quarta-feira, 30 de junho de 2021

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

EDITORIAIS

Teste de estresse

O Estado de S. Paulo

O presidente Jair Bolsonaro testa as instituições democráticas de todas as maneiras desde que entrou para a política. Qual país emergirá dessa terrível experiência?

O presidente Jair Bolsonaro testa as instituições democráticas de todas as maneiras desde que entrou para a política. Hoje, seus crimes de responsabilidade se multiplicam, do mesmo modo como, quando era deputado, abundavam suas agressões ao decoro parlamentar – sem mencionar as suspeitas de “rachadinhas” e outras estripulias. Seus ataques à imprensa e à Justiça mostram sua ojeriza a alguns dos principais pilares da democracia. Sua campanha feroz para cindir a sociedade é antidemocrática por definição.

Como não há perspectiva de que Bolsonaro se emende – ao contrário, é bem provável que o presidente intensifique sua ofensiva liberticida, pois é de sua natureza –, pergunta-se: qual país emergirá dessa terrível experiência?

Será um país em que as instituições democráticas afinal resistiram a seu maior teste de estresse desde o fim do regime militar, fazendo prevalecer o espírito da Constituição sobre o projeto destrutivo liderado pelo bolsonarismo sob os auspícios do Centrão e de corporações parasitárias do Estado?

Ou será um país em que as instituições democráticas se deixaram emascular pelos interesses mesquinhos de quem se acomoda ao poder para ter ganhos imediatos? Em que se faz exegese heterodoxa da Constituição para fazê-la caber em projetos autoritários de poder? Em que grupos com acesso privilegiado ao

Estado conseguem manipular o Orçamento sem qualquer transparência nem prestação de contas? Em que se modificam as leis eleitorais e os modelos de representação para perpetuar o atraso? Em que se considera legítimo um governo que atua contra os mais básicos preceitos éticos e técnicos da administração pública, fazendo terra arrasada na educação, na cultura e na área ambiental? Em que se fecham os olhos para a tentativa de transformar as forças militares em guarda pretoriana do presidente da República? Em que não causa comoção a transformação do Brasil em pária mundial?

Se depender dos democratas brasileiros, o País sairá fortalecido dessa provação, mas não será sem um esforço extraordinário, pois são evidentes os sinais de que os inimigos da democracia ganharam muito terreno desde a eleição de Jair Bolsonaro à Presidência.

Há instrumentos constitucionais para conter a insana marcha bolsonarista. No entanto, o contubérnio de Bolsonaro com o Centrão tem garantido até aqui a sobrevivência política do presidente, mesmo diante da catástrofe que seu governo impõe ao País. Não se sabe o quanto vai durar esse arranjo – afinal, quanto mais Bolsonaro se enrosca em escândalos, mais caro fica esse apoio.

Por ora, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), eleito para o cargo com o apoio de Bolsonaro, diz que não há razões para dar andamento a um processo de impeachment contra o presidente, embora haja uma profusão de crimes de responsabilidade.

Em recente entrevista a O Globo, Lira declarou que não há votos para o impeachment, que Bolsonaro tem “base popular” e que o afastamento do presidente demanda “circunstâncias como uma política fiscal desorganizada, uma política econômica troncha”. Já os mais de 500 mil mortos na pandemia contam menos, no cálculo do presidente da Câmara, do que a aritmética dos votos no plenário.

Não é à toa que o presidente Bolsonaro referiu-se a Arthur Lira recentemente como “prezado amigo e companheiro” e qualificou como “excepcional” o trabalho do presidente da Câmara.

Para completar, Bolsonaro, no mesmo discurso, revelou seu desejo de acabar com a separação de Poderes, inscrita na Constituição, ao dizer que “não são Três Poderes, não, são dois, Arthur: é o Judiciário e nós para o lado de cá”. Ou seja, Bolsonaro transformou sua Presidência em apêndice do Centrão no Congresso, em contraposição ao Judiciário.

