sexta-feira, 7 de maio de 2021

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

EDITORIAIS

O Brasil com fome

O Estado de S. Paulo

A experiência da pandemia exigirá a reconstrução do sistema de proteção alimentar. Esse trabalho começa agora. Mas, antes de reconstruir, é preciso doar

A crise econômica e política que o Brasil amarga há anos foi agravada em 2020 pela pandemia e redobrada pela incompetência e desídia do governo federal. Em 2021, no pico da pandemia, o País enfrenta uma nova crise: a fome.

Segundo a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, no fim de 2020, 55,2% dos domicílios, abrigando 116,8 milhões de brasileiros, sofriam algum grau de insegurança alimentar. Desses, 19,1 milhões (9% da população) padeciam de insegurança grave, ou seja, passavam fome. Uma pesquisa da Universidade Livre de Berlim mostra um quadro ainda mais tétrico, com 59% dos domicílios em insegurança alimentar e 15% em situação grave.

A violência da pandemia atingiu um sistema de segurança alimentar já vulnerável. Em 2014, o País havia pela primeira vez saído do Mapa da Fome das Nações Unidas, que inclui países nos quais mais de 5% da população consome níveis insuficientes de calorias. Esse foi o resultado de programas como o Bolsa Família ou o Fome Zero, mas também de políticas como o plano de segurança alimentar, a estruturação de conselhos regionais ou o fortalecimento dos programas de alimentação escolar.

Mas entre 2013 e 2018, segundo o IBGE, a insegurança alimentar grave cresceu 8% ao ano. Entre 2018 e 2020, o aumento da fome foi de 27,6%. O investimento federal no Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) caiu de R$ 1,1 bilhão em 2012 para R$ 232 milhões em 2018. A merenda, que chegou a receber R$ 4,7 bilhões em 2010, foi reduzida para R$ 3,9 bilhões em 2019. 

Esse sistema já precário foi atropelado pela pandemia. O preço médio da cesta básica em São Paulo saltou de R$ 862 em abril de 2020 para R$ 1.014 em 2021. Nem todos os municípios mantiveram a merenda, o que agravou as dificuldades. Se a média nacional de insegurança alimentar, conforme a Universidade de Berlim, é de 59%, nos domicílios com crianças de até 4 anos esse número salta para 71%; e nos domicílios com jovens entre 5 e 17 anos, para 63%. No ano passado, conforme o Portal da Transparência, foram destinados R$ 168,2 milhões ao PAA, dos quais apenas R$ 27,16 milhões foram executados. Para este ano o governo propôs um orçamento de R$ 101,7 milhões.

Além de robustecer o financiamento, é urgente reconstituir a Câmara Interministerial de Segurança Alimentar, a quem cabe elaborar e coordenar a Política de Segurança Alimentar. Também é preciso fortalecer a atuação dos Equipamentos de Segurança Alimentar e fomentar a criação dos comitês subnacionais para o combate à fome. Os governos subnacionais podem mobilizar equipamentos públicos como escolas, centros comunitários ou restaurantes populares.

Se a média nacional de insegurança alimentar para as cidades é de 55,7%, no campo é de 75%. Por isso, é crucial elaborar estratégias de acesso ao financiamento para a agricultura familiar.

Vale lembrar que, segundo o Banco Central, com o auxílio federal e a arrecadação superior ao esperado, Estados e municípios fecharam 2020 com um superávit primário de R$ 43 bilhões. Muitos têm realizado programas para complementar o auxílio emergencial federal, mas, diante da fome, é preciso fazer mais.

No meio da calamidade, contudo, não basta cobrar políticas públicas. Toda pessoa, física ou jurídica, precisa se engajar para colocar cestas básicas nos lares de famílias com fome. Em indicadores globais, o nível da filantropia brasileira é historicamente medíocre. Nos primeiros meses da pandemia, houve um salto expressivo em doações. Mas, desde o segundo semestre, os números caíram dramaticamente. “As pessoas não estão enxergando a fome”, disse Gilson Rodriguez, presidente nacional do G10 Favelas. “Vivemos em um Brasil de fome, em que uma parte faz ‘home office’ e a outra passa fome dentro de casa.”

