sábado, 10 de julho de 2021

Ascânio Seleme - Claro que militar rouba

O Globo

Fato de o servidor ser militar não o inocenta prévia e automaticamente de qualquer denúncia

Imagine se a Associação dos Funcionários Públicos Federais emitisse uma nota oficial protestando contra denúncias de corrupção de seus associados. Seria ridícula, tão ridícula quanto a nota assinada pelo ministro da Defesa, Braga Netto, e os comandantes militares contra o presidente da CPI, senador Omar Aziz, por ter observado que o lado podre das Forças Armadas envergonha o lado bom. Qual é o erro nesta afirmação? Nenhum, a menos que os militares honestos não se envergonhem dos malfeitos dos bandidos fardados.

O fato de o servidor ser militar não o inocenta prévia e automaticamente de qualquer denúncia. Para ser honesto, tem que praticar a honestidade. Pode ser que no estrito cumprimento de suas obrigações constitucionais, dentro dos quartéis, seja mais difícil ao servidor fardado aliviar os cofres públicos, em razão da disciplina rígida e do sistema punitivo próprio. Mas, ainda assim, rouba-se até mesmo na caserna. Em 1991, O GLOBO revelou um mega esquema de desvios no Exército através do superfaturamento de fardas e roupas de cama e banho para recrutas. Em 2017, o Ministério Público Militar denunciou 11 pessoas, seis militares e cinco civis, por desvios de R$ 150 milhões em contratos de obras entre 2005 e 2010.

Há dois meses o Ministério da Saúde exonerou seu superintendente no Rio, coronel George Divério, por autorizar obras sem licitação em prédios oficiais. As obras foram encomendadas a empresas altamente suspeitas e que já haviam se envolvido em outras mutretas na Indústria de Material Bélico, do Exército, na época em que a Imbel era dirigida Divério. O coronel exonerado foi substituído por outro coronel. Isso garante lisura para o órgão? Claro que não. Agora, no Ministério da Saúde, indícios de malfeitos apontam para outros oficiais que comandaram unidades da pasta durante a desastrosa, “imoral e antiética” gestão do general Pazuello.

Casos de corrupção ocorrem em maior ou menor volume diante das chances que o desonesto tem de roubar. Nunca, em tempo algum, militares ocuparam tantos cargos civis no governo federal. Nem no período mais fechado e tenebroso da ditadura militar, no governo do general Garrastazu Médici, houve tantos coronéis e generais em postos de primeiro e segundo escalões do Executivo federal. Considerando todas as patentes, mais de 6 mil postos civis foram entregues a militares no governo Bolsonaro. Claro que haveria de aparecer casos de avanços sobre o dinheiro público feitos por homens com estrelas nos ombros.

A nota irada e descabida da Defesa foi de uma sandice sem tamanho. Foi um ato político que não guarda nenhuma proximidade com o bom senso e a inteligência. Foi estúpida, por ser intransigente. E burra, por ser ameaçadora. Desde quando militar desonesto não pode ser citado por senador? Que conversa é essa de “as Forças Armadas não vão aceitar ataques levianos”? Primeiro, a fala de Aziz não foi leviana. E, mesmo que fosse, caberia tão somente ao Ministério da Defesa defender-se nos tribunais. Que processasse o senador, o que não podia era ameaçar a CPI, nem o Senado. Em última análise, a nota ameaça a democracia.

A nota erra gravemente em outro ponto. Diz que que Exército, Marinha e Aeronáutica “defendem a democracia e a liberdade do povo brasileiro”. Engano. Essas não são atribuições das Forças Armadas, que, de acordo com a Constituição, “destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos Poderes constitucionais e (eventualmente) da lei e da ordem”. Quem defende a democracia e a liberdade do povo é a própria Constituição. Obrigado, generais, mas o povo e a democracia defendem-se com a Constituição. A mesma que os senhores estão obrigados a obedecer.

Por fim, a nota mostra o grau de alienação dos seus signatários. O país passa por uma crise sem tamanho gerada por um presidente com cara, estilo e patente de militar. Sua gestão da pandemia resultou em milhares de mortes que poderiam ter sido evitadas se ele não desse tratamento político a uma crise sanitária e se o general que mandou chefiar a Saúde não fosse absurdamente incompetente. Com tanta coisa para se preocupar, inclusive recuperar a imagem para lá de manchada das Forças Armadas, o ministro Braga Netto e os comandantes militares saíram em defesa de oficiais corruptos e atacaram o presidente da CPI. Ou foi um exagero mal calculado ou mais um ato de subserviência de generais ao capitão.

