segunda-feira, 7 de junho de 2021

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

EDITORIAIS

Entre a euforia e a fome

O Estado de S. Paulo

Com menos carne no prato e mais lucros na bolsa de valores, o tema dos “dois brasis” ganha uma versão atualizada. Já não se trata apenas da diferença entre regiões mais e menos desenvolvidas, mas do contraste agora acentuado entre duas populações, uma ainda bafejada pelos ventos da prosperidade e outra condenada a batalhar, no dia a dia, por uma sobrevivência muito difícil. Diante de recordes seguidos no mercado de ações, especialistas preveem o Ibovespa em 145 mil pontos até o fim do ano, com elevação de 22% em 12 meses. Enquanto isso, milhões dependem de campanhas de solidariedade para escapar da fome, embora as feiras e supermercados tenham comida mais que suficiente para alimentar todos os brasileiros.

A alimentação é o mais feio indicador dos problemas de milhões de famílias. O consumo de carne por habitante deve ficar em 26,4 quilos neste ano, segundo estimativa da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), vinculada ao Ministério da Agricultura. Será o menor volume da série iniciada em 1996. A queda fica mais impressionante quando se toma como referência a média de 2013, pico da série: 96,7 quilos por pessoa.

Mas a carne menos acessível é apenas um símbolo do empobrecimento. A pobreza vem aumentando há anos, especialmente a partir da recessão de 2015-2016, mas o quadro piorou desde o ano passado, quando chegou a pandemia. Apesar do baixo consumo, a inflação subiu e combinou-se de forma desastrosa com o desemprego.

O preço da carne aumentou 35,7% em 12 meses, segundo a última prévia da inflação, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor – 15 (IPCA-15). O encarecimento geral do item alimentação e bebidas foi menor (12,2%), mas também essa taxa é muito alta. Além disso, esse dado é uma média. Os componentes são bem piores. O caso da carne é um exemplo expressivo, mas há outros números assustadores. Os preços de óleos e gorduras aumentaram 53,9% nesse período. O item cereais, leguminosas e oleaginosas, incluídos arroz e feijão, encareceu 40,8%. Os preços de leite e derivados subiram 11,3%.

Como outros bens e serviços essenciais também ficaram menos acessíveis, a composição dos gastos ficou mais complicada. Gasta-se energia para cozinhar arroz e feijão. Em 12 meses o item combustíveis de uso doméstico ficou 21,1% mais caro. O principal componente desse grupo é, obviamente, o gás. Também a eletricidade é básica. A tarifa residencial subiu 8%.

A inflação foi em grande parte alimentada pelas cotações externas de alimentos, minerais metálicos e petróleo. Essas cotações, puxadas principalmente pela recuperação chinesa, renderam bons ganhos aos exportadores brasileiros. Mas afetaram os preços cobrados em supermercados e feiras. Além disso, a inflação brasileira foi também turbinada pela alta do dólar, consequência das palavras e atos irresponsáveis do presidente Jair Bolsonaro.

Somada à irresponsabilidade presidencial, a condução precária da política econômica tem favorecido a insegurança nos mercados, o fraco desempenho da indústria de transformação e o prolongamento de altas taxas de desemprego. A desocupação chegou no primeiro trimestre a 14,7% da força de trabalho, com 14,8 milhões de desempregados e, num balanço mais amplo, 33,2 milhões de pessoas subutilizadas. Sem inflação, esses números já indicariam claramente um desastre social. Mas a inflação, além de já ter infernizado a maioria das famílias desde o ano passado, continua acelerada e poderá estourar neste ano o limite de tolerância de 5,25%.

Medidas claras, sensatas e bem coordenadas de combate à pandemia, em nível nacional, poderiam ajudar a aceleração econômica e a criação de empregos. O País fechou o primeiro trimestre ainda com um recuo econômico de 3,8% acumulado em 12 meses. Mas nada autoriza a expectativa de um surto de sensatez, competência e responsabilidade na Presidência da República. No mercado financeiro, continua-se a festejar a expansão de 1,2% do Produto Interno Bruto (PIB) no período janeiro-março. Milhões de famílias ainda esperam convite para essa festa.

