terça-feira, 22 de junho de 2021

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

EDITORIAIS

500 mil mortos

O Estado de S. Paulo

Há algo de profundamente perturbador quando parte da sociedade, estimulada pela desumanidade do governo de Jair Bolsonaro, considera natural a morte de meio milhão de conterrâneos na pandemia de covid-19. O choque é ainda maior quando se constata que muitos desses brasileiros mortos poderiam ter sobrevivido, não fosse a inépcia criminosa do governo, resultado direto do comportamento irresponsável do presidente.

Bolsonaro não se sentiu obrigado a dirigir nenhuma palavra de conforto e pesar quando a terrível marca de 500 mil mortos foi atingida. É como se essas vítimas não fossem dignas de luto.

O ministro das Comunicações, Fábio Faria, foi didático ao explicar por que não se deveria lamentar a morte de 500 mil brasileiros. No Twitter, escreveu: “Em breve vocês verão políticos, artistas e jornalistas ‘lamentando’ o número de 500 mil mortos. Nunca os verão comemorar os 86 milhões de doses aplicadas ou os 18 milhões de curados, porque o tom é sempre o do ‘quanto pior, melhor’. Infelizmente, eles torcem pelo vírus”.

Na lógica bolsonarista, portanto, comover-se ou revoltar-se com a morte de meio milhão de brasileiros equivale a “torcer pelo vírus” contra o Brasil. O importante, segundo o sequaz do presidente, é “comemorar” vacinas que Bolsonaro sabotou (e continua a sabotar, duvidando de sua eficácia) e os milhões de curados de uma doença cuja letalidade média é de 1% no mundo, mas que no Brasil superou 4% em março, segundo a Fundação Oswaldo Cruz. Ou seja, o Brasil do ministro Fábio Faria poderia ter mais vacinas e menos óbitos, mas escolheu deliberadamente ter menos imunizantes e incitar seus cidadãos a se exporem a uma doença fatal.

Ao menosprezar os que morreram, o governo os trata como fracos que faleceriam de qualquer maneira, seja pela idade, seja por terem “comorbidades”. Em março passado, quando mais uma vez estimulou os brasileiros a ignorarem medidas de isolamento social, Bolsonaro disse que “temos que enfrentar os problemas, respeitar obviamente os mais idosos, aqueles que têm doenças, comorbidades”. A respeito dos mortos, declarou na mesma ocasião: “Chega de frescura, de mimimi! Vão ficar chorando até quando?”.

Depreende-se que, para Bolsonaro e sua grei, a covid deve servir para realizar uma espécie de “seleção natural”: os que sobrevivem à pandemia se provam fortes o bastante para integrar a comunidade nacional idealizada pelo bolsonarismo; já os que morrerem não passaram no teste.

A isso se dá o nome de darwinismo social, ideologia que parece nortear Bolsonaro desde sua posse, influenciando ministros como Fábio Faria e Paulo Guedes – aquele para quem há brasileiros que passam fome porque a classe média desperdiça comida, e não em razão do desemprego que o governo nada faz para mitigar.

Ou seja, os delitos do governo Bolsonaro na pandemia não são somente de ordem jurídica ou administrativa, mas sobretudo moral. É como se o presidente não reconhecesse os milhares de mortos como cidadãos do país que ele julga governar.

Nessa nação delirante, ganha cidadania plena somente quem devota fé absoluta em Bolsonaro – a ponto de tomar remédios sem eficácia só porque foram propagandeados pelo presidente e de deixar de tomar vacinas eficazes só porque foram desacreditadas por Bolsonaro.

Para os “fortes” do país de Bolsonaro, o uso de máscara e as restrições de movimento, essenciais para conter a disseminação do coronavírus, são atentados às “liberdades” de que se julgam titulares e que estão acima do direito à saúde e à vida dos demais brasileiros. São, ademais, sinais de covardia, incompatíveis com a imagem viril que pretendem imprimir ao país que inventaram.

As manifestações de opositores do presidente no sábado passado em cerca de 200 cidades do País mostram, contudo, que cada vez menos cidadãos estão dispostos a viver no país do bolsonarismo ou a participar do experimento social-darwinista liderado pelo presidente da República. Exige-se nas ruas que o presidente pelo menos se envergonhe da marca de meio milhão de mortos, como faria qualquer chefe de Estado decente. Para sentir vergonha, no entanto, é preciso tê-la.

Mais covid e menos capital

O Estado de S. Paulo

Além da mortandade e da crise econômica, a pandemia impôs ao Brasil uma redução de 62% no investimento direto estrangeiro no ano passado, segundo o Relatório Mundial de Investimento 2021, da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad). Foi uma perda superior às médias da América do Sul, 54%, e da América Latina, 45,5%, de acordo com o documento. O valor aplicado na economia brasileira pelos investidores de fora foi o menor em duas décadas, tendo chegado a US$ 25 bilhões, segundo o informe. Os números contabilizados no Brasil pelo Banco Central (BC) são diferentes e apontam ingresso líquido de investimento direto de US$ 34,2 bilhões em 2020, mas, apesar da diferença de critérios contábeis, há convergência quanto a um ponto essencial: a queda foi muito grande. Pelos dados de Brasília, a queda em um ano chegou a 50,6%.

O Brasil também se distingue, no relatório da Unctad, pela maior incidência de casos de covid-19, em 2020, pelo número de mortes e pela adoção de “medidas suaves” de contenção da mobilidade. O contraste com o exemplo chileno aparece no parágrafo seguinte: “Em meio a medidas severas de lockdown, os fluxos de investimento direto estrangeiro para o Chile declinaram 33%, para US$ 8,4 bilhões”. A resiliência do país, em comparação com a de outros sul-americanos, “resultou da rápida recuperação dos preços dos minérios, dos gastos fiscais para sustentação econômica e da execução de uma das campanhas de vacinação mais velozes do mundo”.

Do lado positivo, a experiência brasileira se destaca, regionalmente, pelo volume das transferências fiscais à população vulnerável. Os gastos fiscais, segundo a análise da Unctad, permitiram atenuar a contração econômica. No Brasil o Produto Interno Bruto se reduziu 4,1%, enquanto na América do Sul a perda média chegou a 6,6%. Dentre as principais economias latino-americanas, a brasileira deve ser, segundo a análise, a mais rápida no retorno aos níveis pré-pandêmicos.

O investimento direto na América Latina deve permanecer “substancialmente estável” em 2021 e abaixo do aumento médio estimado para o mundo em desenvolvimento, de acordo com o relatório. Não se espera a recuperação dos níveis pré-crise, no caso dos países latino-americanos, antes de 2023. O crescimento econômico regional deve chegar a 4,3% neste ano.

Quanto ao crescimento do PIB, o Brasil deve igualar-se à média regional e talvez superá-la, neste ano, pelas estimativas do mercado. A mediana das projeções na pesquisa Focus, do BC, já bateu em 5%. Quanto ao ingresso de capitais para a atividade empresarial, as expectativas são mais moderadas. Segundo a Focus, o investimento estrangeiro direto deve atingir US$ 58,1 bilhões neste ano, US$ 67 bilhões no próximo, US$ 70 bilhões em 2023 e US$ 71,8 bilhões em 2024.

Confirmadas essas projeções, em 2023 o ingresso líquido de investimento direto será ligeiramente superior ao de 2019, quando alcançou US$ 69,2 bilhões, mas inferior aos valores de 2018, 2016, 2014, 2013, 2012, 2011 e 2010. Em todos esses anos o investimento superou US$ 74 bilhões, em 2014 chegou a US$ 87,7 bilhões e em 2011, a US$ 101,1 bilhões.

O Brasil já foi bem mais atraente para os investidores. Apesar de tropeços na política econômica e de estratégias às vezes discutíveis, a imagem de um país destinado ao crescimento prevaleceu durante a maior parte do tempo. Voltou a predominar logo depois da recessão de 2015-2016, mas o futuro de novo se embaçou, quando ficou evidente a falta de rumo, apesar das promessas de reformas e de modernização institucional.