Tal como o sistema de saúde e de proteção social em geral, a experiência da pandemia exigirá uma reconstrução do sistema de proteção alimentar. Esse trabalho começa agora. Mas, antes de reconstruir o que quer que seja, é preciso impedir que os construtores morram de fome. É hora de doar.

O ocaso da democracia em El Salvador

O Estado de S. Paulo

Destituição de juízes e do procurador-geral amplia o déficit de democracia no país

Uma das primeiras ações do novo Congresso de El Salvador, agora com amplíssima maioria favorável ao presidente Nayib Bukele (61 das 85 cadeiras são ocupadas por parlamentares governistas), foi destituir os cinco juízes da Câmara Constitucional da Suprema Corte salvadorenha e seus suplentes, além do procurador-geral do país, Raúl Melara.

As autoridades destituídas eram tidas como hostis à agenda política de Bukele, sobretudo no que concerne às ações de enfrentamento da pandemia de covid-19. A pretexto de frear o avanço do vírus em El Salvador, o presidente determinou um confinamento que, da forma como foi concebido e implementado, foi interpretado como uma ação para sufocar manifestações contrárias à sua administração. Tanto Melara como os juízes da Suprema Corte que foram destituídos serviam como anteparo institucional às investidas autoritárias do Executivo.

Bukele não tardou para celebrar a decisão do Congresso. “E o povo salvadorenho, por meio de seus representantes, disse: destituídos!”, escreveu o presidente no Twitter, imediatamente após o término da sessão legislativa. Bukele ainda ironizou os que o classificaram como autoritário. “Se eu fosse autoritário como dizem, os teria fuzilado, e não destituído. O povo não nos enviou para negociar. Estão saindo, todos”, disse.

Este naipe de democrata mereceu elogios públicos do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP). Também pelo Twitter, o chamado “03” escreveu que “o Congresso (de El Salvador) destituiu todos os ministros da Suprema Corte por interferirem no Executivo, tudo constitucional”. Para arrematar, o deputado que um dia acreditou reunir as credenciais para ser o embaixador do Brasil nos Estados Unidos sugeriu aos juízes salvadorenhos que “se quiserem ditar políticas públicas, que saiam às ruas para se elegerem”.

É evidente que a manifestação do filho em apoio a uma ação claramente antidemocrática em país estrangeiro reflete os sonhos nada recônditos do pai, o presidente Jair Bolsonaro, de ver algo semelhante aplicado no Brasil. Dia sim e outro também, convém lembrar, Bolsonaro mente à Nação quando afirma que o Supremo Tribunal Federal (STF) tolheu seu poder de agir no curso da pandemia. Inolvidável também é o respaldo que Bolsonaro dá a manifestações golpistas que pedem abertamente não só a cassação de ministros do STF, mas também sua prisão.

O mundo civilizado condenou a ação do Congresso salvadorenho. A vice-presidente dos Estados Unidos, Kamala Harris, disse que seu país “deve responder” à destituição dos juízes da Câmara Constitucional e do procurador-geral de El Salvador, considerado um aliado de Washington no combate à corrupção e ao narcotráfico. Embora não tenha detalhado a que tipo de resposta se referia, em evento do Council of the Americas, Harris afirmou que “o Parlamento de El Salvador atuou para minar a atuação do principal tribunal do país”, o que, em suas palavras, “é algo crítico para a saúde de uma democracia”.

A interferência direta no Poder Judiciário salvadorenho também provocou reações da União Europeia (UE) e da Organização das Nações Unidas (ONU). O alto representante da UE para Relações Exteriores, Josep Borrell, afirmou que “a decisão do Congresso coloca em risco o funcionamento do Estado Democrático de Direito em El Salvador”. O secretário-geral da ONU, António Guterres, pediu que Bukele “respeite a Constituição de seu país”.

É muito provável que Bukele siga insensível aos apelos da comunidade internacional e da oposição local e avance com seu plano de implementar uma autocracia em El Salvador, sobretudo a partir de agora, com os Poderes Legislativo e Judiciário subjugados pelo Poder Executivo. Para tanto, o presidente conta com o apoio de nada menos do que cerca de 90% da população, cansada de décadas de alternância entre os dois partidos mais tradicionais no país, a Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN) e a Aliança Nacional Republicana (Arena).

