quarta-feira, 16 de junho de 2021

Vera Magalhães - Polícias sem comando

- O Globo

É um engano pensar que os governadores dos estados estão prestes a perder o controle sobre as polícias, sobretudo a Polícia Militar. A quebra do elo de hierarquia e, além disso, a dissociação política na tropa já são uma realidade, e esse fenômeno oferece um risco adicional a tantos que vêm sendo acrescidos ao barril de pólvora da eleição de 2022.

Episódios como o motim da PM do Ceará, a forma violenta e injustificável como a polícia de Pernambuco coibiu o protesto contra Jair Bolsonaro em 29 de maio último e relatos de policiais cada vez mais adotando discurso político em defesa do presidente em detrimento dos governadores, como verificado recentemente em Alagoas, mostram que a insubordinação e a politização correm soltas entre os policiais, assim como já vem acontecendo no Exército.

Num texto em que usei o neologismo “bolsochavismo”, no início de 2020, antes da pandemia, eu já anotava que a cooptação das Forças Armadas e das polícias, combinada com a criação de milícias paraestatais, era peça decisiva na perpetuação do chavismo, começada pelo próprio Hugo Chávez e aprofundada sob Nicolás Maduro.

Ironicamente, aqueles que votaram tendo como um dos mantras-clichês aquele segundo o qual, se o PT vencesse, o Brasil iria “virar uma Venezuela” abriram as comportas para que, veja só, começássemos a importar muitos dos métodos que fizeram o país vizinho mergulhar numa ditadura que condena os cidadãos à falta de liberdade, à miséria, à fome e a violações sistemáticas dos direitos humanos.

Bagunçar a hierarquia, as regras e a disciplina militares, seja no Exército, seja nas PMs, é investir de forma bastante deliberada nesse sentido.

No último fim de semana, um incidente nos obrigou a um contato mais próximo com a PM paulista. O discurso pró-Bolsonaro e anti-Doria, reproduzindo desinformação acerca da vacinação e da pandemia e pregando ostensivamente a reeleição do presidente, é conversa corriqueira entre os policiais.

Poucas coisas podem ser mais deletérias para a democracia que forças de segurança capturadas por ideologia barata. Como toda a sucessão de fatos que nos trouxeram até este cenário pré-eleitoral que requer cuidados, os avisos no sentido de que as PMs eram um alvo de doutrinação olavista foram todos dados. E minimizados ou ignorados.

O próprio Olavo de Carvalho garganteou que daria seu curso on-line gratuitamente para policiais. Outras iniciativas do gênero, na forma de palestras e lives, foram levadas a cabo em todo o país.

A maior incidência de deputados estaduais e federais oriundos das PMs tratou de fazer o restante do trabalho. Hoje proliferam grupos no Facebook e em aplicativos como WhatsApp e Telegram, além de canais no YouTube, associando a farda ao bolsonarismo e incutindo na tropa a ideia de que os governadores são pró-bandido, contra as corporações, insensíveis às reivindicações dos policiais.

O governador de Alagoas, Renan Filho (MDB), tentou matar o mal no nascedouro com a exoneração de um subcomandante da PM flagrado em críticas a ele e louvação a Bolsonaro, mas esse tipo de expediente, se não for antecedido e sucedido de um trabalho de inteligência, para detectar o grau de adesão das tropas à politização, e de reforço de comando para debelar essas ideias, pode produzir efeito contrário: a união dos policiais em torno do colega expulso “injustamente” por razões “políticas”, numa completa inversão, mas que convence pelo espírito de corpo.

Os estados perderam o controle dos presídios por demorar a agir contra a sua tomada pelas facções criminosas, algo que se soube desde cedo.

Deixar correr solta a bolsonarização das polícias será plantar dificuldades que todos os adversários do capitão enfrentarão na disputa mais renhida a que este país já terá assistido, a do ano que vem.

 

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