domingo, 25 de julho de 2021

Dorrit Harazim - Leiam Brecht

O Globo

O marxista alemão Bertolt Brecht, que usou o teatro para tentar transformar o mundo, também produziu uma série de poemas esperançosos e atípicos para a época. Foi na terceira década do século XX —naquele entreguerras em que os intelectuais e poetas chafurdavam na desilusão, e o militarismo das nações cavalgava para novos confrontos — que Brecht escreveu seu mais célebre poema, dirigido a oficiais:

— O vosso tanque, general, é um carro-forte/ Derruba uma floresta, esmaga cem/ Homens/ Mas tem um defeito/ —Precisa de um motorista./ O vosso bombardeiro, general/ É poderoso/ Voa mais depressa que a tempestade/ E transporta mais carga que um elefante/ Mas tem um defeito/ —Precisa de um piloto. / O homem, meu general, é muito útil/ Sabe voar, e sabe matar/ Mas tem um defeito/ —Sabe pensar.

Esse chamamento à capacidade humana de um pensar livre não foi ouvido à época, e o mundo se encarniçou na Segunda Guerra Mundial. Algumas lições do conflito foram incorporadas à História, outras nem tanto. Ainda assim, aos trancos e barrancos, conseguiu-se chegar a 2021. Oitenta anos depois de Brecht, o cenário global vive novo período de negativismo moral (não confundir com negacionismo): o planeta Terra está literalmente derretendo por obra de quem nele habita, a humanidade vive para não morrer na pandemia, a desigualdade entre pobres e ricos virou cancro explícito e obsceno, e as instituições que sustentam os regimes democráticos estão sob assalto por toda parte. Daí a atualidade da esperança brechtiana no homem e da necessidade de um engajamento coletivo. Pensar leva a agir. Só alertar já não basta.

Em discurso na Filadélfia, berço da democracia norte-americana, o presidente Joe Biden falou claro, dias atrás. “Estamos enfrentando a prova mais tormentosa à nossa democracia desde a Guerra Civil”, advertiu ele, referindo-se ao conflito interno do século XIX que fez mais de 600 mil mortos e deixou feridas nacionais não cicatrizadas até hoje. “E não digo isso para alarmá-los. Digo isso porque vocês precisam ficar alarmados.” Motivos não faltam. Desde sua posse, em janeiro, o sucessor de Donald Trump não conseguiu impedir o cerceamento acelerado do direito ao voto no país. Dados do Centro Brennan de Justiça, citados pelo jornal The Guardian, apontam que, só neste ano de 2021, 17 estados já aprovaram 28 leis que dificultam o ato de votar; 400 outros projetos de lei no mesmo sentido foram apresentados em legislaturas de 48 estados. No conjunto, essas mudanças tendem a afetar grupos eleitorais de tendência democrata (pobres, negros, jovens). “Precisamos agir”, exortou Biden ao final. Soou bonito, mas oco. Ele ficou devendo seu próprio plano de ação para neutralizar a insidiosa alegação trumpista de que eleições são fraudulentas. Mais de 70% de seus eleitores negam até hoje o resultado das urnas que deu vitória ampla a Biden em 2020 — e voltarão a fazê-lo em 2024.

Este é o legado mais oneroso de Donald Trump ao país: ter conseguido achincalhar e minar a instituição do voto democrático. Jamais um ocupante da Casa Branca havia ameaçado rejeitar um resultado que lhe fosse desfavorável e se recusara a passar o poder . O desarranjo institucional chegou a tamanha fervura que o chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, general Mark Milley, teve de se posicionar diante da possibilidade de Trump querer recorrer a militares para ganhar na força. “Em caso de disputa sobre qualquer aspecto eleitoral, a lei ordena que as Cortes e o Congresso dos Estados Unidos, não os militares, resolvam essas questões. Não vejo qualquer papel para as Forças Armadas nesse processo. Eu, assim como todos os membros das Forças Armadas, prestamos o juramento de defender a Constituição dos Estados Unidos, respeitando as ordens legais da cadeia de comando”, testemunhou Miller por escrito. E assim foi.

Em países como a Austrália, a aproximação entre fardados e política é anátema. Numa entrevista coletiva que adquiriu notoriedade dois anos atrás, a maior autoridade militar do país, general Angus Campbell, comunicou ao então ministro da Defesa, Christopher Pyne, que todo o Alto-Comando presente se retiraria do evento quando o tema da entrevista focasse questões políticas. E assim foi.

Recomenda-se aqui mais comedimento ao atirado ministro da Defesa, Walter Braga Netto; ao defenestrado da Casa Civil e empurrado para a Secretaria-Geral da Presidência, general Luiz Eduardo Ramos; ao vice-presidente topa-tudo, general Hamilton Mourão; ao showman chefe do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno; ao indiciado ex-ministro da Saúde, hoje abrigado no Gabinete de Segurança Institucional, general Eduardo Pazuello. Leiam o artigo de Octavio Guedes “De Prestes a Brizola: por que generais bolsonaristas ofendem a democracia” e contentem-se com seus salários duplos pagos por nós.

Por ora, os únicos militares que o país quer aplaudir alto e saudar são os 91 atletas das Forças Armadas que compõem 30% do Time Brasil nos Jogos Olímpicos de Tóquio. Eles competirão em 21 das 46 modalidades. Na Rio2016, fizeram lindo: conquistaram 13 das 19 medalhas brasileiras, honrando o ótimo Programa Atletas de Alto Rendimento (PAAR) do Ministério da Defesa. Eles honram o uniforme que vestem. Vocês desonraram a patente que conquistaram. Leiam Brecht — o brasileiro também sabe pensar.

 

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