O desinteresse do presidente em relação às tarefas de governo, a estreiteza de seus objetivos e a incapacidade da equipe econômica de esboçar metas de crescimento e de modernização refletem-se nas projeções de médio e de longo prazos. Taxas anuais de crescimento em torno de 2,5% definem os cenários além do ano corrente, como se o País estivesse condenado à lentidão mesmo quando o vigor aumenta na maior parte do mundo. Com o atual governo, está mesmo.

ESG da teoria à prática

O Estado de S. Paulo

Mais do que um imperativo moral, a responsabilidade do setor privado nas áreas ambiental, social e de governança (ESG, na sigla em inglês) é hoje um imperativo econômico. Não se trata mais de benemerência, mas de competitividade. A pandemia – um alerta dos riscos derivados dos desequilíbrios entre o universo natural e o humano – e seu impacto socioeconômico devastador aceleraram a demanda pelo comprometimento corporativo com o desenvolvimento sustentável. A cultura da sustentabilidade está consolidada no ideário contemporâneo. O maior desafio agora é concretizá-la em ações. Por isso, foi mais do que oportuno o tema do Summit ESG do Estado: Da Teoria à Prática.

As exigências começam nos investidores e atravessam toda a cadeia de produção até os consumidores. Segundo o jornal Financial Times, em 2018 o setor de investimentos em ESG foi estimado em cerca de US$ 31 trilhões. Pesquisa da consultoria McKinsey revelou que 85% dos brasileiros dizem que se sentem melhor comprando produtos sustentáveis, e uma pesquisa global mostrou que 97% dos entrevistados esperam que as marcas solucionem problemas sociais.

Um estudo publicado pela Universidade de Nova York apontou que 58% das empresas que seguem os princípios de sustentabilidade registraram melhora dos resultados operacionais e performance financeira. Além de atrair investidores e consumidores, esse potencial está relacionado à produtividade. 

É algo intuitivo, mas uma profusão de estudos tem comprovado que empresas que investem na diversidade de suas equipes conjugam mais conhecimentos e habilidades, repertório emocional e margem de acesso a novos mercados, com ganhos significativos em relação a empresas com quadros homogêneos. O Fórum Econômico Mundial estima um aumento de 25% a 36% na lucratividade; 20% nas taxas de inovação; e 30% na habilidade de identificar e reduzir riscos nos negócios.

Práticas ESG são congênitas às startups. Para empresas já formadas, os especialistas ouvidos no Summit sugerem parcerias com outras instituições, inclusive acadêmicas. Um bom referencial é a agenda de sustentabilidade do Sebrae. É também importante começar pelo próximo rumo, seguindo pelo mais distante, ou seja, identificar as “partes interessadas” (stakeholders) diretamente afetadas pelos negócios para tecer uma rede de colaboração orgânica com fornecedores e consumidores. Grandes empresas brasileiras têm avançado nesse sentido.

A JBS, uma das maiores produtoras mundiais de alimentos, se comprometeu a zerar o balanço das emissões de gases de efeito estufa até 2040. Isso implica monitorar não só os fornecedores, mas, por meio da tecnologia blockchain, os fornecedores dos fornecedores. A Ambev, consciente de que o consumo de álcool é uma das principais causas de acidentes de trânsito, criou um programa global de prevenção, que inclusive foi apontado como exemplo pela ONU. A empresa também tem um dos menores níveis de consumo de água por litro de produto.

Ações que promovam melhorias em comunidades locais, mas prejudiquem o meio ambiente – ou vice-versa – são contraproducentes e a longo prazo insustentáveis. Para equilibrar o “E” (environmental) e o “S” (social) o “G” (governance) é crucial. A Vale não só anunciou a recuperação de 500 mil hectares de florestas até 2030, como está estruturando um modelo-piloto socioambiental no município de Apuí (AM). Em parceria com o Idesam, a empresa passou a incentivar o cultivo de café em áreas com mais sombras dentro da mata, o que, além de ajudar na recuperação da floresta, gerou um café de qualidade superior à média nacional. Em alguns anos a colheita do Café Apuí saltou de 8 para 17 sacas por hectare, envolvendo mais de 40 famílias. A meta nos próximos anos é chegar a 300 famílias.