No entanto, as seguidas derrotas do presidente nas Cortes superiores e no encaminhamento de projetos de seu interesse no Congresso, além do suadouro que a CPI da Pandemia está lhe dando no Senado, mostram claramente que o arranjo que mantém Bolsonaro no poder ainda não pode tudo – e está ao nosso alcance fazer com que jamais possa.

Choques de preços

O Estado de S. Paulo

Energia eleva pressão inflacionária num quadro já afetado por ações do governo

Um novo choque de preços – mais um, num ano de inflação acelerada – vai aparecer nas contas de eletricidade, com o reajuste de 52% na bandeira tarifária. A taxa extra foi elevada de R$ 6,24 para R$ 9,49 para cada 100 quilowatts-hora consumidos. A decisão da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) foi anunciada ontem. A bandeira vermelha já estava no nível 2, pressionando os custos de famílias e empresas. Com chuva escassa e pouca água para alimentar as hidrelétricas, os brasileiros têm de pagar pela energia mais cara das usinas térmicas. Para evitar racionamento, o governo recomenda cuidado com as torneiras e chuveiros e parcimônia no uso da luz, de eletrônicos e eletrodomésticos.

A crise hídrica e seus efeitos sobre o custo da eletricidade e, portanto, sobre a inflação, já estavam na pauta do Copom, o Comitê de Política Monetária do Banco Central (BC). O tema apareceu com destaque na ata da última reunião do Comitê, quando a taxa básica de juros, a Selic, foi elevada de 3,5% para 4,25%. Novos aumentos ocorrerão e a taxa, segundo projeção do mercado, poderá chegar a 6,5% até o fim do ano. Dinheiro mais caro é a arma principal usada pelos bancos centrais para conter a escalada dos preços.

Também pela estimativa do mercado, a inflação de 2021 deve chegar a 5,9%. O Banco Central projeta, por enquanto, 5,8%. Os dois números superam o limite de tolerância, de 5,25%, e ficam bem acima do centro da meta, de 3,75%. Essas projeções se referem ao Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), sinalizador principal das políticas oficiais.

Inflação disparada inferniza as famílias, principalmente as pobres, complica a gestão empresarial e acaba impondo graves problemas às finanças públicas, embora possa, a curto prazo, elevar a receita tributária e dar algum conforto ao governo. Mas esse conforto é passageiro e enganador. O ministro da Economia, Paulo Guedes, deveria estar muito atento a esse tipo de risco. A alta de preços, já muito intensa, poderá tornar-se bem mais perigosa, nos próximos meses, se as finanças públicas ficarem subordinadas ao jogo político e aos objetivos eleitorais do presidente Jair Bolsonaro.

O custo da eletricidade já tem pressionado e continuará a pressionar a inflação, mas esse é apenas um dos fatores de risco. Os desajustes no atacado permanecem como grande ameaça, afetando os custos de produção e atingindo, em graus variáveis, os preços pagos pelo consumidor. Em junho, os aumentos no atacado perderam impulso e ficaram em 0,42%. Em maio haviam atingido 5,23%. Os dados são do Índice Geral de Preços – Mercado (IGP-M), da Fundação Getulio Vargas (FGV). Dois fatores – a valorização do real e o recuo das cotações internacionais de commodities – fizeram os preços das matérias-primas brutas diminuírem 1,28% em junho, depois de terem subido 10,15% em maio, explicou o coordenador dos índices de preços da FGV, André Braz.

Mas ninguém pode garantir a duração dessa trégua. Além disso, o conjunto dos preços por atacado subiu 18,99% no ano e 47,53% em 12 meses. Qualquer novo aumento ocorrerá, portanto, sobre uma base já muito alta. Depois, a movimentação do câmbio, importante componente do sistema de preços, depende de fatores internos e externos. Internamente, o dólar pode ser afetado por incertezas sobre a política econômica, o equilíbrio fiscal, a dívida pública e as tensões políticas. Todos esses fatores contribuíram, por mais de um ano, para manter o dólar acima de R$ 5,00. A acomodação cambial só ocorreu recentemente.