Confusão com a ação civil pública

O Estado de S. Paulo

Por maioria de votos, o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou a inconstitucionalidade do artigo 16 da Lei da Ação Civil Pública (Lei 7.347/1985), que foi alterado pela Lei 9.494/1997. Seguindo o relator, ministro Alexandre de Moraes, o plenário entendeu que os efeitos de decisão em ação civil pública não devem ter limites territoriais. Caso contrário, haveria restrição ao acesso à justiça e violação do princípio da igualdade. Trata-se de uma não pequena confusão, incompatível com os limites do exercício do poder em um Estado Democrático de Direito.

Perante uma interpretação excessivamente ampla da Lei 7.347/1985, com decisões liminares de juízes de primeira instância afetando todo o território nacional e causando grande insegurança jurídica, o presidente Fernando Henrique Cardoso editou em 1997 a Medida Provisória (MP) 1.570. O texto, que depois foi convertido pelo Congresso na Lei 9.494/1997, incluiu no art. 16 da Lei da Ação Civil Pública a expressão “nos limites da competência territorial do órgão prolator”.

A Exposição de Motivos da MP 1.570/1997 assim dispôs: “Tal proposta resolve uma conhecida deficiência do processo de ação civil pública que tem dado ensejo a inúmeras distorções, permitindo que alguns juízes de primeiro grau se invistam de uma pretensa ‘jurisdição nacional’. A despeito das censuras já emitidas pelo STF sobre o mau uso da ação civil pública, inclusive como instrumento de controle de constitucionalidade com eficácia contra todos, persistem algumas tentativas de conferir eficácia universal às decisões liminares ou às sentenças dos juízes de primeiro grau. Daí a necessidade de que se explicite, de certa forma, o óbvio, isto é, que a decisão judicial proferida na ação civil pública tem eficácia nos limites da competência territorial do órgão judicial”.

A Lei 7.347/1985 dispõe que a ação civil pública é um instrumento de responsabilização por danos morais e patrimoniais, passível de ser utilizado em diversas áreas; por exemplo, meio ambiente, patrimônio público e social, direitos do consumidor, urbanismo, além de interesses difusos e coletivos.

Como se vê, a ação civil pública pode ser utilizada em muitas e amplas áreas. No entanto, tem um objetivo preciso: a responsabilização por danos morais e patrimoniais. Não é uma autorização para que o Poder Judiciário interfira em todos os assuntos e âmbitos da vida pública. A defesa de um interesse coletivo, por exemplo, não é razão para ignorar os limites e as competências institucionais.

Por mais importante que seja seu objeto, as decisões proferidas em ações civis públicas devem respeitar os limites da competência territorial do órgão do Judiciário. Como dizia a Exposição de Motivos da MP 1.570/1997, trata-se de uma obviedade, mas, num cenário de interpretação desproporcionalmente ampla da Lei 7.347/1985, é necessário recordar o óbvio.

A Constituição de 1988 conferiu uma ampla proteção dos direitos. A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito, dispõe o art. 5.º. No entanto, isso não significa que um juiz, na defesa de direitos e interesses coletivos, possa mandar onde ele não tem o direito de mandar. Na verdade, só há proteção do direito, seja ele individual ou coletivo, com o respeito aos limites do exercício do poder.

A confusão relativa ao art. 16 da Lei da Ação Civil Pública revela, assim, dois equívocos. O primeiro refere-se ao poder do juiz, como se, por um bom motivo social ou coletivo, ele pudesse mandar onde a lei não permite expressamente. O segundo diz respeito à própria ação civil pública. Nessa pretensão de universalidade, ela deixa de ser uma ação de responsabilização, para se converter numa ação onde cabe tudo, até rever decisões do Executivo, declarar inconstitucionalidade de lei ou anular medidas políticas.

Sob o pretexto de assegurar efetividade à ação civil pública, o Judiciário restabeleceu um equívoco que o Executivo e o Legislativo já tinham corrigido em 1997. Com arbítrio, não se defende nenhum direito.

A segurança pública

O Estado de S. Paulo

Apesar da promessa de melhorar a segurança pública, que foi uma das principais bandeiras de sua campanha eleitoral em 2018, as iniciativas tomadas pelo presidente Jair Bolsonaro nessa área em 2020 foram ineficientes e erráticas. Essa é uma das conclusões de estudo elaborado pelo Instituto Sou da Paz, uma ONG criada há mais de 20 anos por estudantes de direito de São Paulo com o objetivo de avaliar índices de criminalidade e desenvolver políticas de redução da violência. 

O trabalho levou em conta os dados estatísticos sobre violência coletados pela União e pelos Estados num ano marcado por fortes tensões sociais causadas pela pandemia. Por meio de um monitoramento semanal do Diário Oficial da União também foram analisadas as 36 mais importantes medidas e normas editadas pelo Ministério da Justiça, de um total de 293, no campo da segurança pública. 

Segundo o estudo, em 2020 foram registradas mais de 40 mil mortes violentas no País, com um aumento de 5% com relação a 2019. Essa elevação interrompeu a sequência de queda que vinha ocorrendo desde 2017. Já os crimes patrimoniais caíram no primeiro semestre, em decorrência das políticas de isolamento social adotadas pelos prefeitos e governadores. No Rio de Janeiro, por exemplo, os roubos de rua tiveram queda de 52% em todo o Estado, com relação ao mesmo período de 2019. O mesmo ocorreu com o roubo de veículos e de carga, que caíram 36% e 46%, respectivamente. Já no Estado de São Paulo o registro de furtos diminuiu 65%. Mas, se por um lado a política de isolamento social provocou uma queda nos crimes patrimoniais, por outro levou a um aumento da violência doméstica, em decorrência da maior convivência de vítimas e agressores. 

Diante do aumento de mortes violentas, era de esperar que o governo Bolsonaro ampliasse o alcance do programa “Em frente, Brasil”, que foi concebido para reduzir a criminalidade violenta com base numa ação conjunta entre a União, os Estados e os municípios, afirma o estudo. Contudo, esse programa não atingiu seu principal objetivo e seu alcance ficou limitado a apenas cinco municípios. O trabalho do Sou da Paz também chama a atenção para o aumento da violência policial em diversas regiões, atingindo principalmente a população jovem e não branca. No Rio de Janeiro, o número de mortes causadas por policiais nos primeiros cinco meses de 2020 foi o mais alto dos últimos 22 anos. Eles caíram no segundo semestre, não por alguma iniciativa governamental, mas porque o Supremo Tribunal Federal suspendeu operações policiais em favelas durante a pandemia. 

O estudo também lembra que, apesar de as operações policiais serem de responsabilidade dos governos estaduais, o governo federal não só deixou de articular com os governadores um programa destinado a reduzir a letalidade policial, como também caminhou em linha contrária, defendendo medidas que enfraquecem a política nacional de controle de armas. 

O trabalho lembra ainda que, apesar de o Ministério da Justiça ter criado em 2020 uma secretaria específica para melhorar a gestão do Fundo Nacional de Segurança Pública, uma iniciativa considerada positiva pelos técnicos e pesquisadores do Sou da Paz, ela não tem apresentado os resultados esperados. O levantamento revela ainda que os cursos a distância patrocinados pela Secretaria Nacional de Segurança Pública para agentes de segurança de todo o País, considerados essenciais num período de pandemia, foram reduzidos. Por fim, o estudo afirma que até hoje o Ministério da Justiça, que está no terceiro ministro desde o início do governo Bolsonaro, não apresentou o Plano Nacional de Segurança Pública. 

Segundo os técnicos e pesquisadores do Sou da Paz, essa atuação inepta e confusa do governo decorre do “fato de que o presidente direciona sua energia para as políticas de descontrole das armas e fomenta imbróglios jurídicos”. E isso só tende a multiplicar os graves problemas da área de segurança pública, afirmam eles, acertadamente. 