Malabarismo com os juros

O Estado de S. Paulo

BC tenta frear a inflação sem arrocho e sem discutir os erros do governo

Equilibrar dois pratos, como um malabarista de rua, é o novo desafio do Banco Central (BC), empenhado em frear a inflação e ao mesmo tempo manter algum estímulo a uma economia em lenta retomada. Para conter os preços, aliviar os consumidores e impedir um desarranjo maior nos negócios, a taxa básica de juros foi aumentada para 3,50%, e uma nova alta – provavelmente para 4,25% – está agendada para dentro de um mês e meio. O aperto é necessário, mas deve ser moderado, segundo a estratégia do Copom, o Comitê de Política Monetária do BC. As novas decisões foram anunciadas depois da última reunião, encerrada na quarta-feira passada.

Malabarismo é também uma das marcas da comunicação do Copom. A inflação deste ano poderá bater no teto da meta (5,25%), segundo projeções correntes e reconhecidas pelo BC, mas o comitê mantém o diagnóstico formulado há meses. Continua qualificando os choques de preços como “temporários” e promete continuar “atento à sua evolução”. Temporários até quando?

A inflação brasileira, bem visível nas feiras, nos supermercados e em boa parte do varejo, está associada às condições do comércio global, segundo a nota do Copom. “Com exceção do petróleo”, assinala o comunicado, referindo-se ao período recente, “os preços internacionais de commodities continuaram em elevação, com impacto sobre as projeções de preços de alimentos e bens industriais.” Além disso, o aumento da bandeira tarifária de energia elétrica “deve manter a inflação pressionada no curto prazo”.

Todos esses fatores são conhecidos, mas também conhecida é a influência do dólar nos preços internos. O dólar poderia estar cotado a R$ 4,50 ou R$ 4,60, segundo analistas do mercado, porque o Brasil é superavitário no comércio exterior, seu balanço de pagamentos é administrável e o País dispõe de reservas mais que suficientes para liquidar a dívida externa. Mas cotações iguais ou superiores a R$ 5,40, às vezes em torno de R$ 5,60, têm sido frequentes. Nenhuma palavra sobre o câmbio e seus efeitos inflacionários aparece no comunicado emitido depois da reunião do Copom.

As causas mais visíveis da instabilidade cambial estão em Brasília e ninguém ignora esse fato. O País dispõe de reservas e as contas externas são administráveis, mas há muita incerteza sobre a evolução de fatores internos. Há insegurança quanto à gestão das finanças federais, à evolução da dívida pública e às condições da vida política, sujeita a fortes tensões, ao destempero do presidente da República e a seus arroubos autoritários. Somam-se a essa ampla insegurança as barbaridades cometidas pelo governo em sua política ambiental.

 

Todos esses fatores prejudicam o ingresso de investimentos estrangeiros, a manutenção de recursos externos no Brasil e até, segundo se estima no mercado, a internação de dólares faturados por exportadores e mantidos no exterior. Mas o pessoal do Copom, ao redigir a nota sobre sua reunião, conseguiu deixar de lado a instabilidade cambial. Terá ignorado essa questão também ao analisar a inflação e suas causas?

Igualmente estranha é a avaliação inicial da economia brasileira. A nota menciona uma “evolução mais positiva do que o esperado”, embora a segunda onda da pandemia, segundo se acrescenta, tenha superado a previsão. No primeiro trimestre, no entanto, a produção industrial foi 1% menor que nos três meses finais de 2020, segundo a última informação oficial. Os demais indicadores também apontam negócios fracos – um quadro explicável, em grande parte, pela suspensão das medidas de sustentação da economia.

Mas o Copom, formado por diretores do BC, pelo menos admite um detalhe menos brilhante: “prospectivamente, a incerteza sobre o ritmo de crescimento da economia ainda permanece acima da usual”. Em seguida aparece uma compensação: esse quadro “aos poucos deve ir retornando à normalidade”. Mas a “normalidade”, é justo lembrar, tem sido caracterizada a partir de 2019 por uma política econômica sem rumo claro e por muita insegurança quanto às possibilidades da produção e do emprego.

