sábado, 12 de junho de 2021

Pablo Ortellado - Os 'homens de bem'

- O Globo

São bastante conhecidas as acepções da expressão “pessoa de bem” nos meios conservadores. A expressão alude a uma pessoa proba, trabalhadora e de família. Define-se por oposição ao “vagabundo”, o marginal, o sem-trabalho e sem-família. As pessoas “de bem”, nesse sentido, são aquelas que a sociedade e o Estado devem considerar e proteger; e os demais, que se desviaram da rota por indisciplina ou por falta de caráter, devem ser punidos. O que frequentemente não notamos, porém, é que a esquerda também tem seus “homens de bem”.

A distinção valorativa entre os “de bem” e os “vagabundos” é essencial para explicar a dualidade de tratamento que os conservadores impõem a certas pessoas.

Ela explica por que os conservadores não condenaram a incursão violenta da Polícia Civil no Jacarezinho, que estaria tomado e controlado por vagabundos. Explica também por que, na CPI, o senador Flávio Bolsonaro se indignou com a possibilidade de Fabio Wajngarten, um “homem de bem”, receber voz de prisão de Renan Calheiros, um “vagabundo”.

No mundo conservador, é o caráter, ou melhor, a aparência de um certo tipo de caráter, que distingue o “homem de bem” do “vagabundo”. Na esquerda, é o posicionamento ideológico, ou melhor, a aparência de posicionamento ideológico, que separa as pessoas “conscientizadas” das pessoas com “posições equivocadas” — as primeiras devem ser consideradas; as segundas, condenadas.

As pessoas com “posições equivocadas” não são dignas de consideração. Se erram, ainda que de boa-fé, devem ser denunciadas e expostas no tribunal da opinião pública, e o ato de denúncia conferirá prestígio e virtude ao denunciante.

É o que aconteceu no já bastante comentado episódio em que Juliana Paes — ao pedir, no Instagram, um pouco mais de nuance no debate público — foi atacada por usar a expressão “delírio comunista” em uma referência ao PT. A desproporção entre o tamanho do “erro” de Juliana e a dureza da sua condenação no tribunal das redes lembra a dureza de tratamento e a falta de consideração dos conservadores pelos “vagabundos”.

Obviamente, não são equivalentes a execução extrajudicial e os assassinatos de reputação. Mas o fato de não serem equivalentes no tamanho do dano que causam não significa que não tenham a mesma forma, nem que não se retroalimentem. Afinal, o fervor do “homem de bem” contra os “vagabundos comunistas” alimenta a indignação do “conscientizado” contra os “fascistas” — e vice-versa.

Há ainda um problema adicional. A falta de consideração da esquerda pelas pessoas “não conscientizadas” pode ter efeitos eleitorais. Não será suficiente, em outubro de 2022, convidá-las para comer um bolo e conversar num vira-voto depois de passar quatro anos chamando-as de fascistas.

O desafio político que vivemos não pode ser superado alimentando a divisão dicotômica entre as pessoas que prestam e as que não prestam. De alguma maneira, precisamos recuperar o respeito mútuo, a tolerância política e o sentimento de que, a despeito das diferenças, pertencemos a uma mesma comunidade política.

 

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