terça-feira, 22 de junho de 2021

Felipe Salto* - O andor cambaleia e o santo é de barro

O Estado de S. Paulo

O ímpeto gastador vem do governo, que já discute dar reajustes ao funcionalismo

A economia brasileira não está melhorando de verdade. A alta dos preços das commodities caiu do céu como um amargo maná: esconde a precariedade do mercado de trabalho e da renda das famílias. Pior, dá vazão à sanha por aumentos de gastos não relacionados ao essencial, isto é, guarnecer as famílias que perderam emprego e renda na pandemia e pavimentar a reconstrução do País.

Os governos têm o condão de definir políticas públicas de saúde, educação, meio ambiente, infraestrutura, combate à pobreza, etc. Mas desta vez o vento de cauda oriundo das commodities encontrou uma nau sem rumo. Acabamos de assistir à confusão no Orçamento de 2021. No ano que vem, a ajuda camarada da inflação vai abrir uma folga no teto de gastos em pleno ano eleitoral.

A Instituição Fiscal Independente (IFI) estima que o produto interno bruto (PIB) crescerá a 4,2% em 2021, podendo alcançar 5,4% no cenário otimista. Esse crescimento ocorrerá em cima da recessão de 4,1% em 2020. No biênio, mesmo com a taxa otimista, cresceremos a 0,5% ao ano, abaixo da média de 1,5% entre 2017 e 2019. O Brasil está semiestagnado. Sem um plano nacional coeso, permanecerá assim.

De fato, a alta dos chamados termos de troca – razão entre os preços das exportações e das importações – reflete a dinâmica positiva dos produtos primários. Mais de dois terços das exportações do País são commodities. Na comparação entre março deste ano e o mesmo mês de 2020, os termos de troca aumentaram 20%.

Essa ajuda externa estimula o agronegócio, que cresceu a 5,7% no primeiro trimestre de 2021 em relação ao último de 2020, enquanto a indústria subiu apenas 0,7%. Contudo os preços das commodities já atingiram o pico de 2011 e a duração do ciclo é incerta. Como naquele samba, “nada dura eternamente, tudo na vida é ilusão”.

No meu artigo anterior nesta página mostrei que o PIB em trilhões de reais tem sido ajudado pela inflação. Quase 70% do aumento nas projeções para o PIB nominal de 2021 se explicam pela inflação maior. Matematicamente (pelo denominador mais alto), a relação dívida/PIB deverá diminuir, mas seguirá 30 pontos porcentuais superior à média dos países em desenvolvimento. O dólar caro está por trás.

Recentemente, o dólar começou a baratear, o que poderá retirar pressão da inflação. Depois de atingir quase R$ 5,90, no início de março, a taxa de câmbio está em torno de R$ 5,10. Mas há incertezas até o fim do ano. Se o Federal Reserve – o banco central dos EUA – sinalizar aumento de juros para antes do previsto, os dólares que circulam no mundo voarão para lá. Nesse caso, o Banco Central do Brasil terá de aumentar ainda mais os juros para conter a desvalorização do real.

Vamo-nos entender: quando o dólar fica mais caro, os preços dos produtos importados em reais aumentam. Então, elevam-se os juros para manter a atratividade ao capital estrangeiro e segurar a taxa de câmbio. Busca-se evitar o espalhamento desse efeito na economia. Mas o juro mais alto é água no chope da recuperação do PIB, além de encarecer a dívida.

Os riscos macroeconômicos somam-se ao avanço da covid-19 e ao desemprego, que deve encerrar o ano em 14,2%. Em 2021 a ocupação crescerá a 2%, depois de ter caído quase 8% em 2020. A renda é corroída pela inflação. A saber, os preços da alimentação no domicílio subiram 15,4% no acumulado de 12 meses até maio.

Nesse contexto, irrompe a sanha para gastar a folga prevista no teto de gastos em 2022, como eu previ à jornalista Adriana Fernandes no Estado de 19 de abril. A inflação mais alta até junho de 2021 – índice a corrigir o teto do ano que vem – fará o limite crescer acima das despesas obrigatórias em 2022. Mas essa folga não está garantida. Ao contrário, dependerá da inflação até dezembro de 2021.

O ímpeto gastador vem do próprio governo, que já discute dar reajustes ao funcionalismo. Sou a favor de elevar o Bolsa Família ou de discutir a sério um programa de renda básica nos moldes propostos há anos por Eduardo Suplicy. Para isso seriam necessários planejamento e debate técnico.

Usar o espaço fiscal gerado pela inflação descompensada para dar reajuste salarial em ano eleitoral é o fim da picada. O sinal é péssimo e alimenta as expectativas de inflação, turbinando os juros. Enquanto isso, comemora-se a “redução” da dívida e o PIB inflacionado. O andor cambaleia e o santo é de barro.

 **

FHC, 90 anos – O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso completou 90 anos no dia 18 de junho. FHC implantou o Bolsa Escola, propôs e aprovou a reforma gerencial do Estado, controlou a inflação com o Plano Real, reorganizou as contas públicas por meio da Lei de Responsabilidade Fiscal, universalizou o acesso à educação básica, ampliou e reforçou o Sistema Único de Saúde (SUS) e desenhou uma política externa estratégica, que reposicionou o País no mundo. O “improvável presidente”, como no título de um de seus livros, inspira as novas gerações. Seu farol alto estimula a reflexão sobre a reconstrução do País pós-Bolsonaro. Parabéns e obrigado, FHC!

*Diretor executivo e responsável pela implantação da IFI. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário