terça-feira, 8 de junho de 2021

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

EDITORIAIS

Militares cedem outra vez aos arbítrios do presidente

Valor Econômico

Cabe aos militares demarcarem o terreno para atos de seu comandante

No Brasil, o comandante chefe das Forças Armadas, o presidente da República, incentiva a indisciplina e a quebra de regulamentos nos quartéis. O Alto Comando do Exército, que deveria zelar pela ordem, se exime de fazê-lo, acatando a ordem de que o infrator nada fez de errado, talvez sob pretexto de que algo ainda pior poderia ocorrer se cumprisse as regras - uma substituição do comandante do Exército. O pivô da crise, o general Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde, fez aparição gaiata em manifestação de motociclistas sem máscaras promovida pelo presidente Jair Bolsonaro, onde não poderia estar. A única coisa certa nestes desacertos é que houve intenção de criar um fato consumado cujos desdobramentos são temerários.

Não é a simbologia de um capitão botinado do Exército por indisciplina agora intimidando generais que interessa, mas os propósitos. “O presidente da República é o comandante supremo das Forças Armadas. Isso tem de ficar bem claro”, disse o ministro-chefe da Casa Civil, Luiz Eduardo Ramos, um dos principais auxiliares de Bolsonaro, como se isso significasse arbítrio e não cumprimento de regras. Bolsonaro não queria que houvesse punição a Pazuello - nem sequer uma inofensiva advertência oral - e seu desejo foi satisfeito. Sua vontade foi lei e, como suas inclinações são antidemocráticas, esse é o caminho pelo qual o presidente poderá conduzir as Forças Armadas.

A rota de colisão do presidente com as instituições, percorrida desde o primeiro dia da posse, tem como destino a permanência no poder. “A todo momento estamos vendo-o anunciar o golpe aos quatro campos da nação”, diz o historiador Fernando Teixeira, ex-professor na Escola Superior de Guerra e na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (Valor, ontem). “O mais grave é que ele está anunciando o golpe e a metodologia do golpe. A cada momento ele faz um ensaio geral”, afirma, referindo-se aos reiterados avisos do presidente de que não aceitará uma derrota nas urnas diante do (hoje) principal rival, à frente nas pesquisas, Luiz Inácio Lula da Silva.

O início de quebra de hierarquia militar foi um dos catalisadores do golpe militar de 1964, mas as provocações de Bolsonaro parecem ir em outra direção, não a de fomentar rebeliões de cabos e sargentos contra generais, mas a de obter o consentimento ou a resignação, o que dá no mesmo, dos comandos militares para que a ordem seja moldada aos desígnios do presidente.

De outro lado, o esforço para jogar as polícias militares contra os governadores, cultivada por centenas de participações de Bolsonaro em formaturas e eventos nos quartéis, deu frutos no Ceará e na última semana no Recife quando manifestantes ordeiros foram atacados com selvageria pela polícia.

Bolsonaro tem convicção de que as cúpulas das Forças Armadas mostrariam no mínimo uma passividade benevolente diante de um golpe eleitoral contra o ex-presidente Lula e o PT, caso ele seja o vencedor. A advertência do então comandante do Exército Eduardo Villas Bôas, ao Supremo Tribunal Federal, na véspera de julgamento do habeas corpus em favor do ex-presidente Lula, após consulta ao Alto Comando, demarcou preferências de intervenção política contra um político considerado inimigo pela corporação.

Desde o primeiro dia Bolsonaro associou os militares a seu governo, com prebendas salariais e cargos no governo, dando-lhes um terço de seu ministério e 6 mil alocados em cargos de confiança. Essa predominância busca construir ao longo do tempo uma blindagem do presidente contra insatisfações e descontentamentos nos quartéis em relação a sua conduta política. Essa blindagem tem sido testada a toda hora, com fatos, como quando Bolsonaro demite generais da reserva de seu governo e, no lance recente ousado, demite o ministro da Defesa e o comandante das três armas. A reação foi nula - e assim foi com o episódio Pazuello.