ABUSADO

Você ainda tem dúvida de que o presidente do Brasil passou de todos os limites? Ameaçar as eleições do ano que vem é tão grave que nenhuma nova chance pode ser dada a este homem. Vai aparecer a turma que adora passar pano para dizer que Bolsonaro falou da boca para fora, que não foi um ataque, que denota uma preocupação com a lisura eleitoral. Balela. Foi uma ameaça à democracia categórica. Quem vai dizer se a eleição será limpa ou não? Será limpa apenas com voto impresso? E quem assume o país no dia 1º de janeiro de 2023 se não houver eleição? O presidente da Câmara ou o capitão fica no posto? Claro que foi uma ameaça de golpe, que num país graduado seria devidamente punida.

E AGORA, GENERAL?

Já que o general Braga Netto disse em sua nota contra Omar Aziz que as Forças Armadas defendem a democracia e a liberdade do povo, o que ele tem a dizer sobre a ameaça do golpista às eleições presidenciais do ano que vem? Rejeitado por 51% dos brasileiros, em queda livre entre os eleitores, Bolsonaro não para de falar idiotices e não se ouve um “opa, espera aí” dos generais, que apenas se incomodam quando alguém identifica um ladrão entre eles.

POUCO INTELIGENTE

A maioria dos brasileiros, segundo o Datafolha, acha o seu o presidente desonesto, falso, incompetente, despreparado, autoritário e pouco inteligente. Alguma surpresa? Nenhuma. Desde o dia zero sabia-se que sua excelência tinha mesmo um déficit cognitivo importante. Incompetente e despreparado deu para ver quando ele ignorou a reforma da Previdência, que só andou por causa de Rodrigo Maia. Que era autoritário soube-se quando abriu pela primeira vez a boca, há 30 anos. Desonesto e falso descobriu-se logo em seguida. Surpreendente é que ainda existam uns 20% de cidadãos que chamam esse conjunto todo de mito.

TRAÍRA

O provável nome de Bolsonaro para o Supremo, André Mendonça, faz visita a senadores em campanha aberta para a vaga. A todos, tem repetido que não pretende ser um “ministro evangélico”, que suas decisões na Corte não serão baseadas na sua fé. O homem nem foi indicado ainda e já está traindo a quem disse que nomearia para o STF um jurista “terrivelmente evangélico”.

PODE LEVAR!

Perdidas no meio da confusão da prisão de Roberto Dias, duas exclamações dos envolvidos valem ser lembradas. Quando Omar Aziz determinou a prisão, ao mesmo tempo que a sua advogada protestava, Dias disse: “Perfeito!”. Ao encerrar a sessão com a determinação da detenção, Aziz levantou-se e afastou o microfone, que ainda captou sua derradeira determinação: “Pode levar!”.

SIMONE SEM DÓ

A senadora Simone Tebet não teve o menor constrangimento ao escancarar para a funcionária Regina Célia a porcariada contida na nota fiscal que ela deveria ter fiscalizado. Será que a servidora vai reclamar do tratamento inadequado, já que, como Nise Yamagushi, ela é uma senhora, e como tal deveria ser tratada?

ALIÁS

Quem também tem que se explicar com relação ao invoice fajuto é o ministro Onyx Lorenzoni. Ele usou o documento como legítimo para desqualificar os irmãos Miranda na entrevista que deu no Palácio do Planalto. Foi esta entrevista, aliás, junto com declarações formais de senadores governistas da CPI, que tornaram oficial o recebimento da denúncia pelo presidente. Não fosse Onyx, Bolsonaro poderia até negar ter recebido os Miranda no Alvorada.

DESPREZO

Nem tanto por ter sido lembrado por Spike Lee como um gangster, o que envergonhou mesmo foi o fato de o cineasta ter esquecido o seu nome. Ao mencionar Putin e Trump (o laranja), ele citou também “aquele cara do Brasil”. Já houve presidente brasileiro sendo chamado de “esse é o cara”, mas de “aquele cara” foi a primeira vez.

AQUELE CARA E O MALUCO

Tentar negar acesso à internet nas escolas públicas brasileiras é mais ou menos como suspender a merenda de alunos pobres. Aquele cara do Brasil quer negar a internet à garotada mais pobre, e Boris Johnson, o maluco primeiro-ministro britânico, propôs cortar a merenda dos meninos desvalidos durante a pandemia. O maluco foi impedido, mas ainda não se sabe como vai ficar a proposta daquele cara do Brasil.

VALE A PENA LER DE NOVO

A cantora Teresa Cristina produziu a melhor sacada sobre o depoimento mentiroso de Roberto Dias à CPI. “Depois de quantos chopes vocês começam a negociar vacinas? É para o meu TCC”, escreveu ela.

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