 Governo não pode falhar com a ‘geração Covid-19’

O Globo

O Brasil vive duas crises de grandes proporções. A sanitária é a mais urgente e óbvia, com os números de mortos e infectados em patamares elevados, enquanto a vacinação segue em ritmo aquém do necessário. A outra crise, na área da educação, é silenciosa. Não há contagem diária das perdas, nem estatísticas acompanhadas com afinco. Mas nem por isso é menos prioritária.

Desde o começo da pandemia, o Brasil é destaque na lista das grandes economias que menos ofereceram aulas presenciais a crianças e adolescentes. O ensino remoto foi oferecido com resultados irregulares em diferentes partes do país. Isso acarretou grande defasagem na aprendizagem. Na semana passada, o Insper, instituição de ensino superior com sede em São Paulo, e o Instituto Unibanco, fundação voltada para a área da educação com presença em todo o país, quantificaram o prejuízo desse descalabro.

O estudo “Perda de aprendizagem na pandemia”, liderado pelo economista Ricardo Paes de Barros, estima que o déficit de aprendizagem entre os estudantes na reta final do Ensino Médio nas redes estaduais reduzirá entre R$ 20 mil e R$ 40 mil a renda futura de cada um desses jovens ao longo de suas vidas. Somando os estudantes do Ensino Fundamental e todos os do Médio, a perda já é de R$700 bilhões. Se nada mudar, poderá chegar a R$1,5 trilhão.

Para além do prejuízo meramente financeiro, estão em jogo a qualidade da formação das crianças e, portanto, o futuro do Brasil. A boa notícia é que as perdas podem ser mitigadas, com senso de urgência e foco nas três esferas do governo. O estudo relaciona cinco pontos para melhorar a aprendizagem imediatamente:

1) a permanência dos estudantes na escola por meio de ações de combate ao abandono e à evasão escolar, que têm aumentado;

2) a implementação de políticas que busquem ampliar o acesso e a qualidade do ensino remoto;

3) a promoção de atividades que gerem maior engajamento dos estudantes no ensino remoto;

4) o retorno imediato às atividades presenciais nas escolas, mesmo que inicialmente de forma híbrida;

5) ações para a recuperação e aceleração do aprendizado.

O estudo projeta que, caso as aulas com o ensino híbrido sejam retomas e haja maior engajamento, a perda de aprendizagem dos alunos no terceiro ano do Médio pode ser reduzida em até 20%. Tendo em mente que diferentes setores da população foram afetados de forma distinta, é crucial desenhar uma política pública que responda a vários segmentos. Um foco de atenção devem ser os alunos no último ano do Médio, que não têm muitos meses pela frente para recuperar o tempo perdido até aqui.

Num país com uma desigualdade abissal e histórica, a educação é chave na busca da igualdade de oportunidades para crianças e jovens pobres. Uma mão de obra com déficit educacional é certeza de baixa produtividade e também de um crescimento medíocre do PIB no futuro. Por razões econômicas, sociais e até morais, municípios e estados, sob a orientação do Ministério da Educação, têm o dever de encarar esse desafio como prioridade. 

Novo desafio ao aborto legal nos EUA comprova risco do ‘ativismo judicial’

O Globo

Mesmo favorável ao aborto legal, a juíza da Suprema Corte americana Ruth Bader Ginsburg, ícone do feminismo que morreu no ano passado, via com reserva a decisão de 1973 que o autorizou nos Estados Unidos, no célebre caso Roe v. Wade. No voto vencedor, o relator Harry Blackmun vedava restrições ao aborto enquanto o feto não fosse viável fora do útero (24 semanas de gestação), como uma extensão natural do direito à privacidade da mulher e ao domínio sobre o próprio corpo.