Ocorre o contrário do propalado conto de que militares foram para o governo conter os arroubos do presidente - eles é que acabaram enquadrados, na verdade. A intrepidez de Bolsonaro se apoia na hipótese de a anarquia repelida nos quartéis é a da esquerda, como a “república sindicalista de Jango”, mas que não há nada a temer se ela provém do espectro da direita, que abrange boa parte da cúpula militar. O presidente tem conseguido salvo conduto para fazer o que bem entender. Cabe aos militares demarcarem o terreno para atos de seu comandante, que preserve a democracia no país e o papel das Forças Armadas na ordem democrática.

É inaceitável a interferência do Planalto na seleção de futebol

O Globo

O equívoco do presidente Jair Bolsonaro em dar aval para a Copa América no Brasil, após a desistência de Colômbia e Argentina, sem levar em conta os riscos sanitários, fica mais evidente a cada dia. Primeiro, na inusitada disputa dos estados para não abrigar jogos do torneio. Agora, na silenciosa rebelião de jogadores e da comissão técnica da seleção, que, embora tenham aceitado participar, se mostram contrários à realização da competição no país (só hoje, após o jogo com o Paraguai pelas eliminatórias da Copa do Mundo, deverá haver pronunciamento oficial sobre o tema).

Cada vez mais isolado, Bolsonaro mostra que sua ambição não tem limites. Se o técnico Tite e comandados são contra sua vontade, então troca-se o técnico. Antes de ser afastado da presidência da CBF em meio a denúncias de assédio sexual e moral por parte de uma funcionária, Rogério Caboclo articulava a substituição de Tite por Renato Portaluppi, mais alinhado com o Planalto. Será então que voltamos aos tempos da ditadura, quando o presidente mandava trocar técnico e escalava a seleção? Inaceitável. Com o afastamento de Caboclo, a temperatura pode até ter baixado — os jogadores concordaram em participar da competição —, mas os riscos continuam idênticos.

Do ponto de vista sanitário, não faz qualquer sentido abrigar a competição em plena pandemia. Nas redes sociais, ela foi apelidada “Cepa América”. Responsável pela gestão de saúde em todos os grandes eventos esportivos no país desde 2007, o epidemiologista Wanderson Oliveira ressalta que o Brasil tem incidência de 200 casos por cem mil habitantes e uma taxa de positividade de 32% (o recomendável é que fique abaixo de 5%), condições que não recomendariam acontecimentos desse tipo. “Trata-se de um evento de elevado risco para a saúde pública, um acinte à sociedade brasileira e àqueles que perderam amigos e familiares.”

As quatro unidades da Federação escolhidas para sediar a Copa, de 13 de junho a 10 de julho, estão na lanterna do combate ao novo coronavírus. Segundo o Ministério da Saúde, Mato Grosso, Rio, Distrito Federal e Goiás têm algumas das piores taxas de mortalidade por Covid-19 no país (respectivamente 316,3; 298,5; 292,7; e 248,8 por 100 mil habitantes).

Quando se observa a ocupação de UTIs, também não se saem bem. As taxas estão acima de 76% — a do Rio, ultrapassa os 90%. O sistema de saúde já está sob estresse nesses locais. Na vacinação, DF, GO, RJ e MT estão abaixo da média nacional.

Pressionado pela queda de popularidade, por manifestações, panelaços e pelas revelações cada vez mais contundentes da CPI da Covid, Bolsonaro aposta no certame para desviar o foco do debate. Aposta arriscada, diante da iminência de uma terceira onda de contágio. Sem falar que o evento pode suscitar protestos — basta lembrar os da Copa de 2014 — , igualmente inoportunos no atual cenário. Não se sabe quem vencerá a competição. Mas já se pode apontar o grande derrotado: é a saúde do povo brasileiro.