O princípio fundamental é que a responsabilidade não é antagônica à lucratividade. Ao contrário, em um cenário de recuperação pós-pandemia, empresas dispostas a colaborar com o desenvolvimento sustentável também são aquelas que atrairão mais investidores e consumidores, gerando mais lucros e empregos.

Os pecados de Milton Ribeiro à frente do MEC

O Globo

Não bastassem o esvaziamento e aparelhamento ideológico do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), o corte de verbas das universidades federais, o descaso com a inclusão digital para o ensino remoto e toda a confusão criada em torno do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), verifica-se agora que 2,7 milhões de alunos do ensino público em 677 municípios não estão comendo a merenda escolar porque as escolas estão fechadas e as crianças não recebem os mantimentos em casa. Os dados são do Painel de Monitoramento da Educação Básica no Contexto da Pandemia, iniciativa da Universidade Federal de Goiás (UFG), com apoio do Ministério da Educação (MEC). O contexto em que isso acontece não poderia ser mais delicado. Devido à crise sanitária, mais da metade dos lares brasileiros tem algum grau de insegurança alimentar.

No caso da merenda, o custo é dividido entre os governos federal, estaduais e municipais. Parte da culpa é, certamente, de prefeitos ineptos. Mas, como disse ao GLOBO ontem Sandra Helena Pedroso, presidente do Conselho de Alimentação Escolar do Estado do Rio, o baixo repasse do governo federal, que não sofre reajuste desde 2017, é uma barreira para municípios mais carentes. O valor por aluno oscila entre R$ 0,32 e R$ 1,07 por dia.

A desatenção à alimentação dos alunos é mais um entre muitos exemplos da incompetência do governo federal justamente quando o país enfrenta o momento mais desafiador da educação brasileira, devido aos problemas causados pela pandemia. Atualmente, o MEC tem prioridades completamente distantes da realidade trágica que aflige as escolas no Brasil. As principais são o projeto que regulamenta o ensino domiciliar e a implantação de mais escolas “cívico-militares” e de um “filtro ideológico” no Enem.

O ministro Milton Ribeiro comete dois erros. Primeiro, as prioridades de sua lista são absurdas. Quando se fala em ensino doméstico ou em escolas cívico-militares, os números estão na casa dos poucos milhares. Parece piada de mau gosto achar que o problema da educação será resolvido com um “tribunal” para garantir pretensos valores morais no Enem. Só a adesão a uma agenda ideológica de cunho religioso que nada tem a ver com educação ou pedagogia explica tais obsessões.

O segundo pecado de Ribeiro, talvez o maior, é não ter competência nem senso de urgência. As questões que o país precisa enfrentar são os milhões sem acesso satisfatório a aulas remotas, as lacunas no aprendizado, a falta de planos para ajudar estados e municípios a retornarem às aulas com segurança e o potencial aumento da evasão.

Em 2020, 24% dos jovens entre 15 e 17 anos declararam já ter pensado em parar de estudar, percentual que pulou para 32% neste ano, segundo o levantamento “Juventudes e a pandemia do coronavírus – 2ª edição”, do Conselho Nacional de Juventude (Conjuve), em parceria com a Fundação Roberto Marinho e outras instituições. Especialistas em educação têm chegado a uma conclusão que pensavam impossível há pouco tempo. Parecia que Ricardo Vélez e Abraham Weintraub brigariam para ver quem entraria para a História como pior ministro da educação. Até que apareceu Ribeiro. Como diz o deputado Felipe Rigoni (PSB-ES), ele também é forte candidato.

É um erro querer escolher vacinas comparando índices de eficácia

O Globo

No dia 4 de maio, uma longa fila se formou na Clínica da Família Estácio de Sá, no bairro carioca do Rio Comprido. A corrida ao posto ocorreu depois que o secretário municipal de Saúde, Daniel Soranz, aplicou a primeira vacina da Pfizer na cidade. O estoque esgotou rapidamente. Muitos saíram sem se vacinar, embora doses da AstraZeneca estivessem disponíveis. O episódio ilustra um comportamento equivocado, que se repete em todo o país: cidadãos tentando escolher a vacina que vão tomar.