Ginsburg, na ocasião uma advogada ativa em defesa de causas feministas, discordava. Acreditava que a legalização deveria derivar não da privacidade, mas do direito à igualdade. Sem poder abortar, dizia ela, as mulheres sempre estariam em desvantagem diante dos homens, que não arcam com o custo da gravidez nas demais esferas da vida. Ela considerava que a discussão precisaria avançar até esse ponto antes da legalização, como acontecia em vários legislativos estaduais. A imposição de uma regra em bases frágeis poderia ter consequências nefastas no futuro.

Pois o futuro temido por ela chegou. A Suprema Corte aceitou analisar o caso que, na essência, veta o aborto no estado de Mississipi, a não ser em exceções pontuais. Na composição atual, com seis juízes conservadores, é provável que caiam as duas decisões que regulam o aborto no país, Roe e uma outra de 1992, Planned Parenthood v. Casey, que aceita restrições desde que não acarretem “ônus indevido” à mulher. Dependendo do teor da decisão, passará a valer a legislação que proíbe o aborto também noutros estados, como Geórgia ou Missouri.

A esperança de manutenção da maioria favorável ao aborto se escorava no presidente da Corte, John Roberts. Conservador, ele surpreendeu numa decisão sobre uma lei da Louisiana no ano passado, ao reafirmar Roe com base no princípio jurídico do precedente estabelecido (stare decisis). A nomeação da conservadora Amy Coney Barrett no crepúsculo do governo Donald Trump acabou com essa esperança. Barrett sempre foi uma das vozes mais articuladas contra o aborto nos meios jurídicos. Há hoje uma maioria de juízes dispostos a derrubar Roe e Casey.

O aborto não é a única questão controversa na pauta da Corte. O porte de armas e políticas de ação afirmativa serão tema de novas decisões. Todos têm uma característica comum: são polarizadores. Por racharem a sociedade com base em crenças religiosas ou ideológicas, costumam ficar em segundo plano no Legislativo, onde só avança aquilo em que se vislumbra consenso. Como resultado da militância organizada, caem no colo do Judiciário.

Independentemente do que se ache sobre tais temas, é evidente o custo do que se convencionou chamar de “ativismo judicial”. Era o risco que incomodava Ginsburg. Os fatos mostram que seu alerta era pertinente. Não só nos Estados Unidos, mas também no Brasil, onde o Supremo Tribunal Federal, além de arcar com o dever de disciplinar os excessos recorrentes do Executivo, tem assumido o ônus da omissão do Congresso em questões críticas.

 Imposto global

Folha de S. Paulo

Acordo para regular tributação de grandes empresas pode prover mais justiça

acordo de princípios estabelecido no último encontro do G7, grupo que reúne as maiores economias desenvolvidas, constitui um passo importante para reformar a tributação sobre grandes empresas multinacionais, que hoje se beneficiam de falhas do sistema.

As mudanças estariam baseadas em dois pilares. O primeiro é a imposição de uma taxa mínima de 15% sobre os lucros das corporações, que valeria para todos os países. O objetivo é interromper a tendência de queda na taxação observada nas últimas décadas, resultante da disputa por investimentos.

Com movimentos descoordenados, cada nação buscou maximizar sua posição e, ao final, todos perderam arrecadação, já que as empresas intensificaram a busca por domicílios fiscais mais favoráveis.

O segundo pilar é justamente a tentativa de fazer as grandes multinacionais pagarem mais impostos onde fazem negócios, e não apenas onde estão sediadas.

O problema de onde os empreendimentos pagam impostos vem crescendo nas últimas décadas com a economia digital e desmaterializada, que erodiu as bases nacionais de tributação.

As estimativas de arrecadação ainda não estão claras, mas um estudo da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) estima um aumento de 4%, equivalente a US$ 84 bilhões anuais, a maior parte a ser paga por firmas americanas.

O acordo, aliás, só foi possível devido à maior disposição dos Estados Unidos em permitir a taxação de suas gigantes de tecnologia. A contrapartida exigida é o encerramento da tentativa de outros países, como a França, de impor unilateralmente impostos digitais.