Corte nas tarifas seria bem-vindo no Mercosul

O Globo

O Ministério da Economia defende dois cortes de 10% na Tarifa Externa Comum (TEC) do Mercosul, a taxa cobrada dos produtos importados pelo bloco, cuja média cairia de 11,7% para 9,5% até o início do ano que vem. A Argentina resiste e se dispõe a fazer apenas um dos cortes, no início de 2022, para 75% dos produtos, preservando sobretudo os bens acabados. O Uruguai apoia a proposta brasileira.

Depois das gestões de seu embaixador no Brasil, a Argentina obteve até o apoio dos ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva. Os críticos do corte proposto pelo ministro Paulo Guedes veem a iniciativa como tentativa de levar o bloco à ruptura. Afirmam ainda que, mesmo que fosse aceita, uma decisão unilateral do Mercosul tiraria poder de barganha do bloco na negociação com outros parceiros comerciais.

O primeiro argumento é um exagero. Apesar da queda no comércio interno ao bloco nos últimos anos, as indústrias de Brasil e Argentina estão completamente imbricadas, e o custo jurídico e político de ruptura é simplesmente alto demais para qualquer lado arriscar. Metade desse comércio, por sinal, é regida não pelo Mercosul, mas pelo regime automotivo, um acordo em separado.

O segundo não é um argumento descabido. É verdade que o acesso a um mercado protegido pode ser moeda de troca em negociações. Mas a TEC alta também explica por que o histórico de acordos comerciais do Mercosul é medíocre. Nas negociações sempre ressurge a agenda protecionista que quer preservá-la, falando na perda de investimentos e na defesa da indústria local. É essa a preocupação real da Argentina.

A orientação econômica do governo argentino tem matriz desenvolvimentista, oposta à liberal que Guedes tenta imprimir por aqui (é certo que, até o momento, com sucesso tímido). Politicamente, a redução tarifária seria uma forma de mostrar que, mesmo que tenha deixado em segundo plano a agenda reformista ou pouco avançado nas privatizações, o governo não se afastou do ideário liberal que o elegeu. Seria, nas palavras do economista Edmar Bacha, um “passo modesto”, já que nossas tarifas são altas. Mas daria, segundo ele, um recado importante sobre a necessidade de modernizar a indústria no bloco. Nenhum país enriqueceu sem abertura para o exterior e o consequente aumento de produtividade.

É por isso que, independentemente da motivação política, os países do Mercosul perdem por manter as tarifas de importação nas alturas. Toda vez que um país protege um setor, encarece a operação dos outros que compram dele. Tudo somado, isso significa produção mais cara, perda de dinamismo e menos exportações. De acordo com o estudo “Abertura Comercial Para o Desenvolvimento Econômico”, feito no governo Temer, uma maior abertura propiciaria um salto no crescimento.

Claro que um corte de tarifas, unilateral ou não, exige cuidado com os setores afetados. É, por isso, mais sensata a redução gradual. Programas de treinamento também são cruciais para realocar a mão de obra afetada. E é bom não se iludir. Sem outras medidas, como a reforma tributária ou investimentos em infraestrutura, o efeito benéfico da abertura comercial fica reduzido, como prova o exemplo mexicano. Mas que não reste dúvida. Como disse Bacha, esse é o caminho certo.

Chavismo caboclo

O Estado de S. Paulo

A escalada da crise protagonizada pelo presidente Jair Bolsonaro com os militares sugere que o País corre o sério risco de sofrer forte degradação democrática, a ponto de assemelhar-se à Venezuela chavista.

“Os militares daqui estão enfrentando o que os da Venezuela enfrentaram no início do período chavista”, comparou Raul Jungmann, que foi ministro da Defesa no governo de Michel Temer. Em entrevista ao Estado, Jungmann disse que “Bolsonaro persegue o modelo de Chávez”, isto é, quer transformar as Forças Armadas em braço do bolsonarismo. “Os militares, aqui como lá, guardadas as devidas proporções, evitam o confronto direto com o comandante para não ferir a Constituição, mas o dilema é que assim correm o risco de ver a Constituição destruída junto com a hierarquia e a disciplina”, alertou Jungmann.