Fator inflacionário presente por vários meses, o dólar caro resultou em grande parte da insegurança gerada pelo presidente. Dinheiro deixou de entrar e dinheiro foi mandado para fora em reação a suas atitudes, com destaque para a política antiecológica. Envolvido com o orçamento paralelo e com o escândalo da Covaxin, o presidente permanece no foco dos investidores, podendo afetar o movimento de capitais, o câmbio e a formação de preços, com efeitos muito piores que os do aumento do custo da energia elétrica.

Aberração antirrepublicana

O Estado de S. Paulo

Auditores do TCU concluíram que ‘orçamento secreto’ é inconstitucional

O governo bem que se esforçou, mas a caudalosa explicação enviada ao Tribunal de Contas da União (TCU) sobre a existência de um “orçamento secreto” – caso clássico de patrimonialismo, típica aberração antirrepublicana – não convenceu os auditores da Corte de Contas. Os técnicos da Secretaria de Macroavaliação Governamental (Semag) do TCU concluíram que a artimanha engendrada pelo presidente Jair Bolsonaro no fim do ano passado com o objetivo de cooptar parlamentares para sua base de apoio no Congresso, ou premiar os que dela já faziam parte, “não reflete os princípios constitucionais, as regras de transparência e a noção de accountability”. Em suma: o TCU, como era de supor, concluiu que o chamado “orçamento secreto”, mais do que ilegal, é flagrantemente inconstitucional.

No início de maio, o Estado revelou que Bolsonaro criou um “orçamento” particular com recursos públicos, no valor de R$ 3 bilhões, para financiar projetos de um seleto grupo de parlamentares amigos do rei por meio das emendas do relator-geral do Orçamento, tecnicamente conhecidas como RP-9. O presidente recorreu ao tal “orçamento secreto” para comprar uma base de apoio no Congresso, em especial na Câmara dos Deputados, a fim de garantir sustentação política em meio à queda de popularidade devida ao descalabro de sua administração, se é que de “administração” pode ser chamada a plêiade de ações e omissões do presidente a que a Nação, perplexa, assiste dia sim e outro também.

O curioso é que, oficialmente, o próprio presidente da República havia vetado a emenda RP-9 quando da sanção da lei orçamentária. Em suas razões de veto, Bolsonaro alegou que este tipo de emenda, com razão, “contraria o interesse público” e estimula o que chamou de “personalismo” no manejo dos recursos públicos.

No entanto, enquanto posava de administrador cioso de suas responsabilidades diante do distinto público, abaixo do radar dos órgãos de controle – e da sociedade – Bolsonaro fazia rigorosamente o contrário, ou seja, distribuía recursos públicos por meio do “orçamento secreto” sem equidade entre os parlamentares ou quaisquer referenciais técnicos.

“As informações extraídas das respostas (do governo) às diligências expõem a inexistência de procedimentos sistematizados para o monitoramento e avaliação dos critérios de distribuição das emendas RP-9, tal como ocorre, por exemplo, com as emendas individuais por meio do Sistema de Planejamento e Orçamento do Governo Federal (Siop)”, concluíram os auditores do TCU. Tamanha é a desfaçatez no assenhoreamento de recursos públicos para uso privado que a distribuição das emendas era discutida até por meio de mensagens de Whatsapp, sem qualquer controle institucional.

Inicialmente focalizado no Ministério do Desenvolvimento Regional, o “orçamento secreto”, hoje se sabe, espraiou-se também pelos Ministérios da Agricultura, da Defesa e da Justiça e Segurança Pública, o que reforça que a prática lesiva foi convertida em política de governo. No meio da papelada enviada pelo governo ao TCU, há também ofício assinado pelo relator-geral do Orçamento, Domingos Neto (PSD-CE), ao ministro-chefe da Casa Civil, Luiz Eduardo Ramos, então à frente da Secretaria de Governo (Segov). Ramos alegou que o Estado mentiu ao publicar que a Segov participou da distribuição dos R$ 3 bilhões.

O TCU julga hoje as contas do governo Bolsonaro referentes ao exercício de 2020. Apuração do Estado indica que os ministros tendem a aprová-las, apenas recomendando à Presidência da República que dê “ampla publicidade” às informações sobre os reais solicitantes dos repasses listados como de autoria do relator-geral do Orçamento. Se, de fato, for este o desfecho do julgamento, terá sido uma conclusão muito branda para tão clara violação de princípios constitucionais, como técnicos do próprio TCU bem assinalaram.