Também interessa aos EUA a taxa global mínima, agora que a administração democrata quer aumentar sua própria cobrança (dos atuais 21% para até 28%) para pagar pelos maiores gastos em infraestrutura sem perder competitividade.

As novas regras ainda precisam ser detalhadas e ainda não está claro quais empresas seriam atingidas. Também será necessário incluir países em desenvolvimento, e o tema estará na pauta do próximo encontro do G20, em julho. Depois, viria um longo processo de ratificação nacional.

Mesmo com o potencial avanço, há críticas. A principal é que o mínimo de 15% se mostra insuficiente e mal supera as taxas das nações que mais se aproveitaram do sistema atual, como Irlanda, Holanda, Singapura e paraísos fiscais. Outra é que os grande beneficiários da maior coleta de dinheiro seriam os governos de países ricos.

Mas é inegável que as mudanças, se bem regulamentadas, carregam potencial para prover maior justiça tributária em âmbito global.

Delírios paralelos

Folha de S. Paulo

Gabinete montado para a pandemia não buscava embate de ideias, mas mistificação

Tratando-se de um governo que dá continuadas mostras de transitar por mundos paralelos, não chegam a causar surpresa as evidências que se avolumam acerca da formação de um “gabinete de sombras” para assessorar o presidente Jair Bolsonaro no combate à pandemia do novo coronavírus.

O assim chamado gabinete paralelo, como se sabe, ganhou projeção com os trabalhos da CPI do Senado. Depois de ocupar a pauta de algumas sessões da comissão, o assunto amplificou-se após a divulgação de um vídeo que registra a proposta de uma estrutura de assessoramento ao governo.

A gravação mostra uma reunião de profissionais da área de saúde, em setembro de 2020, na qual o virologista Paolo Zanotto sugere a Bolsonaro a criação de um grupo à sombra para debater estratégias de enfrentamento da Covid-19, estratagema que pouparia os participantes do crivo da opinião pública.

A reunião é apenas uma peça de um conjunto de indícios sobre a existência de uma rede bolsonarista de aconselhamento, formada por especialistas com ideias peculiares sobre o que seria um “tratamento precoce” da doença, com o uso de drogas sem eficácia demonstrada —caso da cloroquina.

Na quinta-feira passada (3), a Folha trouxe à luz duas lives realizadas no ano passado com a presença do ex-assessor da Presidência Arthur Weintraub e do anestesista Luciano Dias Azevedo. Nas conversas são expostos detalhes da concepção e funcionamento da estrutura de assessoramento criada à margem do Ministério da Saúde.

Numa passagem, Azevedo diz que Weintraub (irmão do ex-ministro da Educação Abraham Weintraub) foi quem conectou os médicos do grupo, que municiavam Bolsonaro com ideias heterodoxas e fantasiosas sobre como combater o vírus.

Nos diálogos, ambos demonstram pouca preocupação com a falta de comprovação para as prescrições sugeridas e fazem blague com o uso de máscaras protetoras.

Nada impede um governante de colher opiniões de diferentes setores sobre assuntos relevantes para os destinos da nação. Ao contrário, trata-se de boa prática.

No caso em tela, contudo, o que se tem não passa de uma movimentação de marcante viés ideológico, com empenho em negar recomendações hegemônicas no meio científico e oferecer a Bolsonaro um kit de mistificações para alimentar suas convicções esdrúxulas sobre como gerir a pandemia.

Acelerar vacinação salvará vidas e apoiará retomada

Valor Econômico

Que o presidente passe de fato a trabalhar com afinco pelo fim da pandemia no Brasil

Em meio a um dos maiores “panelaços” realizados contra o seu governo, o presidente Jair Bolsonaro prometeu que neste ano “todos os brasileiros que assim o desejarem serão vacinados”. O discurso, feito no seu pior momento em termos de popularidade, mostra alguma correção de rota do mandatário da nação, pelo menos nesse tópico.