Na mesma linha foi o ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia. Também ao Estado, Maia descreveu como Bolsonaro está seguindo rigorosamente o manual chavista: tenta envenenar o processo eleitoral, ao questionar as urnas eletrônicas; hostiliza a imprensa livre; intervém na estatal de petróleo, submetendo-a a seus interesses políticos; busca transformar as Polícias Militares estaduais em milícias bolsonaristas; neutraliza o Congresso por meio de distribuição desavergonhada de verbas, abaixo dos radares republicanos; e ataca sistematicamente o Supremo Tribunal Federal, além de inocular os órgãos de fiscalização e controle com a toxina bolsonarista. Como disse a historiadora Lilia Schwarcz à revista The Economist, basta ler o Diário Oficial para perceber que Bolsonaro dá “um golpe por dia”.

Já advertimos várias vezes, neste espaço, sobre a marcha bolsonarista rumo a uma versão cabocla do chavismo (ver especialmente os editoriais O bê-á-bá do chavismo, de 31/1/21, e A hora da verdadeira oposição, de 4/2/21). Os sinais dessa degeneração são tão evidentes que não podem ser mais ignorados, especialmente agora, quando Bolsonaro dá um passo concreto na tentativa de transformar as Forças Armadas em sua guarda pretoriana.

A crise está contratada. Ao levantar dúvidas sobre o processo eleitoral, ao mesmo tempo que amalgama os militares a seu governo, Bolsonaro semeia confusão e tenta intimidar quem porventura não aceite viver sob seu tacão.

Há um ano, à TV Cultura, o ministro do Supremo Tribunal Federal e presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Luís Roberto Barroso, descreveu com precisão o cerne do problema: “As Forças Armadas não podem se identificar com o governo porque numa democracia existe alternância de poder. Se as Forças Armadas são governo e o governo é derrotado nas urnas, as Forças Armadas são derrotadas e acabou. Evidentemente isso não pode acontecer”. Na mesma ocasião, o ministro Barroso também já alertava para o que chamou de “chavização”, isto é, a multiplicação de militares em cargos no governo: “Isso é o que aconteceu na Venezuela”.

Não é prudente ignorar tantos alertas e tantos sinais. Quando Bolsonaro se refere ao Exército como “meu Exército”, não é mera figura de linguagem. Ao dobrar o número de militares no governo em relação à administração de Temer, Bolsonaro deixou claro que pretendia enredar as Forças Armadas em seus devaneios golpistas. Considerando-se que cresceu em cerca de 30% a presença de militares da ativa no governo, essa relação fica ainda mais forte – e o caso da submissão humilhante de um general, Eduardo Pazuello, aos interesses de Bolsonaro, sob a vista grossa do Comando do Exército, foi o ponto alto, até agora, dessa genuflexão militar ao presidente.

Timidamente, o Congresso começa a reagir à militarização do governo promovida pelo bolsonarismo, ao articular uma Proposta de Emenda Constitucional que proíbe a atuação de militares da ativa em cargos de natureza civil no Executivo. É uma medida necessária, pois aos militares da ativa é vedada a atividade política – que é essencialmente o que se faz num governo. Mas talvez seja tardia: a esta altura, a identificação forçada por Bolsonaro entre ele e os militares já não depende mais de quem usa o crachá do governo.

Visões muito discrepantes

O Estado de S. Paulo

A Procuradoria-Geral da República (PGR) solicitou ao Supremo Tribunal Federal (STF) o arquivamento do inquérito que apura a participação de um grupo de parlamentares bolsonaristas e apoiadores do governo na organização, financiamento e divulgação das manifestações de cunho golpista havidas em abril do ano passado. Dificilmente o ministro Alexandre de Moraes, relator do inquérito, recusará o pedido do parquet. A jurisprudência do STF prevê que um pedido desta natureza é “irrecusável”.

Mas, caso acolha o pedido, como se prevê, o ministro relator poderá determinar a abertura de novos inquéritos contra os investigados, caso julgue necessário o aprofundamento das investigações para elucidação dos fatos. É o que a Nação espera. É fundamental identificar, processar e responsabilizar quem patrocina e promove atos contra o Estado Democrático de Direito, numa intolerável afronta às leis e à Constituição.

