quinta-feira, 3 de junho de 2021

Conrado Hübner Mendes - Arquitetura da omissão

- Folha de S. Paulo

Procurador-geral da República se fez autoridade imune a controle, não a crítica

Augusto Aras resolveu intimidar professor que o chama de omisso. Até advogados e colegas relatam seu ethos colaboracionista há meses. Mas foi um trocadilho pouco inspirado que tirou o PGR do prumo. Não quis se defender em público nem explicar por que a avaliação geral de seu malvisto desempenho estaria equivocada. Partiu para o processo criminal e pediu cadeia. Do professor.

Sua petição faz duas coisas: metade expõe biografia de homem não ordinário, espécie de “sabe com quem está falando” versão bacharelesca; outra metade afirma que atribuir omissão a esse homem fora de série não é só crime contra sua honra, mas notícia falsa.

Aras assegura trabalhar mais que todos os PGRs anteriores. Sacou número mágico para provar sua vida laboriosa: teria instaurado 78 “apurações preliminares” contra o governo, cujos arquivamentos, até aqui, teriam sido todos “acolhidos pelo STF”.

Cuidado com o ilusionismo embutido na verborragia jurídica. Ele não diz o que faz, nem faz o que diz. Do mesmo jeito que pode haver autoritarismo disfarçado de democracia, violência pintada de liberdade, charlatanismo vendido como cura e genocídio como incompetência, pode haver omissão vestida de ação. De fato, não é por falta de trabalho que se lidera omissão institucional dessa magnitude.

Há muito suor e grito por trás do nada fazer contra a política bolsonarista do deixa morrer. O diabo mora nos truques processuais e retóricos. Nesse caso, nas tais “apurações preliminares”.

Costumam funcionar assim: notícias-crime apresentadas ao PGR podem ser arquivadas sumariamente ou virar apurações preliminares; como arquivamentos sumários vinham se avolumando, atores passaram a apresentar notícia-crime ao STF, que tem o dever de encaminhar ao PGR; essa via alternativa criou constrangimentos adicionais ao PGR.

Nesse caso, Aras costuma instaurar apurações preliminares, nome que exala impressão de diligência (mas pode não ser mais que procedimento parado); pode esperar pressão pública se diluir e arquivá-los a qualquer momento; ao contrário de arquivamentos feitos por promotores em geral, arquivamentos do PGR não aceitam recurso, apenas “pedido de reconsideração” para o PGR, que pode ignorar (e tem ignorado). Não há corregedoria.

Administrar o tempo do arquivamento quando a pressão dos holofotes se retrai tem sido sua arte. E quando diz que o “STF acolheu”, insinua que o STF concordou. Contudo, o STF não tem poder de rejeitar. Assim funciona a divisão de trabalho entre Ministério Público e Judiciário no sistema acusatório.

Dos 78 procedimentos, há notícia de apenas três virarem inquéritos: interferência na Polícia Federal, manifestações por intervenção militar e colapso em Manaus. Curiosamente, os dois últimos excluíram o protagonista Bolsonaro da investigação.

Apurações preliminares só se converteram em inquérito diante de pressão pública incontornável. Podem também ser arquivados pelo PGR, mas ao menos o deixam mais exposto, pois correm sob supervisão do STF. Exceto se o STF mudar sua jurisprudência, nem o pastor pode reverter arquivamento monocrático do PGR.

A operação de busca e apreensão contra Ricardo Salles foi ordenada pelo STF sem a anuência do PGR, saída heterodoxa de Alexandre de Moraes. Não precisa de muita imaginação para decifrar o porquê. Damares Alves, Eduardo Bolsonaro e general Heleno, beneficiados por arquivamentos preliminares, não tiveram esse azar. Eram graves as acusações.

Se Aras desse maior transparência aos 78 procedimentos, teríamos discussão informada. Mas como decretou sigilo de muitos, sob justificativa irrecorrível, sonega a fiscalização pública. Ninguém sabe o que se passou neles.

Não existe órgão monocrático com esse grau de irrecorribilidade no sistema de Justiça brasileiro. Nem presidente da República ou ministro do STF gozam de tamanha blindagem.

A Constituição não se preparou para neutralizar ação coordenada entre PGR e presidente. Viabilizou golpe perfeito a partir da combinação de três características do cargo de PGR: livre nomeação pelo presidente (que pode ignorar lista tríplice); livre de controle (“irrecorrível”); livre para promoção imediata (sem quarentena) ao STF.

Um par da estirpe de Aras e Bolsonaro, quando opera em concerto, extrai o máximo dessa arquitetura da omissão e da cooptação. Esse e outros déficits republicanos da democracia brasileira pedem reforma constitucional urgente.

Aras pode entender apurações preliminares, destinadas à gaveta e ao arquivo, como prova de séria dedicação à sua função. Só não pode impedir que tantos observadores, e até ministros do STF, enxerguem coisa pior.

 

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