sábado, 5 de junho de 2021

Ascânio Seleme - Analisou e agasalhou

- O Globo

Não punir Pazuello estimula outros militares a repetirem o gesto do general e representa o apreço dos militares por cargos e salários

O comandante resolveu flagelar o Exército e não punir o general, acabando por desmoralizar o código disciplinar da Força. Pazuello fica na ativa e Paulo Sérgio vira zumbi, como se estivesse ele próprio na reserva. Pela covardia, o comandante perdeu o respeito do seu Alto Comando, que lhe entregou o poder de decidir solitariamente sobre a indisciplina do general da ativa que foi ao palanque do presidente Bolsonaro ao fim do motocídio do dia 23 de maio. Na estrutura militar, em todos níveis hierárquicos, soube-se na quinta-feira que, apertado, o comandante afina. Se estivéssemos numa frente de batalha em desvantagem diante de um inimigo mais poderoso, a deserção seria estimulada e não seria punida.

Pela nota do Exército, o evento do Rio foi de natureza social e não política. Afirma que o comandante “analisou e acolheu os argumentos” do general. O argumento central, e talvez único, é de que o comício não pode ser chamado de político porque Bolsonaro não tem partido. Pode ser mais ridículo? Se Paulo Sérgio analisou, não sei, parece que não, mas é fato que agasalhou muito mais do que acolheu. Recebeu uma ordem e a cumpriu. Repetiu o papel patético cumprido pelo próprio Pazuello no ano passado. Só faltou repetir o famoso “um manda e outro obedece”. Saiu minúsculo do episódio e jamais conseguirá recuperar a estatura que um dia teve.

Nos bastidores, sabe-se que a decisão de arquivar o procedimento administrativo contra Pazuello baseou-se na hipótese de que Bolsonaro pudesse desautorizar o comandante do Exército, revogando eventual punição. Nesse caso, Paulo Sérgio teria de pedir o boné e ir efetivamente para a reserva. Seria conhecido dali para frente como o general que honrou o Exército, mesmo tendo sido breve seu comando. Entraria para a história na mesma galeria de Leônidas Pires Gonçalves. Mas, não, preferiu perfilar-se como um estafeta de capitão. Como disse Míriam Leitão, está explicado agora por que Bolsonaro o escolheu para substituir o general Edson Pujol.

Translúcida também ficou a relação de subserviência do comando do Exército ao presidente. Já foi escrito em inúmeras páginas deste jornal por colunistas mais abalizados do que eu qual o imediato impacto da decisão medrosa de Paulo Sérgio. Anarquia foi a palavra mais forte usada até aqui. Bagunça, indisciplina. Não punir Pazuello estimula outros militares, das três Forças e da PM, a repetirem o gesto do general. Subir no palanque nem assusta tanto. O problema é que ao tomar partido, homens armados e fardados podem achar natural fazer outros descerem do palanque pela força. Esse é o sonho do capitão.

O ato que abonou a conduta de Pazuello representa ainda o apreço dos militares por cargos e salários. A relação promíscua dos militares com o governo Bolsonaro não deixa dúvida. São seis mil militares ocupando funções de confiança. Não se pode quantificar, mas batalhões de cônjuges, filhos, netos, irmãos e sobrinhos destes também se espalham pela administração direta e indireta sem terem passado por concurso público. Nem na ditadura tantos cargos foram oferecidos a oficiais e seus familiares. São boquinhas as que garantem a “lealdade” desta tropa.

Não significa, contudo, que todos os generais pensam e curvam-se como Paulo Sérgio. Absolutamente. Quando deixar o cargo para o qual foi conduzido no Palácio, Pazuello não terá clima para voltar a usar a farda e dar expediente no Forte Apache. Não apenas porque provou ser incompenete, como se viu na sua gestão no Ministério da Saúde, mas porque aproximou-se demais da política. Ele não foi punido, mas sua imagem acabou destruída. Entrará para a história das Forças Armadas como um dos mais submissos generais da sua geração. Talvez perca o primeiro posto apenas para Paulo Sérgio.

RESPEITAR A DEMOCRACIA

Num debate realizado na Confederação Nacional da Indústria (CNI) na segunda-feira, o presidente da Câmara, Arthur Lira, apresentou o que chamou de “dicionário político para superar a crise”. Nele, não cabem adjetivos ou substantivos, apenas verbos. Na verdade, cinco verbos. Nos termos de Lira, os verbos são: vacinar, cuidar, reformar, unir e respeitar. O primeiro não precisa de explicação. Cuidar, segundo Lira, seria lançar o maior e mais ambicioso programa social do país. Reformar, disse o deputado, seria preparar o Brasil para o futuro. Já unir e respeitar serviriam para reafirmar que a democracia é um princípio sobre o qual não cabe discussão. Certo, deputado, mas não custa lembrar que fortalecer a democracia significa também punir quem a ameace, parar quem atropele a Constituição que a rege, sancionar quem comete crimes contra ela.