Evidentemente, o pedido de arquivamento de um inquérito é um dos caminhos naturais que o Ministério Público pode trilhar ao analisar o conjunto probatório fruto das diligências realizadas pela polícia judiciária em determinada investigação. Dito isto, causa estranheza a enorme discrepância entre as visões da PGR e da Polícia Federal (PF) no curso deste inquérito em particular, bastante sensível por envolver parlamentares próximos ao presidente Jair Bolsonaro. Afinal, o que a PF viu que a PGR não viu?

Depois de cinco meses desde que foi instada a se manifestar, a PGR não requereu novas diligências e pugnou pelo arquivamento do inquérito por concluir que as investigações da PF “não apontaram para a participação de deputados e senadores nos supostos crimes investigados”. Segundo o vice-procurador-geral da República, Humberto Jacques de Medeiros, que assina o parecer, o “inadequado direcionamento da investigação impediu a identificação de lacunas e dos meios necessários, adequados e proporcionais para alcançar a sua finalidade”, além de ter impossibilitado a “delimitação do problema”.

Ora, o parecer da PGR é diametralmente oposto aos achados da autoridade policial. No curso das investigações, a PF identificou nada menos do que 1.045 acessos a “contas inautênticas” ligadas a aliados de Bolsonaro – derrubadas pelo Facebook há quase um ano por violação das regras da plataforma – feitos a partir de computadores de órgãos públicos como a Presidência da República, a Câmara dos Deputados, o Senado e até, pasme o leitor, o Comando da 1.ª Brigada de Artilharia Antiaérea do Exército.

O relatório com as conclusões da delegada Denisse Dias Rosas Ribeiro, enviado ao STF em dezembro passado, teve como base apurações do Atlantic Council, instituição independente que analisa remoções de contas feitas pelo Facebook. Ao longo de 154 páginas, a delegada descreve em detalhes as artimanhas da rede de desinformação que se instaurou no País sob o beneplácito da Presidência da República. Por meio da identificação de endereços IP, a PF concluiu pela existência do que chamou de “Grupo Brasília”, a partir do qual foram realizados os acessos às contas inautênticas que promoveram os atos antidemocráticos “de forma coordenada”.

Desde que o Estado revelou a existência do “gabinete do ódio” instalado no Palácio do Planalto, sabe-se da participação de auxiliares de Bolsonaro na articulação de uma rede de desinformação e de ataques a seus adversários. O Facebook é uma das plataformas utilizadas pelo grupo para turvar o debate público ao confundir as noções de fantasia e realidade. Em boa hora, a empresa anunciou que passará a moderar o conteúdo das publicações feitas por políticos no mundo inteiro, que antes eram mantidas no ar em decorrência de uma alegada natureza “noticiosa”. Mas tantas são as mentiras e distorções propagadas por líderes como Bolsonaro que a empresa parece ter-se dado conta de sua responsabilidade.

A higidez do debate público e o fortalecimento da democracia dependem do cerco às redes de desinformação, nas esferas pública e privada.

O plano de inclusão da USP

O Estado de S. Paulo

Depois de ter adotado em 2018 um programa de inclusão social e racial distinto da política de cotas implementada por outras instituições brasileiras de ensino superior, a Universidade de São Paulo (USP) vem colhendo os dividendos dessa iniciativa, como revelam os últimos números da Pró-Reitoria de Graduação sobre o perfil socioeconômico de seu corpo discente computados após o vestibular deste ano. Esse programa foi formulado com o objetivo de preservar o princípio do mérito como requisito fundamental de seu processo seletivo. 