Os “sommeliers” das vacinas são movidos por premissas falsas. Supõem que uma seja melhor que a outra, comparando a eficácia global apontada nos testes: Pfizer, 95%; Moderna, 94%; Sputnik, 92%; AstraZeneca, 76%; Janssen, 66%; CoronaVac, 50,4%. Só que é um erro científico grave comparar estudos feitos em condições diferentes, com populações diferentes, sob premissas diferentes. É natural que uma vacina testada quando a epidemia estava em expansão (como Janssen ou AstraZeneca) demonstrasse eficácia menor que as testadas em períodos de menor contágio (Pfizer e Moderna). Exceto pela contraindicação em casos particulares — como gravidez ou portadores de certas condições —, todas se revelam igualmente bem-sucedidas no objetivo primordial da vacinação: evitar internações e mortes.

No Reino Unido, dados preliminares que comparam a efetividade da Pfizer à da AstraZeneca chegaram a resultados quase idênticos na prevenção de hospitalizações e mortes, acima de 92% em ambos os casos. Estima-se que as vacinas tenham poupado 14 mil vidas entre pessoas acima de 60 anos até o fim de março. No Brasil, a vacinação fez a proporção de mortes em idosos com 80 anos ou mais cair de 25%, nas primeiras seis semanas do ano, para 12,4% na 19ª, segundo estudo preliminar. Se permanecessem as taxas de mortalidade iniciais, seriam esperadas 43.802 mortes a mais no período. A principal vacina responsável foi a CoronaVac.

Conduzido pelo Butantan, um estudo com a CoronaVac em Serrana (SP) também mostrou resultados animadores. A vacinação, que envolveu toda a população com mais de 18 anos, fez despencar casos sintomáticos (80%), hospitalizações (86%) e mortes (95%) após a segunda dose. Segundo o Butantan, quando a cobertura passou de 70%, a imunização reduziu a incidência da doença mesmo nos grupos que não receberam a vacina, como crianças e adolescentes. Um estudo semelhante está em andamento em Botucatu (SP) com a AstraZeneca.

É evidente que o comportamento absurdo que tem levado brasileiros ao equívoco de selecionar vacinas é fruto da epidemia de desinformação que contamina o país. A escolha não faz qualquer sentido diante do quadro com mais de 500 mil mortes e menos de 12% vacinados com as duas doses. Num momento em que a epidemia volta a acelerar, não importa qual vacina tomar. A melhor é a que está disponível nos postos. Qualquer proteção é melhor que proteção nenhuma. Centenas de milhares de brasileiros infelizmente não tiveram essa chance.

Vacina sem lacuna

Folha de S. Paulo

Todos os níveis de governo precisam buscar aqueles que abandonaram a imunização

Por bem-vinda que seja a aceleração do ritmo da vacinação contra a Covid, com o impulso da saudável competição entre governadores e prefeitos, cumpre apontar que o processo não se dá sem lacunas.

A Folha mostrou em diferentes reportagens que contingentes importantes que já deveriam ter sido vacinados não apareceram para receber a primeira dose. Outros tantos abandonaram o trajeto vacinal no meio, o que compromete a proteção contra o coronavírus.

No começo de junho, constatou-se que 3,6 milhões de brasileiros com mais de 70 anos não estavam completamente imunizados contra a epidemia no país, dos quais 1 milhão não tinha tomado nem a primeira dose e 2,6 milhões não compareceram para a segunda.

Isso representa mais de um quarto dos brasileiros nessa faixa etária, que somam 13,5 milhões de pessoas, de acordo com a estimativa da Campanha Nacional de Vacinação.

Antes, em abril, noticiou-se que mais de meio milhão de pessoas que receberam a primeira dose do imunizante desde janeiro tinham perdido o prazo da segunda etapa vacinal. O cálculo da época considerou a Coronavac, que tem intervalo entre doses de 28 dias.

Tais contas são possíveis porque cada pessoa imunizada é registrada em um sistema do próprio Ministério da Saúde com um código de identificação individual, no qual há informações sobre idade, dose da vacina recebida e grupo prioritário a que pertence.

Essa base integra o DataSUS, serviço do Sistema Único de Saúde criado na década de 1990 para compilar informações para o embasamento de políticas públicas.

