domingo, 27 de junho de 2021

Dorrit Harazim - A chance

O Globo

O mundo precisa lavar-se e pausar por uma semana, escreveu em 1947 W.H. Auden, um dos mais admiráveis autores de língua inglesa do século XX. O verso no original tem aparência ainda mais simplória quando retirado de seu conjunto — o monumental poema “The age of anxiety” (A era da angústia), quase tão extenso quanto um livro. Nele, Auden trata da busca humana por algum significado e identidade no mundo cambiante do pós-Segunda Guerra. Na narrativa em verso, quatro personagens reunidos num bar de Nova York contemplam onde foram parar suas vidas, sonhos e perdas. Hoje, passados quase 80 anos, cá estamos, igualmente aflitos e perturbados com a condição humana, o tempo a escoar, a pandemia a cavalgar, o futuro de cada um em suspenso. Juventude, posses, família, relacionamentos, esperança, status social, tudo parece incerto, adiado ou precário.

Aquém do noticiário nacional de emergência máxima (a combustão acelerada de Jair Bolsonaro graças à investida letal da CPI da Covid), sempre aparece um fait-divers que também diz montes sobre o Brasil miúdo. Dias atrás, o repórter Artur Rodrigues, da Folha de S.Paulo, pinçou um anúncio publicado num site de vagas de emprego, o Trabalha Brasil. Rodrigues apontou uma novidade trazida pela Covid-19 ao anúncio: a exigência de a candidata ao emprego ter tomado a vacina da Pfizer.

Pela descrição da vaga em Campinas (SP), um casal oferecia R$ 1.600 mensais a uma “babá/governanta” para cuidar de duas crianças, organizando suas rotinas, alimentação, atividades diárias (estudos, cursos, lazer). Fossem estrangeiros, a remuneração oferecida seria escandalosa. Pagar o equivalente a US$ 320 mensais por 160 horas trabalhadas (ou seja, US$ 2 a hora) é tido como ilegal em qualquer país desenvolvido do planeta. A exigência de cinco dias da semana no emprego, mais meio sábado, por salário tão minguado também seria tachada de exploração abusiva.

No Brasil de quase 15 milhões de desempregados, é provável que não faltassem candidatas. Mesmo assim, não seria fácil encontrar quem coubesse no figurino nobre (além da vacina de grife, ter boa bagagem cultural, carteira de motorista, “responsabilidade pela residência e suas dependências”) e também na realidade nativa de sempre: apenas uma folga remunerada por mês (ou 15 dias de férias ao ano), limpeza e serviços domésticos quatro ou cinco vezes por semana.

O anúncio preferiu não explicitar a preferência por cor.

Numa sociedade que ainda não conseguiu acabar com a função segregadora de seus elevadores de serviço, algumas mudanças são bem mais resistentes que a Covid-19. Elevadores existem em qualquer país do planeta, sendo indispensáveis para a entrega de cargas. Só nos mais racistas, porém, é preciso armar barraco no condomínio para fazer cumprir a lei que proíbe toda sorte de discriminação. Sempre é bom relembrar a história contada pelo saudoso geógrafo baiano Milton Santos, de uma experiência vivida por ele na Salvador dos anos 1950. O professor fora visitar um amigo recém-instalado num edifício inaugurado havia pouco. Surpreendeu-se ao entrar no ascensor dividido por uma partição mambembe com duas sinalizações — “social” e “de serviço”. À falta de dinheiro para instalar dois elevadores, foi a solução encontrada pela incorporadora e pelos condôminos para honrar a divisão de castas.

Vem aí, portanto, a inevitável discriminação social por vacinas. Pode-se entender o desejo frenético por uma agulhada da Pfizer, considerada imunizante de grande eficácia contra o vírus (94% para prevenir os sintomas). Mas ele é, e continuará sendo por longo tempo, inalcançável para a imensa maioria dos brasileiros. Ainda chafurdamos num país que estende o braço sem encontrar vacinas — o índice de apenas 12% de vacinados com duas doses não é uma fatalidade, e sim um crime de irresponsabilidade, da mesma forma que é crime o Brasil ter mais de 510 mil vidas jogadas fora pelo desvario do governo.

Ninguém, nem país algum, será o mesmo de antes da chegada da pandemia. A questão é saber se estamos a construir um futuro melhor que nosso passado. O tempo corre. Para o poeta grego C.P. Cavafy, quando falamos em ‘‘tempo’’, falamos de nós mesmos. “Quase todas as abstrações não passam de pseudônimos. Nós somos o tempo”, escreveu ele. Se assim é, temos uma grande chance para o amanhã no Brasil.

“Eu só confio nas pessoas loucas, aquelas que são loucas pra viver, loucas para falar, loucas para ser salvas, desejosas de tudo ao mesmo tempo, que nunca bocejam ou dizem uma coisa corriqueira, mas queimam, queimam, queimam…”, escreveu Jack Kerouac. Não é preciso tanto. O caminho está apontado pelos senadores da CPI da Covid.

 

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