Em 2021, 51,7% dos estudantes que se matricularam nos cursos de graduação da USP vieram de escolas públicas. Em 2020, a taxa foi de 47,8%. Com isso, a USP alcançou o objetivo estabelecido em 2018 de ter, dentro de quatro anos, mais alunos oriundos de escolas públicas de ensino básico do que de escolas particulares. O plano escalonado de inclusão social aprovado pelo Conselho Universitário previa, para o vestibular de 2018, uma reserva de 37% das vagas por curso e turno de cada unidade de ensino para alunos vindos de escolas públicas e não brancos. Em 2019, a reserva foi de 40% e, em 2020, de 45%. 

Pelo programa adotado, ao escolher sua carreira e seu curso os candidatos têm três opções na inscrição do vestibular: Ampla Concorrência (AC), Ação Afirmativa Escola Pública (EP) e Ação Afirmativa Preto, Pardo e Indígena (PPI). Em 2021, dos 51,7% de alunos matriculados oriundos de escolas públicas, 44,1% se autodeclararam pretos, pardos e indígenas. Esse porcentual equivale à proporção desses grupos no Estado de São Paulo, segundo os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). 

Em termos absolutos, das 10.992 vagas oferecidas pela USP, neste ano, 5.678 foram preenchidas por alunos que estudaram na rede pública de ensino básico – e, desse total, 2.504 são PPI. A unidade com o maior número de ingressantes vindos de escolas públicas e autodeclarados pretos, pardos e indígenas foi a Escola de Educação Física e Esporte de Ribeirão Preto, com 56,7% do total de matriculados em seus cursos. Em segundo lugar vem a Faculdade de Educação, com 51,5%, seguida pela Escola de Artes, Ciências e Humanidades, também chamada de USP Leste, com 51%, e pelo Instituto de Ciências Biomédicas e o Instituto Oceanográfico, com 41,1%. Nos cursos mais antigos e tradicionais, a porcentagem foi de 41,1% na Faculdade de Medicina; de 41,5%, na Escola Politécnica; e de 49,3%, na Faculdade de Direito. 

Graças a esse plano, o perfil socioeconômico dos alunos da maior e mais importante universidade do País, até então considerada uma instituição para os filhos da alta burguesia e da classe média alta, vem mudando significativamente. Em 2021, por exemplo, 49,4% dos calouros têm uma renda familiar bruta entre um e cinco salários mínimos e 54,6% têm renda acima de cinco salários mínimos. Em 2019, esses índices foram de 47,5% e de 55%, respectivamente. Além disso, o número de calouros com renda familiar de até um salário mínimo (R$ 1.100) passou de 2,9%, em 2020, para 4,6%, neste ano.

Para enfrentar o crescente aumento do número de alunos ingressantes com necessidades econômicas e afastar o risco de elevação da taxa de evasão escolar, a USP também vem ampliando os gastos com a Política de Apoio à Formação e Permanência Estudantil. Ela oferece auxílio para moradia, alimentação, manutenção e transporte, além de bolsas concedidas com base em critérios socioeconômicos, para que os alunos se mantenham durante a graduação. Em 2021, essa política consumiu R$ 250 milhões – cerca de 6,7% a mais do que no ano passado. 

Desde que as políticas de ação afirmativa passaram a ser adotadas pelas universidades públicas brasileiras, a partir da década de 2000, a USP sempre tomou cuidado em manter o nível de qualidade de ensino e impedir o crescimento da taxa de evasão, não confundindo assim o sistema de cotas com assistencialismo. Como já foi registrado nos três anos anteriores, os números de 2021 deixam claro que ela continua no caminho certo. 

Lenta abertura

Folha de S. Paulo

País dá continuidade à busca de competição bancária, mas avanço deixa a desejar

Embora o debate do tema seja contaminado por mistificação ideológica e teorias conspiratórias, o poder exagerado de mercado dos grandes bancos constitui uma distorção palpável da economia brasileira. O problema, ao menos, tem recebido maior atenção da política pública, o que resulta em alguma melhora, mas em ritmo lento.

Nos últimos anos, o Banco Central passou a publicar com regularidade estatísticas da concentração do mercado nacional, e os dados mostram queda gradual a partir de 2017. A tendência se manteve no ano passado, conforme dados divulgados nesta segunda (7).