Apropriar-se de recursos do Orçamento para saciar o clientelismo de parcela dos parlamentares e construir artificialmente uma base de apoio congressual é ação por demais grave para não levar à reprovação das contas do governo. É fazer letra morta da Constituição e dos princípios republicanos.

Mal parada

Folha de S. Paulo

Inclusão de juízes será avaliada, mas avanço da reforma administrativa é difícil

Em reformas do Estado, como as do serviço público e do sistema de impostos, não se devem esperar desfechos redentores, que equacionem de uma única vez todas as distorções e injustiças reconhecidas.

Trata-se, afinal, de projetos que se desdobram em múltiplas frentes e inevitavelmente despertarão resistências tenazes de setores influentes, por motivos razoáveis ou pela preservação de privilégios. Nesse sentido, os avanços incrementais —passos, mesmo que aparentemente modestos, na direção correta— precisam ser valorizados.

Isso dito, é deplorável que a reforma administrativa em tramitação na Câmara dos Deputados não inclua juízes e procuradores, categorias das mais abonadas na administração pública. E são chocantes as dificuldades enfrentadas até para o mero debate do tema.

Como noticiou a Folha, uma emenda que procura remediar essa lacuna não havia conseguido até segunda (28) o número mínimo de assinaturas dos parlamentares. Só agora o objetivo foi atingido, a poucos dias do prazo final.

Assinaturas, cabe ressaltar, não significam voto favorável, mas apenas um sinal verde para que a alteração seja considerada na Casa. No caso, eram necessários os autógrafos de 171 dos 513 deputados.

Quando apresentou sua proposta de emenda constitucional (PEC), em setembro do ano passado, o governo Jair Bolsonaro argumentou que deixava de fora juízes, procuradores e congressistas porque a regulação de tais categorias não estaria ao alcance de iniciativa do Executivo. Quase dez meses depois, a alegação não faz mais sentido.

A reforma tem o propósito de eliminar gastos exorbitantes e elevar a produtividade do funcionalismo, acabando com promoções automáticas por tempo de serviços e reduzindo o alcance da garantia de estabilidade no emprego. Numa etapa posterior haveria a revisão das estruturas de carreira, com queda dos salários iniciais.

Tudo isso vale apenas para os futuros servidores, o que já corresponde a uma rendição prematura ante o lobby poderoso das corporações estatais —que conta com o próprio presidente da República em suas fileiras. Ainda assim, as perspectivas de tramitação do texto não parecem promissoras.

A despeito da má vontade no Executivo e no Legislativo, entretanto, a realidade orçamentária não permitirá que se empurre a questão com a barriga indefinidamente.

Enquanto mínguam os recursos para todas as áreas, o Brasil continua ostentando um dos maiores gastos públicos com pessoal do mundo como proporção de sua economia —e o Judiciário mais caro entre os principais países.

Sempre cabe avaliar qual é a melhor estratégia política para fazer caminharem as correções possíveis, desde que haja persistência e visão do todo. O gradualismo é defensável e muitas vezes até desejável, mas pode se confundir facilmente com a inação covarde.

Insistência no erro

Folha de S. Paulo

Decreto de Bolsonaro reforça presença militar no governo, na contramão de PEC

O apoio tácito que setores importantes das Forças Armadas prestaram ao candidato Jair Bolsonaro resultou, com sua vitória eleitoral, em progressivo aparelhamento da máquina do Estado por militares.

Levantamentos realizados por este jornal e pelo Tribunal de Contas da União (TCU) já quantificaram a tendência de ocupação crescente de cargos públicos por nomes da caserna, que abarca desde o primeiro escalão do governo a cargos subalternos, passando por empresas controladas pela União.

São vários os embaraços criados por essa situação. A formação de membros das Forças não os prepara para o desempenho de determinadas funções governamentais, que exigem qualificação específica e, não raro, traquejo político.