Custo Bolsonaro

Folha de S. Paulo

Reações destrambelhadas em meio à CPI ameaçam a já desastrosa gestão da pandemia

Nas últimas semanas, houve alguns passos em tese promissores no combate à pandemia. Eduardo Pazuello (Saúde) e Ernesto Araújo (Itamaraty) foram removidos dos cargos, ensejando melhoria na condução dos esforços, que envolvem interlocução internacional.

Como o presidente continua o mesmo, contudo, os resultados são diluídos na cacofonia oriunda de um Palácio do Planalto cada vez mais encurralado pela pilha de cadáveres e as revelações inevitáveis de sua inépcia promovidas pela CPI ora em curso no Senado.

A quarta-feira (5) foi exemplar. Enquanto o titubeante Nelson Teich confirmava um truísmo acerca de sua breve passagem pela pasta da Saúde, de que discordava da política bolsonarista de promoção da cloroquina, o presidente abriu um dique verbal de absurdos.

Defendeu o indefensável tratamento precoce com o remédio e outros sem eficácia, fez novas ameaças vazias contra medidas de restrição de circulação do vírus e resolveu voltar a atacar a China.

Sobre o primeiro item, é decantada a responsabilidade presidencial no caso, mas nada que a lassidão moral do apoio do centrão a Bolsonaro considere sério agora.

Acerca do segundo ponto, a repetição da prática avançou no terreno da intimidação autoritária tão ao gosto do mandatário —que, no entanto, mais uma vez mostra mais fraqueza do que força.

Já a nova carga contra Pequim tem implicações mais imediatas. Bolsonaro, brincando de esperto ao dizer que não iria nominar a grande economia que mais cresceu em 2020, a chinesa, associou o feito a uma suposta guerra biológica.

Ao regurgitar esse delírio da extrema-direita americana, o presidente põe em risco maior a já catastrófica gestão da pandemia.

A ditadura comunista é fornecedora dos insumos para a formulação das duas vacinas em uso no Brasil, a Coronavac (Instituto Butantan) e a de Oxford (Fiocruz). Como se sabe, a China tem represado o envio de lotes dessas matérias-primas, alegando duvidosos embaraços aduaneiros.

A realidade está mais próxima daquilo que foi externado pelo presidente da CPI da Covid, Omar Aziz (PSD-AM), que ao lamentar a frase de Bolsonaro resumiu: “Estamos nas mãos dos chineses”.

Com tudo isso, o país arrisca comprar mais descrédito em Pequim, anulando o bônus da defenestração do paranoico Araújo, no momento em que precisa de muitas vacinas —os perigos de um blecaute no setor em junho são reais.

Observando o depoimento à CPI do sucessor de Pazuello, Marcelo Queiroga, o desassossego impera. Sem respostas para o irrespondível, o ministro não inspira otimismo nesta etapa da tragédia nacional.

Revolta colombiana

Folha de S. Paulo

Proposta de alta de imposto desperta ira popular num país devastado pela Covid

Um projeto de reforma tributária acendeu a chama da revolta popular na Colômbia. Imensos protestos tomam as principais cidades, gerando quebra-quebra e uma repressão violenta das forças de segurança, na mais grave crise social e política enfrentada pelo presidente Iván Duque desde que assumiu o poder, em 2018.

Até o momento, ao menos 24 pessoas já morreram nos atos, mais de 800 ficaram feridas e 89 estão desaparecidas, segundo a Defensoria Pública. O saldo brutal gerou reações das Nações Unidas, da União Europeia, dos EUA e de ONGs de direitos humanos, que denunciam o uso desproporcional da força por polícia e Exército.

A ferocidade da resposta alimentou a indignação. Embora o governo tenha cedido à pressão e retirado o projeto, as multidões nas ruas só fizeram crescer, incorporando novas pautas às manifestações.

Na capital, Bogotá, um grupo tentou invadir o Congresso na quarta-feira (5), mas foi rechaçado; estradas têm sido bloqueadas em todo o país, e sindicatos seguem convocando uma greve geral.