No indicador de mais fácil compreensão, caiu a participação das cinco grandes instituições bancárias —Banco do Brasil, Itaú, Bradesco, Caixa Econômica Federal e Santander— nas operações de crédito, na captação de depósitos e nos ativos totais do sistema.

Essa participação, observe-se, permanece muito elevada, chegando a 68,5%, por exemplo, nos empréstimos e financiamentos, não muito diferente dos 69,8% de 2019. Trata-se de um óbvio obstáculo à queda consistente dos juros cobrados de consumidores e empresas.

A queda se deveu, principalmente, ao encolhimento relativo dos estatais BB, CEF e BNDES, que não acompanharam por inteiro a vigorosa expansão do crédito, de 15,6%, impulsionada por medidas de enfrentamento da pandemia e pelo corte da taxa de juros do BC.

Da fatia perdida pelos gigantes federais, cerca de 40% foram assumidos por bancos menores e outros concorrentes no mercado, segundo o BC. É positivo, mas, de novo, trata-se de mudança pequena.

A concentração bancária no Brasil resulta de transformações profundas ocorridas a partir dos anos 1990, quando o controle da inflação tirou um grande número de instituições do negócio. Depois vieram privatizações, fusões e aquisições.

Sucessivos governos permitiram e até estimularam o processo, dado que assim o sistema financeiro se tornava menos vulnerável a crises como a que derrubou as economias desenvolvidas ao final de 2008.

Mais recentemente, a paralisia econômica e a queda dos juros básicos —não refletida devidamente nos juros bancários— chamaram a atenção para o imperativo de fomentar a competição no setor. Em 2016 o BC deu início a uma agenda de medidas pró-concorrência, que felizmente tem continuidade hoje.

As inovações tecnológicas, que entre outras vantagens facilitam a entrada de mais participantes no mercado, já fazem parte importante do trabalho. Ao BC cabe facilitar a evolução e promover aperfeiçoamentos como o Cadastro Positivo.

Faroeste Caboclo

Folha de S. Paulo

Presidente da CBF é afastado para conter crise que chegou ao terreno político

afastamento de Rogério Caboclo da presidência da Confederação Brasileira de Futebol, em meio ao imbróglio da realização da Copa América no Brasil, retira de cena um dirigente que deu renovadas mostras de inadequação em pouco tempo e é acusado de grave desvio de conduta ao assediar uma funcionária da entidade.

Caboclo ensaiava uma aproximação com o presidente Jair Bolsonaro, em mais um deplorável episódio de associação entre o esporte e interesses políticos de ocasião. Prevaleceu, porém, a evidência de que seu comando tornou-se insustentável, deixou de ser conveniente para a cúpula da CBF e passou a incomodar os patrocinadores.

Candidato único, eleito em 2018 para um mandato de quatro anos, a ser cumprido a partir de 2019, o então diretor-executivo da entidade chegou ao posto apadrinhado pelo ex-presidente Marco Polo Del Nero, envolvido em escândalo de corrupção investigado pelo Departamento de Justiça americano.

O vice, José Maria Marin, também implicado no caso, foi preso e condenado à prisão nos EUA.

Banido pela Fifa de todas as atividades ligadas ao futebol, Del Nero não mais deixou o país com medo de ser preso. Continuou, contudo, a exercer forte influência nos bastidores —e foi decisivo para a eleição de seu sucessor.

Caboclo, portanto, é herdeiro ocasional de uma longa dinastia de presidentes acusados de desmandos na CBF, da qual faziam parte Ricardo Teixeira e seu ex-sogro João Havelange —que posteriormente presidiu a entidade máxima da modalidade.

Seu afastamento, embora formalmente justificado para que se defenda das acusações da funcionária, tende a ser irreversível. A saída de cena pode significar algum alívio e reduzir a contrariedade da comissão técnica e dos jogadores com a decisão apressada de trazer a Copa América ao Brasil.

A controvérsia ultrapassou a fronteira esportiva e chegou aos terrenos sanitário e político —e não é certo que esteja encerrada.

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