O problema torna-se mais grave quando a Presidência insiste em convocar para o governo oficiais da ativa. Os riscos dessa opção ficaram patentes com a desastrosa passagem do general Eduardo Pazuello pela pasta da Saúde e por sua presença, após a demissão, num palanque eleitoreiro ao lado de seu ex-chefe.

O episódio gerou constrangimentos e terminou com uma perigosa omissão do comando do Exército, que preferiu poupar o oficial de punição, como exigia o regulamento.

Agora, Bolsonaro, como é de seu feitio, insiste no erro e edita um decreto para permitir a presença de militares da ativa em cargos do governo por tempo indeterminado.

O diploma, assinado também pelo ministro da Defesa, general Walter Braga Netto, contradiz o artigo 98 do Estatuto dos Militares (lei 6.880 de 1980) pelo qual se prevê a transferência para a reserva remunerada de militar que ultrapassar dois anos de afastamento em cargos públicos civis.

O decreto circunscreve a prerrogativa a um arco limitado, mas relativamente amplo de funções. Trata-se de decisão temerária, na contramão do correto debate em curso no Congresso com vistas a aprovar emenda constitucional para vetar a presença de militares da ativa em postos da administração.

Embora tal projeto encontre substancial apoio na cúpula das Forças Armadas, não parece contar com a simpatia do presidente da República, que segue agindo de maneira personalista e deletéria.

Não dá para minimizar o risco de apagão

O Globo

A presença na TV do ministro Bento Albuquerque, de Minas e Energia, buscou tranquilizar a população para o risco de apagão. Mas há pouco motivo para tranquilidade e muito para preocupação. “Não dá para minimizar a gravidade da crise”, afirma Luiz Barroso, presidente da PSR, a maior consultoria do setor elétrico. Entre novembro e abril, o Brasil registrou o pior índice de chuvas em 91 anos. O nível dos reservatórios no Sudeste/Centro-Oeste, que concentra 70% da geração, está perto de 30% da capacidade. A estimativa dos técnicos é que chegue a novembro, fim da seca, abaixo de 8%.

É verdade que, hoje, a geração brasileira depende menos das hidrelétricas do que em 2001 (na época, 90%; hoje, 64%). Mas as distorções regulatórias que persistem têm inibido o uso racional da energia. Os modelos matemáticos que calculam o preço pago às geradoras têm mantido a energia hídrica artificialmente barata, incentivando seu uso mesmo em momentos de crise. O resultado se vê no nível da água.

Outras fontes também funcionam à base de incentivos artificiais. As energias solar e eólica, a cada dia mais maduras, continuam a desfrutar subsídios. As termelétricas, dependentes de combustível cotado em dólar e acionadas de modo intermitente, geram energia mais cara do que se o mercado funcionasse de modo mais fluido e natural.

Tudo isso é mais dramático porque, desde a desastrosa Medida Provisória 579 do governo Dilma Rousseff, o risco associado à geração passou a ser transferido ao consumidor. Como escreveu o ex-diretor da Aneel Edvaldo Santana no jornal Valor Econômico: “Não se conhece manifestação das hidrelétricas, donas dos reservatórios, a questionar o mau uso da água. Por quê? Como quem paga a maior parte da conta é o consumidor, não há incentivo para que sejam mais aguerridas. É melhor esperar um decreto de emergência hídrica, novo apelido do pré-racionamento”.

É justamente esse o ponto a que chegamos. O governo prepara uma nova MP em que, a exemplo de 2001, criará um gabinete emergencial de crise. Ontem estabeleceu nova bandeira tarifária, com alta de 52% na conta de luz. O objetivo é financiar as termelétricas, que custarão R$ 9 bilhões neste ano. O impacto no consumo tende a ser pequeno diante da economia necessária.

A tarifa mais cara já impõe um racionamento velado. O governo precisará adotar outras medidas para afastar o explícito — e os apagões. Será preciso incentivar mudança de hábitos para evitar sobrecarga em horários de pico, em particular por indústrias e grandes consumidores. Também será necessário garantir a importação emergencial de Argentina e Uruguai e assegurar a geração de outras fontes, sobretudo as termelétricas. Será essencial uma campanha de comunicação eficaz para incentivar o uso racional da eletricidade.