Quarta maior economia do continente, a Colômbia foi atingida em cheio pela crise provocada pela pandemia. O Produto Interno Bruto encolheu 6,8%, no pior desempenho em meio século. O desemprego saltou para 16,8% em março, e milhões caíram na pobreza.

Para fazer frente ao aumento do gasto público ocasionado pela calamidade sanitária, Duque propôs o remédio amargo da elevação de tributos. Seu projeto tinha como pontos centrais a ampliação da base de contribuintes do imposto de renda e o aumento das taxas sobre bens e serviços, atingindo sobretudo a classe média.

Mesmo em tempos normais, uma reforma dessa magnitude já enfrentaria obstáculos consideráveis. O governo, contudo, dificilmente poderia ter escolhido momento mais inapropriado para apresentá-la.

O país, que com 75 mil mortos pela Covid-19 amarga a quarta pior proporção da América Latina (atrás de Brasil, Peru e México), vive um pico de novos casos e um recorde de óbitos. O sistema hospitalar nas maiores cidades está perto do limite, enquanto a vacinação segue estagnada.

Após desistir do projeto original, Duque prometeu propor outro, excluindo as medidas mais controversas. Antes de salvar sua reforma, porém, o presidente precisará pacificar as ruas e dar alguma resposta às insatisfações populares.

 

Novo tom agressivo de Bolsonaro não intimidará CPI

O Globo

O estilo menos bélico ensaiado pelo presidente Jair Bolsonaro nos últimos meses parece ter capitulado com o início da CPI da Covid. A comissão representou derrota fragorosa para o Planalto, que tentou de todas as formas impedi-la. Bastaram dois depoimentos — dos ex-ministros da Saúde Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich, que deixaram o governo por divergências com o presidente — para que Bolsonaro retomasse em alta voltagem o velho discurso.

A situação só piora. Ontem o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, passou por apuros diante dos senadores na tentativa de contemporizar. Num depoimento constrangedor, foi incapaz de dizer se é contra ou a favor do uso da cloroquina no tratamento da Covid, aberração que não encontra respaldo na ciência. Equivocou-se nos índices de vacinação e se atrapalhou na pergunta mais óbvia: quantas vacinas afinal foram contratadas. Disse que o número de 280 milhões, informado pelo próprio ministério, estava incorreto. Falou em 560 milhões, depois baixou para 530 milhões, por fim ajustou para 430 milhões, fora a Fiocruz.

Na quarta-feira, enquanto Teich depunha, Bolsonaro subia o tom. Em mais uma bravata, ameaçou baixar um decreto para garantir o direito de ir e vir, desafiando o aval do Supremo a medidas de restrição adotadas por prefeitos e governadores contra o vírus. “Nas ruas, já se começa a pedir, por parte do governo, que ele baixe um decreto. E, se eu baixar um decreto, vai ser cumprido”, disse. Balela. No mesmo dia, chamou de “canalha” quem é contra o disparate do “tratamento precoce” à base de cloroquina, ivermectina e outras drogas comprovadamente ineficazes (e perigosas) contra a Covid-19.

Mais grave, acusou a China de ter criado o vírus Sars-CoV-2, com o intuito de empreender uma “guerra química” (sic). A declaração não poderia ser mais desastrosa. Além de maior parceiro comercial do Brasil, a China é hoje o único fornecedor do Ingrediente Farmacêutico Ativo (IFA) para a produção de vacinas tanto na Fiocruz (Oxford/AstraZeneca) quanto no Butantan (CoronaVac), que hoje sustentam o Programa Nacional de Imunização.

Não demorou mais que 24 horas para que ficassem evidentes as consequências da inconsequência de Bolsonaro. O diretor do Butantan, Dimas Covas, informou ontem que poderão faltar doses da CoronaVac a partir de 14 de maio. E culpou a postura do governo federal por atrasos no IFA.

A radicalização do discurso é obra do filho Zero Dois, Carlos Bolsonaro, que, com o início da CPI, voltou a dar as cartas na estratégia de comunicação, embora não tenha atribuição formal para isso. A orientação é partir para o confronto com as instituições. Na avaliação do Zero Dois, o comportamento mais conciliador não conseguiu evitar a CPI da Covid.