Pelos números do DataSUS, já se sabia que a taxa de abandono no caso de vacinas com mais de uma dose —como a meningocócica C (duas doses) e a contra a poliomielite (três doses)— andava alta no país: passara de 15,8% em 2015 para 23,4% em 2019.

Tal cenário, somado à desinformação quanto à pandemia, muitas vezes fomentada pelo próprio governo federal, tornava previsível a necessidade ampla de campanhas para engajar a população no processo. Isso não aconteceu.

Usar o DataSUS para definição de estratégias nacionais deveria ser tarefa diária do Ministério da Saúde, mas a pasta prefere responsabilizar estados e municípios.

É preciso fazer campanhas e busca ativa de grupos prioritários que ficaram para trás, além de facilitar a imunização dessas pessoas sem datas específicas de repescagem. Isso deve ser feito especialmente no caso dos idosos. A ciência, afinal, tem apontado que a idade é o principal fator de risco para a Covid.

A vacinação ampla, cabe sempre repetir, é a única forma virtuosa de superar a crise sanitária.

Pêndulo persa

Folha de S. Paulo

Pressionado por coalizão regional e pelos EUA, Irã endurece com novo presidente

Apesar de promover eleições de forma regular, a teocracia iraniana não é uma democracia. Fórum de luminares do regime, o Conselho dos Guardiões veta candidatos inadequados ideologicamente.

De tempos em tempos, contudo, o pêndulo do país persa se move, dando algum sinal de vitalidade ao ossificado sistema político da revolução de 1979, que é liderado pelo aiatolá Ali Khamenei.

Assim, alternaram-se moderados como Mohammad Khatami e radicais como Mahmoud Ahmadinejad, que foi substituído novamente por um nome mais suave, Hassan Rouhani, em 2013.

Na sexta-feira (18), 62% dos eleitores escolheram presidente um ultraconservador, Ebrahim Raisi. O menor comparecimento às urnas da história indica em si um protesto contra a natureza do pleito, além de mostrar o impacto da má gestão da pandemia e da repressão a protestos desde 2017.

Raisi é um linha-dura. Ao fim da guerra Irã-Iraque, em 1988, foi um dos responsáveis pela execução de talvez 5.000 prisioneiros políticos. Desde 2019, é o presidente do Judiciário. Nessa condição, apontou alguns dos tais guardiões, que abriram o caminho para sua eleição retirando rivais da corrida.

O Irã constitui um dos polos vitais do precário equilíbrio estratégico do Oriente Médio, e Raisi é uma resposta do seu governo ao cerco sofrido desde 2017, quando Donald Trump assumiu o poder.

O republicano retirou Washington do acordo, de resto problemático, que coibia o desenvolvimento de armas nucleares por Teerã.

Patrocinou também uma frente anti-Irã. Nesse processo, Israel fez as pazes com alguns países árabes sunitas e estabeleceu uma antes impensável aliança tácita com o centro desse ramo majoritário do islamismo, a Arábia Saudita.

O Irã, fortaleza do minoritário e rival xiismo, trabalha com uma rede de grupos aliados locais para espezinhar tanto o Estado judeu quanto esses vizinhos árabes.

Em sua primeira entrevista, Raisi disse a que veio: quer concessões americanas para voltar a negociar a questão nuclear como deseja Joe Biden, não aceita conversar com o presidente americano e descarta colocar seus preciosos mísseis balísticos em qualquer negociação.

Otimistas verão na fala de Raisi abertura para discutir a guerra por procuração contra os sauditas no Iêmen, mas sob seus termos. Tudo indica que Biden não terá vida fácil com o novo presidente.

Pandemia segue sem controle, após mais de 500 mil mortes

Valor Econômico

A despreocupação do presidente com as pessoas que dependem do Estado revela o caráter antissocial de seu governo

As mortes por covid-19 ultrapassaram a marca de 500 mil no sábado à tarde, sem que o governo de Jair Bolsonaro tenha emitido um gemido de pesar. A vacinação tardia, um dos motivos para que o Brasil esteja no segundo lugar mundial em número de vítimas, pode ser acelerada e esse é um dos poucos motivos de esperança no controle de uma pandemia que ainda mata mais de 2 mil por dia.

