sexta-feira, 30 de julho de 2021

José de Souza Martins* - A espada e o voto impresso

Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Os militares prestariam um enorme serviço à pátria se modernizassem sua profissão e sua formação

É um equívoco político supor que os militares, enquanto militares, são autoridade privilegiada na opinião sobre o voto, quanto a ser impresso ou eletrônico. Esse é um assunto essencialmente civil porque é político. E a política é de todos os cidadãos, também deles enquanto tais.

Eles têm tanto direito de dar palpites em assuntos políticos e eleitorais quanto eu, educador, tenho direito de dar palpites sobre assuntos militares.

Em especial quanto à necessidade de modernização da formação das novas gerações de oficiais para que se atualizem quanto à sociedade e ao país a que devem servir. Pois já não é este o país instrumentalizado pela geopolítica da dominação americana e da Guerra Fria nem o da polarização ideológica dela decorrente, o do regime de 1964.

As novas gerações têm concepção própria de liberdade, de democracia e de esperança. Seria bom para o país levar isso em conta. Em vez da discussão ultrapassada e arcaica sobre voto impresso ou voto eletrônico, os militares prestariam um enorme serviço à pátria se modernizassem sua profissão e sua formação. E o país inteiro lhes ficaria agradecido, como já ficou em outras ocasiões.

Especialmente quando viabilizaram o nacional-desenvolvimentismo, ao apoiar o pensamento dos civis cultos e patrióticos, no que foi o grande momento da história econômica, social e política do país.

Quando entra no recinto para votar, o militar despe imaginariamente sua veste simbólica de militar e a deixa do lado de fora do recinto eleitoral. É o que o espírito democrático e republicano pressupõe.

Ninguém vai votar vestido de general, com todas aquelas medalhas no peito. O militar vota como civil porque não existe voto militar embora exista voto de militar, como existe o de professor, o de médico, o de advogado, o de operário, o de lavrador e assim por diante.

Não há nem pode haver um partido militar, porque militar é uma função no serviço ao país e, portanto, a todos. Mesmo que a alienação popular vote em militares sem saber o que é um militar. Nas eleições de 2018, esse equívoco ficou mais do que dolorosamente claro.

Para uma parte da população, farda é sinônimo de militar e militar é sinônimo de polícia, caso em que se pode avaliar o tamanho de nossa ignorância política, pois militar é militar, polícia é polícia. Servidores públicos das polícias militares e das guardas civis municipais, que não são militares, foram eleitos porque o eleitor desinformado, que gosta de polícia, entendeu que farda e militar são uma e mesma coisa.

Do mesmo modo, nenhum eleitor tem outra qualificação que não seja a de cidadão, uma categoria completamente civil. Tanto quem vota quanto quem é votado.

O voto, nas democracias, não é um voto corporativo. Nem pode ser. Porque qualquer grupo que atue politicamente como corporação de interesses ou de visão de mundo que não seja a da sociedade estará agindo na contramão da concepção de pátria. A pátria só o é porque é de todos e não só de alguns.

O fato de que militares do Exército tenham proclamado a República não fez deles os únicos patriotas do país nem os fez mais patriotas do que qualquer um de nós.

Assim como não tem cabimento médicos se manifestarem sobre o voto impresso, enquanto médicos, não tem o menor cabimento que os militares se manifestem sobre a mais correta maneira de fazer um transplante de rim ou de fígado. Nem na mesa de operação no caso de ser um deles o paciente. É uma questão de papéis sociais, de situação social e de circunstância.

Vimos essa inversão esdrúxula nas ocorrências recentes relativas a um general na condição de ministro da Saúde. Ele não era e não é do ramo. Opinou sobre assuntos que não conhecia. E isso teve um preço social altíssimo. Ainda na ativa, deu a entender que agia como militar, coisa que não podia nem devia. Errou como militar fora do lugar.

O presidente da República, que teima na tese esdrúxula da honestidade do voto impresso contra o favorecimento da corrupção pelo voto eletrônico, assim como os que o acompanham na anômala concepção de voto, não tem dados técnicos nem científicos para demonstrar a procedência de sua tese. Tem apenas uma opinião ridícula.

É antidemocrática e retrógrada a cultura de palpites e palavras de ordem do atual presidente, como sua opção unilateral pelo voto impresso. Nela, equivocadamente, ele e os bolsonaristas se acham conservadores. Explicitamente, identificados com tudo que representa o atraso social, político e econômico, com o retrocesso e seus contravalores. Os de um passado fantasioso que nunca existiu, propriamente, como modelo desta sociedade. Conservadorismo é histórica e sociologicamente outra coisa, que ele já demonstrou não conhecer.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “No Limiar da Noite” (Ateliê, 2021).


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