A aposta implícita é que, até o ano que vem, com a maior parte da população vacinada, a pandemia estará sob controle. Manter mobilizada a base mais fanática é uma forma de se contrapor aos ataques da CPI e de chegar com força à disputa eleitoral. Para isso, nada melhor do que semear a divisão apostando em temas que polarizam: tratamento precoce, China e medidas de restrição. As bravatas não conseguirão, porém, interromper os rumos da CPI. Podem, em vez disso, prejudicar o combate à pandemia. A cada dia, erros e omissões do governo ficam mais expostos. E a CPI está só começando. 

Apoio de Biden à quebra de patentes de vacinas isola ainda mais o Brasil

O Globo

É sensata a decisão de Joe Biden de abrir mão das patentes de vacinas diante da emergência sanitária. É do próprio interesse americano que a maior quantidade possível de pessoas seja imunizada no mundo. Quanto mais fábricas houver produzindo vacinas, melhor para todos. Os Estados Unidos promovem, com o gesto, uma mudança histórica na posição acerca do direito de propriedade intelectual, que rejeitava qualquer licenciamento compulsório (artifício usado para disseminar a produção de remédios essenciais a custo mais baixo).

Não está em questão que o respeito à propriedade intelectual seja essencial para estimular investimentos em pesquisa e inovação. A tragédia da Covid-19, porém, não é um fato qualquer. Como declarou a representante de Comércio da Casa Branca, Katherine Tai, “tempos e circunstâncias extraordinários exigem medidas extraordinárias”.

A mudança de posição americana tem peso enorme, mas haverá um período de conversas para o alinhamento entre os vários países. Será preciso esperar os desdobramentos do sinal verde ao licenciamento compulsório, que precisa de apoio unânime na Organização Mundial do Comércio (OMC).

É inegável que se trata de uma vitória diplomática de África do Sul e Índia, países que lideram na OMC a defesa da quebra temporária de patentes das vacinas. Sofreram a esperada oposição dos Estados Unidos — e a inesperada oposição do Brasil. Sem deter qualquer direito sobre alguma vacina contra Covid-19 e dispondo de ampla capacidade fabril para produzi-las de posse da patente, o Brasil se opôs nos foros internacionais à licença compulsória. Nunca se entendeu direito por quê.

Tradicionalmente, o Brasil defendia posição oposta. Em 2001, levou à Assembleia Mundial de Saúde uma proposta, contrária aos Estados Unidos, para a quebra de patentes de medicamentos contra a Aids como direito humano fundamental, defendida pelo então ministro da Saúde, José Serra. Sob intensa pressão, os americanos recuaram, e a proposta foi aprovada.

A legislação de propriedade intelectual brasileira, de 1996, já previa o licenciamento compulsório de medicamentos essenciais de uso amplo, para aumentar a produção a preços acessíveis. Depois, Brasil e Estados Unidos assinaram um acordo pelo qual os americanos seriam avisados com antecedência sobre a quebra de patentes das farmacêuticas sediadas no país. Aquele passo permitiu que passássemos a executar uma política pública exemplar de distribuição de medicamentos contra o HIV.

Diante da decisão americana, o chanceler Carlos Alberto França afirmou no Senado que a posição do Brasil, pelo menos por enquanto, continua a mesma, sob o argumento de que mudá-la prejudicaria contratos já firmados para fornecimento de vacinas. É um argumento frágil, já que as farmacêuticas também fornecem a indianos e sul-africanos. Independentemente disso, o episódio deixa claro como a inépcia do Itamaraty sob Bolsonaro tirou o protagonismo do Brasil.

BC mantém a dose elevada de aumento da taxa de juros

Valor Econômico

É possível que o Banco Central tenha de moderar os aumentos de juros em um futuro próximo

A persistência inflacionária fez o Banco Central manter a forte intensidade dos aumentos da taxa de juros para enquadrar a inflação de 2022 na meta (3,5%), diante da ameaça de ultrapassá-la. O Comitê de Política Monetário ratificou a ata da reunião anterior, elevou a Selic em 0,75 ponto percentual e indicou que nova alta da mesma magnitude deverá ocorrer no encontro de junho, se nada diferente do cenário previsto ocorrer até lá. Pelo comunicado do Copom, a intensidade do aumento dos juros, antecipada para encurtar o ciclo desde o início, culminará em um ajuste mais forte do que o previsto no início.