DESMORALIZADAS

Tudo bem o presidente e seus senadores negacionistas reclamarem do tratamento dispensado à Nise Yamaguchi e Mayra Pinheiro na CPI. São patéticos mesmo. Chato foi ouvir o presidente do Conselho Federal de Medicina, Mauro Ribeiro, fazer declaração e emitir nota dizendo que elas foram humilhadas durante seus depoimentos. Na nota, o CFM afirma que as médicas sofreram “ataques à sua honra e dignidade por meio de afirmações vexatórias”. Fala sério, doutor, quem dá vexame e se humilha é o Conselho, fisiológico, que defende o indefensável. Vexame deram as duas médicas, desmoralizadas pela defesa burra, para não dizer criminosa, que fizeram do tratamento precoce contra a Covid.

TRIBUNAL DO BOZO

Bolsonaro chegou a comparar a audiência de Nise e Mayra a um “tribunal de exceção”. Obviamente o capitão falou bobagem. Mas, curioso mesmo foi ouvi-lo reclamar de tribunal de exceção, logo ele que defende pau de arara e tortura para arrancar confissões.

SOU MAIS LUANA

As duas são muito bonitas, até se parecem. Luana Araújo e Juliana Paes são a cara do Brasil. Mas uma delas é porreta, bateu de frente e derrotou, um a um, os senadores negacionistas da CPI da Covid, enchendo de orgulho homens e mulheres de todo o país. A outra reclamou do tratamento dado a Nise Yamaguchi e disse que não apoia “delírios comunistas da extrema-esquerda”.

DESABAMENTO

As TVs gastaram horas cobrindo o desabamento de um prédio irregular na Zona Oeste do Rio. Duas pessoas morreram na tragédia. Uma moradora disse que todo mundo na rua sabia que o prédio ia cair, menos a prefeitura. No Brasil, todos sabiam que a pandemia de coronavírus poderia ser tão grave quanto a gripe espanhola, menos o presidente. O número de mortos no país até agora é igual ao resultado do desabamento de 230 mil prédios como aquele de Rio das Pedras.

DESAFORO

Além de representar um desaforo de Bolsonaro ao Alto Comando do Exército e um tapa na cara do chefe da Força, a nomeação do general Pazuello para a secretaria de estudos estratégicos da SAE guarda um outro sentido, que ficou sublimado. É que vai começar a XXXVIII Copa de Tiro no Pé do Palácio do Planalto. Pinóquio não podia ficar de fora dessa, podia? Imagina o que um general, que no desacerto tem a pontaria de Gabigol na marca do pênalti, será capaz de produzir no time de atiradores de Bolsonaro.

MAIS OVO

Não sou eu que estou dizendo, mas quem entende. Luiz Carlos Mendonça de Barros, economista, ex-presidente do BNDES e ex-ministro das Comunicações no governo FHC, explica que o crescimento do PIB está ancorado num “superciclo de commodities” que é mais importante do que a dos primeiros anos do governo Lula. As exportações, sobretudo agrícolas, alavancam a economia. Por isso a carne está muito cara e o consumo é o menor em um quarto de século. Os brasileiros comem ovo em volume nunca antes visto. Ovo, aliás, que serve também como eficiente elemento de manifestação política.

COM LEGENDA

Bolsonaro deu sorte porque havia legenda no seu pronunciamento de quarta-feira, onde mentiu sobre o PIB e sobre o estágio da vacinação no Brasil. Caso contrário, suas mentiras não seriam ouvidas, tamanho o barulhaço produzido por panelas vazias em todas as grandes cidades do Brasil.

VAI AO BANCO

O supersensível presidente do Brasil reagiu assim quando questionado sobre o valor do auxílio emergencial: “tem gente reclamando, falando que quer mais (...) quem quer mais é só ir no banco e fazer empréstimo”. Estes pobres brasileiros vão ao banco, sim, presidente, mas ficam na porta pedindo algum auxílio privado quando o oficial acaba antes da metade do mês.

CALOTEIRO

Além de todos os erros e equívocos cometidos pelo governo, por burrice ou deliberadamente, soube-se agora que ele também é caloteiro. Foi o que nos ensinou a médica Luana Araújo na CPI. Ela foi chamada para uma função na Saúde, trabalhou duas semanas e foi dispensada sem receber um tostão de salário.

INSTÂNCIAS

Finalmente, dois anos depois do assassinato de seu marido, a deputada Flordelis foi considerada suspeita pela Câmara. O relator do seu caso no Conselho de Ética, deputado Alexandre Leite, pediu a sua cassação. Você pode lamentar a demora da Câmara, mas é bom não esquecer que na Justiça o processo de Flordelis pode ser ainda mais lento.

PISCA-PISCA

A luz de leitura da poltrona 9D piscou aleatoriamente durante todo o percurso do voo 4195, da Azul, que saiu do Rio para Brasília às 18h do domingo passado. Em alguns momentos a tela individual do assento também desligava e voltava a funcionar de maneira autônoma, se revezando com o pisca-pisca da luz de leitura. Parecia mau contato, que normalmente acaba em curto circuito. Num avião, curto-circuito pode causar tragédia. A aeromoça, que foi chamada, disse para o passageiro não se preocupar, que a aeronave passava por revisão rotineira, e acrescentou: “É que este avião veio da Avianca”. Ah, ufa.

APERTEM OS CINTOS

Frase do ministro Bento Albuquerque sobre possibilidade de apagão: “Tudo indica que temos o controle da situação”.

Nenhum comentário:

Postar um comentário