Mais importante é não deixar de aproveitar a crise para corrigir as distorções. É preciso rever os modelos de remuneração das hidrelétricas, que superestimam a capacidade de geração. E também deixar de transferir riscos ao consumidor. O brasileiro já paga a segunda tarifa residencial mais cara do mundo. Consumidores cativos pagam quase 40% a mais do que deveriam. Ninguém aguenta mais. É preciso, por fim, lembrar que a crise não se restringe à energia. Afeta todo o uso da água, num planeta perturbado por mudanças climáticas. O país precisará de uma governança hídrica mais competente.

Aos 100, Partido Comunista da China quer ser exemplo — mas jamais será

O Globo

O Partido Comunista da China (PCC) comemora amanhã 100 anos de fundação. Foi em Xangai que Mao Tsé-Tung e uma dúzia de outros fundaram a organização que chegaria ao poder em 1949. É certo que os comunistas têm o que comemorar. Em 1980, o PIB chinês era de apenas US$ 191 bilhões. A China estava entre os países mais pobres do mundo. De lá para cá, cresceu 75 vezes e está prestes a ultrapassar os Estados Unidos como a maior economia do planeta.

Evidente que não foi o comunismo o responsável por isso. Determinantes foram as mudanças realizadas por Deng Xiaoping a partir da década de 70. A política econômica foi centrada na promoção de mecanismos de mercado para lidar com as ineficiências do planejamento central. As reformas, entretanto, nunca tiveram como objetivo implementar a democracia ou o capitalismo. Foram apenas uma maneira de fazer o partido sobreviver.

O Brasil foi um dos que se beneficiaram com a ascensão do gigante asiático. A China é o maior mercado de alguns produtos que exportamos, como soja e minério de ferro.

Embora o PCC, sob a liderança de Xi Jinping, aposte na ação policial, na vigilância, na censura nas redes sociais e na capilaridade como estratégias de controle, é inconcebível achar que seria possível manter a ordem entre 1,4 bilhão de pessoas somente pelo uso da força.

Como explica o sinólogo Tony Saich, da Universidade Harvard, a longevidade dos comunistas se sustentou, ao longo do tempo, noutros fatores: autoridade carismática da liderança, ideologia, manipulação do nacionalismo e uma legitimidade alicerçada no desempenho econômico. Para muitos chineses, democracia tem outro sentido: quer dizer governar baseado no interesse público. Segundo a maioria, é o que acontece no país. Pesquisas de opinião independentes mostram um aumento da satisfação com o governo.

Pelas vitórias que conquistaram, os comunistas têm se mostrado dispostos a exercer influência maior no exterior e a fazer declarações mais audaciosas. Afirmam que o modelo político chinês é mais meritocrático do que o das democracias ocidentais por não permitir que um despreparado chegue ao poder enganando eleitores.

Obviamente a cúpula do PCC não quer saber o que os cerca de 1 milhão de uigures presos em campos “de transformação através da educação” pensam sobre isso. Ou o que acham os prisioneiros políticos retirados de circulação e torturados por criticar o sistema. De acordo com a Freedom House, o PCC tem sido mais duro no combate à discordância do que o regime soviético sob Leonid Brejnev. Para quem acredita na liberdade de expressão, na alternância de poder, na liberdade religiosa, nos direitos das minorias, na diversidade, no estado de direito e nos direitos humanos, a ditadura chinesa jamais será exemplo.

Alta de juros reforça entrada de capital e contas externas

Valor Econômico

O cenário pode mudar, com o ritmo lento da vacinação e com o aumento da tensão política

O Brasil registrou superávit de US$ 3,84 bilhões nas contas externas em maio. Foi o segundo mês consecutivo de resultado positivo. Há 14 anos o país não tinha superávit em transações correntes. No acumulado de 12 meses, a diferença entre o que foi gasto e o que recebeu nas transações internacionais relativas a comércio, rendas e transferências unilaterais segue no negativo. Mas esse número vem diminuindo. Em maio, o déficit em 12 meses acumulou US$ 8,367 bilhões, o equivalente a 0,55% do Produto Interno Bruto (PIB), abaixo do 0,84% de abril, animando as projeções de que o ano vai fechar com superávit.

