domingo, 18 de julho de 2021

Dorrit Harazim - O exibicionista

O Globo

Convenhamos: ninguém fica bem numa cama de hospital. Os lençóis e a roupa usados pelo internado sempre parecem amarfanhados e do tamanho errado. Nenhum paciente com uma sonda nasogástrica a lhe sair pela narina, uma bolsa ligada à jugular (para nutrição parenteral) e várias outras sondas e bolsa no peito tem algo de atraente. Assim como nada tem de formoso o abdômen nu e várias vezes remendado de quem, como o presidente Jair Bolsonaro, se aproxima dos 70 anos. Expor-se assim voluntariamente, de caso pensado e ângulo frontal calculado, só mesmo um político necessitado de vitimização. Costuma funcionar para quem depende da convicção irrestrita e irracional de seus seguidores/eleitores.

A internação do capitão quase conseguiu desviar a atenção nacional de outras agruras. O filho Zero Três do governante, o deputado Eduardo Bolsonaro, chegou a divulgar, por ignorância ou má-fé, a informação falsa de que o pai havia sido entubado — confundir um tubo traqueal com uma sonda nasogástrica não é coisa banal para quem está rodeado de médicos. Perfis robóticos alinhados ao bolsonarismo também trataram de disparar mensagens sugerindo que um exame de sangue do presidente revelara altas doses de chumbo. Em outras palavras, o presidente poderia ter sido vítima de uma tentativa de envenenamento, teria roçado a morte! Uma boa teoria da conspiração sempre funciona para quem nela quer acreditar.

Como se veria ao longo da semana, a obstrução intestinal que levou Bolsonaro a ser internado primeiro no Hospital das Forças Armadas, em Brasília, depois transferido para o Hospital Vila Nova Star, em São Paulo, foi séria. O quadro poderia ter exigido nova cirurgia, mas pôde ser resolvido com a retirada de 1 litro de conteúdo fecal do paciente. Pelo menos até a tarde de sexta-feira, o capitão já se mostrava pimpão, reforçando a crença de seus apoiadores em que, além de mito, também é milagroso.

Diante do descarte de uma intervenção cirúrgica por ora, com o quadro evoluindo “satisfatoriamente”, o capitão tratou de testar sua popularidade no estrelado hospital. Vestindo bermuda, tênis e camiseta, passeou por leitos de outros internados e tirou foto com pelo menos uma internada, ambos sem máscara. Também circulou pelos corredores, sempre sem máscara e pilotando o suporte de sondas. Concedeu uma entrevista (à distância) ao apresentador Sikêra Júnior no quarto, com a ilustre presença do cirurgião gástrico Antonio Macedo.

Bastante estranho o protocolo do Vila Nova Star ao permitir que pacientes circulem sem máscara e façam visitas-surpresa a outros internados em pleno rigor pandêmico. Mais provável que tenha sido uma exceção à regra, uma cortesia midiática do hospital ao presidente. Nada tão diferente, no fundo, da liberalidade oferecida a Bolsonaro pela empresa aérea Azul algumas semanas atrás. Como foi amplamente divulgado, o presidente se encontrava no aeroporto de Vitória quando lhe ocorreu entrar de surpresa num avião comercial para cumprimentar os passageiros já embarcados. Entrou pela porta frontal, retirou a máscara para fotos com a tripulação, recebeu aplausos e apupos e retornou ao saguão de embarque. Não ocorreu aos agentes de segurança encarregados da proteção do chefe impedir o arroubo. Mesmo que o fizessem, o capitão daria de ombros. Tampouco ocorreu à Azul, responsável pela segurança dos passageiros, evitar a carteirada presidencial. Ao contrário, a empresa ainda jogou a responsabilidade nos ombros do comandante do voo.

É o Brasil de regras paralelas, chefiado por um capitão exibicionista.

Mais de cinco décadas atrás, em 8 de novembro de 1965, o então presidente dos Estados Unidos, Lyndon B. Johnson, foi submetido a uma cirurgia para retirada simultânea da vesícula biliar e de uma pedra na uretra. L.B.J. ascendera ao poder de supetão havia menos de cem dias, e o país ainda estava traumatizado com o assassinato de John F. Kennedy dois anos antes. Uma segunda morte seria inimaginável. À época, Johnson fizera uma única exigência: a cirurgia deveria ser realizada numa sexta-feira (ele fora internado dias antes) para evitar um sobressalto em Wall Street. Deu tudo certo, e nada foi escondido do público. Ainda assim, persistiam rumores de que ele fora operado de um câncer, e não da vesícula. O que fez o presidente? Informou-se com a junta médica sobre o exato traçado das cicatrizes de uma retirada da vesícula e de uma cirurgia exploratória de câncer abdominal. Eram bastante distintas.

Foi por isso, e apenas por isso, que Johnson convocou uma histórica entrevista coletiva no heliponto do hospital, levantou a camisa, expôs o feio barrigão e ostentou a gigantesca e ainda crua cicatriz que enterrou os boatos. A nenhum governante de país civilizado, nem mesmo a L.B.J. —cujos linguajar, modos e temperamento podiam ser de uma crueza ímpar —, ocorreria postar autorretratos hospitalares ou ostentar cicatrizes pós-cirúrgicas como distintivos. Mas Jair Bolsonaro não é um governante de país civilizado. É um governante não civilizado de um país em busca de seu tempo perdido.

 

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