A tênue linha que separa uma terceira onda da covid-19 e a diminuição dos casos é a rapidez da imunização, hoje ainda aquém das necessidades em decorrência do absoluto descaso do governo em conseguir doses da vacina. Até agora, apenas 15% da população adulta recebeu a segunda dose. Ao ritmo de junho, 989 mil aplicações por dia - a melhor média do ano - o Brasil chegaria em 5 de dezembro com 70% da população vacinada com duas doses. (O Globo, 19 de junho).

O limitante, de novo, é a quantidade de vacinas, cujo fornecimento tem sido sujeito a intempéries políticas e à falta de matéria prima. Com a disponibilidade atual, é possível vacinar 1 milhão por dia, mas com ampla oferta o país já demonstrou ser capaz de imunizar mais de 2 milhões de pessoas diariamente. O planejamento do governo, no entanto, é uma peça de ficção. Documentos que chegaram à CPI mostram que o inepto Eduardo Pazuello, quando ministro da Saúde, chegou a prever que 50% da população adulta estaria vacinada em meados do ano e que o suprimento ultrapassaria 600 milhões de doses (Folha de S. Paulo, 19 de junho). A indolência evidente na obtenção de imunizantes se transformou, meses depois, em otimismo alucinado.

A documentada recusa do governo na busca de vacinas tornou-se ainda mais injustificável porque para os brasileiros elas viraram o único meio de escapar dos males do vírus. Desde o início, a pandemia foi minimizada pelo presidente da República, que desarmou o aparelho de Estado de se preparar para enfrentá-la a sério. O país não fez testagem em massa, nem rastreamento eficaz, enquanto o presidente Bolsonaro fazia campanha contra as máscaras e contra o isolamento social, ameaçando os governadores que, felizmente, o desobedeceram. Do começo ao fim, pôs em dúvida até a eficácia das vacinas.

É inegável que o uso de todos os recursos colocados à disposição pelo conhecimento científico teria reduzido em dezenas de milhares as mortes por covid-19. Quinze meses depois da pandemia se instalar no mundo, muitos países aprenderam muito, enquanto o governo brasileiro estancou no curandeirismo do kit precoce. Na luta contra uma tragédia como essa, com meio milhão de mortos, erros e correção de rumos são inevitáveis. O inacreditável no caso do governo Bolsonaro é que não houve correção nenhuma. Até hoje, o presidente acha que as vacinas são experimentais, que o distanciamento social só serve para atrapalhar sua reeleição, que a máscara é um símbolo de covardia e que a imunidade só virá com a contaminação de todos pelo vírus - e sabe-se lá quantos milhares a mais de mortos. Por isso o país ficou sem ministro da Saúde no auge da pandemia - um histórico desastre intencional. As Forças Armadas seguiram todos os protocolos, execrados pelo seu ignorante comandante chefe.

Após 500 mil mortos, 18 Estados e o Distrito Federal continuam com mais de 80% de seus leitos ocupados. Em nove capitais, entre elas Curitiba e Brasília, a ocupação dos leitos ultrapassa 90%. Só com a aceleração da vacinação será possível virar a página desta tragédia, mas isto ainda não está assegurado quando o país é governado por um presidente que desdenha suas vítimas. “O Brasil é um spa para o vírus”, disse o epidemiologista José Cássio de Moraes, da Santa Casa de São Paulo e membro do Observatório Covid-19.

As vítimas são, na maioria, de pobres e pretos. Motoristas de caminhão, faxineiros, vendedores, porteiros de prédio, motoristas de ônibus, alimentadores de linhas de produção estão entre os contingentes ocupacionais mais atingidos pela pandemia (Folha de S. Paulo, 20 de junho). A despreocupação do presidente com as pessoas que dependem do Estado para se defender de um vírus assassino revela o caráter antissocial de seu governo. O presidente percorre todos os cantos do país onde haja uma formatura de militares e policiais, mas em nenhum momento foi visitar um hospital. Se por suas nulas virtudes lhe é impossível entrar para a história, já o fez por seus inúmeros vícios.

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