sábado, 31 de julho de 2021

Hélio Schwartsman - Só provou que não tem palavra

Folha de S. Paulo

E ainda cometeu um crime contra a epistemologia

Não foram só mentiras, ataques gratuitos e crimes de responsabilidade que o presidente Jair Bolsonaro perpetrou no aguardado pronunciamento em que provaria a ocorrência de fraudes eleitorais. Ele também cometeu um crime contra a epistemologia, quando afirmou que é impossível "comprovar que as eleições não foram ou foram fraudadas". Como agravante, ele, numa inversão do ônus da prova, ainda exigiu dos que dizem que o sistema eleitoral é hígido que demonstrem sua infraudabilidade.

Se fosse isso mesmo, estaríamos condenados a viver num mundo ainda mais incerto do que o atual. Em termos puramente lógicos, é, sim, possível confirmar tanto a existência como a inexistência fraudes eleitorais, embora as duas tarefas sejam muito desiguais.

A missão mais fácil é a da parte que precisa demonstrar a existência de burla. Afinal, bastaria apresentar evidência de uma única instância de manipulação para encerrar o caso. Mas, como a ausência de evidência não é evidência de ausência, provar que algo não existe ou não ocorreu, mesmo quando é possível, costuma ser bem mais trabalhoso.

No caso da eleição, eu poderia, por exemplo, filmar secretamente o voto de todos os eleitores. Depois, eu compararia as imagens com o resultado proclamado. Se não houver divergência, está provado que não houve manipulação. Registre-se, porém, que essa alternativa é muito pouco prática —além de ilegal, por violar o sigilo do voto.

É devido a essa assimetria fundamental que, em filosofia e às vezes também no direito, atribui-se o ônus da prova à parte que tem mais condições de produzi-la. No caso da propalada fraude eleitoral, ela recai sobre quem afirma que as eleições foram roubadas. E Jair Bolsonaro não apenas não apresentou evidências críveis de sua tese como, mais uma vez, recuou do que havia prometido fazer. Se o presidente provou alguma coisa, é que não tem palavra nem compromisso com os fatos.

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