratores, possivelmente superfaturados, e para o feudo do Centrão, a Codevasf. A confusão deveria servir para um esforço de tapar as brechas para que o dinheiro do Orçamento não escorra por mecanismos nada transparentes. Mas ocorreu o contrário: o ministro da Economia, Paulo Guedes, e a ministra da Secretaria de Governo, Flávia Arruda, em portaria, sacramentaram as emendas do relator, antes vetadas.

Da forma como foram concebidas, as emendas do relator é um caso em que os fins justificam todos os meios. No orçamento de 2020, elas foram vetadas pelo presidente da República, sob indicação de Guedes, e o Congresso não derrubou o veto. Mas no apagar das luzes do ano passado, R$ 3 bilhões foram distribuídos em sua maior parte para a bancada governista - antes da eleição das presidências da Câmara dos Deputados e do Senado, para as quais o governo não poupou esforços para que vencessem seus aliados. O Planalto comprou o apoio do Centrão e de seus partidos com um dinheiro que não seguiu os trâmites protocolares orçamentários.

O Ministério Público e o Tribunal de Contas da União pediram abertura de investigações para saber se há indícios concretos de que, com a manobra, o presidente da República cometeu crime de responsabilidade. De repente, tanto Guedes como Bolsonaro deixaram de considerar essas emendas de “cunho personalístico”, como argumentaram no veto em 2020 e se esqueceram de que o expediente “investe contra o princípio da impessoalidade que orienta a administração pública”.

As emendas do relator (RP9) trazem enorme avanço do controle de deputados e senadores sobre os recursos orçamentários. Criadas por emenda constitucional, as emendas individuais e de bancadas contaram com R$ 15 bilhões no atual orçamento. A RP9 inicial, que motivou desavenças entre Guedes e os líderes do Centrão, propunha nada menos de R$ 30 bilhões, fazendo com que o Congresso determinasse o destino de R$ 48 bilhões, mais do que um terço do que o governo federal pode manejar com alguma liberdade.

O “cunho personalístico” das emendas do relator é um eufemismo para a criação de um tipo de parlamentar poderoso, acima de todos os outros. Na comparação de dotações para investimento no orçamento deste ano, por exemplo, as emendas do relator, de R$ 18 bilhões, são maiores do que a de todos os ministérios somados, excetuando-se o de Minas e Energia. São maiores, também, do que os recursos destinados em 2021 para o Benefício Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda (R$ 10 bilhões) e para o Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte (R$ 5 bilhões).

A aceitação do RP9 é coerente com o objetivo do presidente Bolsonaro: garantir apoios para a reeleição. Bolsonaro, que não tem outro plano, nem prioridades, terceiriza responsabilidades e está fazendo o mesmo com a execução do orçamento, à espera de benefícios, como foi a blindagem contra impeachment e a consolidação de uma base política cuja linguagem comum é verba para obras.

No presidencialismo de coalizão, as emendas serviram para o governo levar os parlamentares a aprovarem os projetos de interesse do Executivo. Com a progressiva autonomia do Congresso sobre elas, em um ambiente de crescente penúria orçamentária, a forma segura de comprar apoios deslocou-se para as emendas do relator, com a penumbra que as cerca. Ao contrário das outras, ela não é distribuída equitativamente - beneficiará mais a base governista, e nem toda ela -, não fixa critérios sobre quem deve recebê-la nem para a aplicação das verbas. A negociação política envolvendo dinheiro do orçamento se reduz a poucos intermediários, com um fluxo de recursos não visível a olho nu.

Como Bolsonaro despreza o jogo político e só buscou apoio no parlamento quando surgiram pedidos de impeachment, aceitou de bom grado o jogo duro do Centrão. É fatal que negociações obscuras surjam de repente, por exemplo, na forma de tratores superfaturados. Com a portaria legitimadora, facilita-se a corrupção e a manipulação escusa do orçamento, que, afinal, define as prioridades de uma nação.

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