Durante praticamente toda a pandemia a frente externa não causou maiores preocupações para a equipe econômica. Os bons resultados da balança comercial foram o principal motivo, além de investimentos externos suficientes para financiar o déficit.

Em maio, o superávit da balança comercial atingiu US$ 8,129 bilhões, com crescimento de 157,7% em relação ao resultado de maio do ano passado, durante a primeira onda da pandemia. Não só foi o maior já registrado para o mês de maio, mas também o segundo mais alto de toda a série histórica. O saldo só foi menor que o de abril, quando marcou US$ 9,1 bilhões. Desde o segundo semestre de 2020, o Brasil vem sendo favorecido pelo aumento na demanda por commodities da parte de países como a China, cuja recuperação avançou mais rapidamente do que outras nações, e pela taxa de câmbio, que tem favorecido as exportações e desestimulado as importações.

Maio foi marcado por outra novidade, que reforça as projeções otimistas: o crescimento do investimento externo no mercado financeiro, atraído pela elevação dos juros. Entraram US$ 6 bilhões, sendo US$ 2,9 bilhões em ações e fundos de investimento e US$ 3,1 bilhões em títulos de dívida. Nos 12 meses terminados em maio, o BC registrou a entrada de U$ 41,8 bilhões. Com isso, o ingresso de recursos externos para investimento em carteira superou o Investimento Direto no País (IDP) no mês e no acumulado em 12 meses.

Os volumes de investimento direto estrangeiro vêm diminuindo desde fevereiro e ficou em US$ 1,229 bilhão em maio, quase metade do esperado e o menor resultado para o mês desde 2007. Houve ingressos líquidos de US$ 1,8 bilhão em participação no capital e saídas líquidas de US$ 563 milhões em operações intercompanhia. Em 12 meses, o IDP acumula US$ 39,3 bilhões, ou 2,6% do PIB, contra 2,8% do PIB vistos até abril. De toda forma, o montante é mais do que suficiente para cobrir o déficit em conta corrente de 0,55% do PIB nos 12 meses.

O BC está confiante de que os bons resultados seguirão ao longo do restante do ano. O recente Relatório Trimestral de Inflação (RTI), divulgado na semana passada, projeta que 2021 vai fechar com superávit em conta corrente de US$ 3 bilhões, acima dos US$ 2 bilhões esperados há três meses.

A previsão para o saldo da balança comercial segue em US$ 70 bilhões, sustentada pelos preços das exportações de commodities, que vão contrabalançar o esperado aumento das importações com a recuperação da economia.

A mudança mais significativa foi nas previsões para a conta financeira. A estimativa para o ingresso de recursos externos aumentou, chegando a US$ 90 bilhões, 36% acima dos US$ 66 bilhões projetados no RTI anterior. A melhora é atribuída ao poder de atração da elevação dos juros sobre o capital externo, que deve aumentar o investimento em carteira de US$ 10 bilhões para US$ 21 bilhões. Se essa previsão for confirmada, 2021 será o primeiro ano com entradas líquidas nessa conta desde 2015. Captações das empresas no exterior, também influenciadas pelo patamar de juros, foram igualmente reestimadas, de uma saída de US$ 4 bilhões para um ingresso de US$ 9 bilhões. Já a projeção para o investimento direto estrangeiro, mais relacionado ao desempenho da economia a longo prazo, permaneceu em US$ 60 bilhões.

As estimativas do Banco Central melhoraram com a elevação dos juros, que ganharam competitividade em relação às taxas praticadas no mercado internacional, favorecidas também pela continuidade do ambiente de liquidez, apesar da posição mais cautelosa dos bancos centrais internacionais. A avaliação mais benigna dos resultados fiscais, diante da recuperação da economia, ajudou. O cenário pode mudar, porém, com o ritmo lento da vacinação e, principalmente, com o aumento da tensão política, que se desenha a partir das investigações da CPI da Covid.

 

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