Colecionando uma trágica série de erros na condução da pandemia, Bolsonaro passou de alguém que ironizava a imunização - e rejeitava ofertas que poderiam ter salvado muitas vidas - para uma versão que promete vacinar a todos. Apesar de muito atrasada, a mudança no discurso é bem-vinda e deve gerar efeitos positivos para o combate ao vírus, ajudando a reduzir mortes.

Mas precisa ser acompanhada de maior comprometimento e efetividade no processo de vacinação, ainda muito aquém do desejável. Números do consórcio de veículos de imprensa mostram que, em maio, a média diária de imunização foi de 662 mil doses, caindo em relação às 821 mil aplicações diárias no mês anterior e mais distante do número de um milhão de doses diárias que chegou a ser mencionado como ritmo que prevaleceria a partir de abril pelo próprio presidente.

O país sofre com as dificuldades geradas pelos atritos criados por Bolsonaro com a China, que tem atrasado a entrega dos ingredientes farmacêuticos ativos (IFA), com a dificuldade na produção nacional desse tipo de produto e com a tardia chegada das vacinas da Pfizer, cuja demora na aquisição é um dos mais graves erros desse governo.

O fato é que o Brasil precisa acelerar ao máximo a vacinação. Cientistas apontam que o ritmo ideal seria ao menos 1,5 milhão de doses por dia, ou seja, temos que mais que dobrar a velocidade atual. Para um país que já foi referência mundial em vacinação, a realidade é dolorosa.

Em seu pronunciamento abafado pelo “panelaço” da última quarta-feira o presidente voltou a levantar a falsa dicotomia sobre a reação à pandemia e a economia. Destacou que não determinou que as pessoas ficassem em casa, que comércios e serviços e fossem fechados. Mostrou assim que, se passou a entender a importância da vacina, ainda não caiu em si sobre o erro que cometeu ao sabotar as ações de governadores e prefeitos no enfrentamento da pandemia.

A recuperação econômica do Brasil, que cresceu 1,2% no primeiro trimestre e, pelas indicações do momento, deve encerrar o ano com alta acima de 4%, é uma boa notícia e ele fez questão de mencionar em sua fala. Mas ocorre em meio a um período trágico da nossa história, com milhares de mortes evitáveis, baixa geração de empregos e em meio a um mar de incertezas adiante. Obviamente, isso foi omitido por ele, que com sua inépcia para gerenciar as ações e reações à pandemia, tem grande responsabilidade nessa tragédia.

Com o atual ritmo de imunização, os riscos de uma terceira onda da covid-19 no país já começam a dar sinais de materialização. Como Bolsonaro, governadores e prefeitos vão reagir ainda é uma incógnita. Não fosse a inépcia na condução da pandemia, a recuperação da atividade econômica teria sido mais intensa e, principalmente, com melhor qualidade, gerando mais empregos e contendo a tragédia que tem sido o aumento da pobreza e desigualdade nessa pandemia. Países como Israel, Estados Unidos, após a chegada de Joe Biden ao poder, e muitos da Europa estão aí para provar que uma condução responsável traz frutos para a saúde e para o PIB.

Medidas de paralisação de atividades sem sabotagem presidencial poderiam ter sido mais curtas e ao mesmo tempo mais efetivas para reduzir as mortes, permitindo assim um custo menor e uma retomada mais forte da economia. O setor de serviços, que, apesar de uma melhora nos dois últimos trimestres, ainda é o que mais sofre com o vírus sem barreira efetiva de contenção.

O mais grave é que o governo sabe disso. Bolsonaro, teimosa e irresponsavelmente, bateu o pé e fixou sua trincheira do lado errado da história. A mudança no discurso sobre a vacinação é importante, porém insuficiente. É preciso que ele também fale sobre a necessidade de se cuidar, usar máscara, manter o distanciamento entre as pessoas e dar exemplo de responsabilidade, não promovendo, por exemplo, aglomerações.

Que o presidente entenda o recado das panelas e das manifestações que se espalham pelo país e passe de fato a trabalhar com afinco pelo fim da pandemia no Brasil. A vida e a economia agradecem.

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