Pelas projeções do BC, com base na pesquisa Focus e com o câmbio evoluindo pela paridade do poder de compra a partir de R$ 5,40, a inflação de 2021 será de 5,1% e a de 2022, de 3,4%, com a Selic em 5,5% e 6,25%, respectivamente. Na ata do encontro anterior, no entanto, os juros encerrariam 2021 em 4,5% e 2022 em 5,5%, com o real mais desvalorizado, a R$ 5,70. Ou seja, com juro 1 ponto percentual maior do que o esperado em 2021 e 0,75% maior em 2022 e uma valorização do real de 5% em relação ao cenário do comunicado de março, a inflação piora um pouco este ano e cai apenas 0,1 ponto em 2022 (3,4%).

Não há explicações para isso no comunicado, mas uma das pistas é o avanço dos preços administrados, que, pela previsão do BC, se reduz em 2021 (de 9,5% para 8,4%), mas sobe em 2022 (de 4,4% para 5%). O avanço dos preços das commodities já era realidade em março na ata do Copom, quando a pressão dos combustíveis despontava como fator alimentador da inflação. Agora este impacto, segundo o BC, se dissemina pelos alimentos e bens industriais, e um foco de preocupação passa a ser o preço da energia. “A transição para patamares mais elevados de bandeira tarifária deve manter a inflação pressionada no curto prazo”, aponta o Copom.

Por outro lado, as medidas da inflação subjacente deixaram de estar acima do intervalo compatível com o cumprimento da meta de inflação para se situarem em seu “topo”. Com isso, a situação ainda não é confortável, mas tampouco o aumento dos juros tem poder de influência significativo sobre os preços administrados, a não ser pela via indireta do câmbio (que recua). Ou seja, ainda há possibilidade de outra trajetória para os juros que não um galope em direção ao juro real neutro (6,25%-6,5%) em 2022.

O Copom dá a entender que a “normalização parcial”, que manteria estímulo monetário, ao deixar a Selic abaixo do juro neutro, minguou e tornou-se “algum estímulo ao longo do processo da recuperação econômica”. Isto é, possivelmente ficará ali pelos 6%.

O fim do ciclo de estímulos neste nível é compatível com a visão do BC sobre a evolução da economia. No Relatório da Inflação, o hiato do produto, negativo em mais de 3% neste ano, será zerado em 2022, sugerindo que não haveria mais necessidade da ajuda da política monetária. Tudo dependerá da evolução da economia e do balanço de riscos para a inflação.

Sobre o futuro da economia, o Copom aponta que incerteza sobre o ritmo de crescimento permanece acima do usual e “aos poucos deve ir retornando à normalidade”. O tempo aqui é relevante. Por falta de vacinas, o calendário de imunização está atrasado e é possível tanto que o Brasil acelere o passo e recupere o tempo perdido, como que isso não ocorra e o país fique à mercê de uma terceira onda da covid-19 e novos lockdowns que derrubem a atividade econômica. O desempenho no segundo trimestre será ruim e as perspectivas de retomada firme pularam para o segundo semestre.

No balanço de riscos para a inflação há o risco fiscal, que produz “assimetria altista”. E há também a frustração em relação à continuidade das reformas. A aprovação do inacreditável orçamento de 2021 é um exemplo claro do primeiro tipo de risco, a eliminação da comissão da reforma tributária, do segundo. As expectativas sobre a austeridade fiscal e reformas já estão rebaixadas, após provocar estragos especialmente no câmbio e, por meio dele, na inflação. O recuo recente do dólar é indício de que esses riscos moderaram, com sorte até a campanha eleitoral.

As projeções para o crescimento, no entanto, estão muchando. Para 2022, estão por volta de 2,3%, com viés de baixa. A elevação dos juros é um dos fatores para essa piora das expectativas. Assim, com a economia sem impulso próprio para a retomada, é possível que o Banco Central tenha de moderar os aumentos de juros em um futuro próximo.

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