sexta-feira, 2 de julho de 2021

Maria Cristina Fernandes - Uma mão lava a outra, mas só entre Poderes

Valor Econômico

Supremo deu garantia a Estados e municípios para a adoção de medidas em confronto com o negacionismo, mas TJs os liberam da obrigação de cumprir decisões em defesa da segurança sanitária

Com o julgamento de ação direta de inconstitucionalidade em abril de 2020, o Supremo Tribunal Federal deu garantia a que prefeitos e governadores pudessem adotar medidas de segurança sanitária em confronto com o negacionismo do presidente Jair Bolsonaro. A decisão do Supremo, porém, também fundamentou demandas de que muitos direitos de proteção à saúde fossem garantidos pelos governos locais. Foi aí que entraram os Tribunais de Justiça para permitir que Estados e municípios driblassem a cobrança pela efetivação de políticas públicas que o STF lhes havia garantido a liberdade de implementar.

É esta a principal conclusão do levantamento do Justa, organização não governamental voltada para a democratização da gestão pública da Justiça. Ao longo do primeiro ano da pandemia, sua equipe levantou, nos Tribunais de Justiça de cinco Estados (São Paulo, Paraná, Bahia, Ceará e Tocantins), o julgamento da suspensão de segurança, instrumento com o qual os governantes pedem para não cumprir decisões judiciais. Depois de surgir no ordenamento jurídico brasileiro na década de 1930, em defesa da ordem, da saúde e da segurança, incorporou, depois do golpe de 1964, a proteção da “economia pública”. Ao longo da pandemia, revelou-se como um instrumento a serviço de interesses governamentais em detrimento dos direitos dos cidadãos e da coletividade, concluiu o estudo coordenado por Luciana Zaffalon. “O Judiciário mostra-se como parte da solução, mas nos Estados são parte do problema”.

O Justa enviou pedidos de acesso à informação aos cinco Tribunais de Justiça para obter os números dos processos de suspensão de segurança julgados ao longo de 2020 e selecionou aqueles relacionados à pandemia. De todos os tribunais, o da Bahia foi o único a não prestar informações. Entre aqueles que o fizeram, o grau de transparência variou dos 5,2% dos processos que, em São Paulo, permanecem em segredo de Justiça até os 78% no Paraná. Em todos, os governos estaduais e municipais ganharam de lavada dos impetrantes que buscaram assegurar medidas de segurança sanitária.

Em São Paulo, por exemplo, o Justa identificou 37 pedidos de suspensão relacionados à covid ao longo de 2020. Desses, 21 foram egressos do governo estadual. Todos foram atendidos pela presidência do TJ. Entre essas medidas, consta, por exemplo, o reembolso de valores gastos por enfermeiros que, na ausência de fornecimento pelo Estado, compraram equipamentos de proteção individual.

A merenda escolar foi outro direito cujo atendimento foi afetado pela suspensão de segurança. As aulas nas escolas públicas foram paralisadas em 23 de março de 2020. Em abril, uma ação da Defensoria e do Ministério Público de São Paulo havia obtido liminar favorável a que governo e a Prefeitura de São Paulo garantissem merenda a todos os estudantes da educação básica. Ao longo da pandemia apenas famílias em situação de extrema pobreza e cadastradas no Bolsa Família ficaram elegíveis para receber R$ 55 por dependente matriculado em escola pública.

A ação se baseava na manutenção dos repasses do Plano Nacional de Alimentação Escolar, cujos valores levam em consideração um cálculo por estudante e não apenas aqueles em situação de vulnerabilidade. A liminar, porém, acabaria derrubada em 14 de abril de 2020. O governo e a prefeitura só voltariam a fornecer merenda em fevereiro de 2021, dois meses antes do retorno das aulas presenciais.

No dia seguinte à suspensão de segurança da merenda, o governo de São Paulo ganhou mais uma. O TJ garantiu o não cumprimento da decisão judicial que determinava ao Estado apresentação, em 72 horas, do cronograma de implementação do abastecimento de água potável para todas as comunidades e municípios atendidos pela Sabesp. A ação foi movida pelos cuidados redobrados de higiene recomendados pela saúde pública, mas o TJ entendeu que não era o caso. Argumentou que não cabia ao Poder Judiciário interferir nos critérios de conveniência e oportunidade das medidas adotadas no enfrentamento da epidemia. Virou pelo avesso o princípio da autonomia garantido pelo Supremo às unidades da Federação.

A relação de afinidade dos governos estaduais com os Tribunais de Justiça independe de cor partidária. No Ceará, o governador Camilo Santana, do PT, e o ex-prefeito Roberto Claudio, do PDT, também obtiveram, a exemplo do governador tucano de São Paulo, João Doria, 100% de sucesso em seus pedidos de suspensão de segurança de decisões judiciais relacionadas à covid.

Em 13 de abril do ano passado, por exemplo, um juiz de primeiro grau determinou que o governo do Ceará e a Prefeitura de Fortaleza comprovassem o fornecimento regular de equipamentos de proteção individual a enfermeiros da rede pública. A ação havia sido ajuizada pelo Conselho Regional de Enfermagem e acabou suspensa pela presidência do TJ-CE. Uma semana antes, a desembargadora já havia paralisado a decisão que determinava o fornecimento, pela Prefeitura de Fortaleza, de equipamentos de proteção individual a agentes comunitários de saúde em contato direto com a população.

A presidente do TJ acolheu tanto demandas de origem sindical quanto empresarial. Arbitrou até as pilhas de cadáveres. Como houve congestionamento nos sepultamentos, o Sindicato das Empresas Funerárias do Estado conseguiu uma decisão que mandava para o Instituto Médico Legal os corpos que não fosse possível enterrar no prazo previsto. O governo do Ceará derrubou a determinação.

Naquele Estado, apenas seis casos de suspensão de segurança, ao longo de 2020, trataram de covid, 20% daqueles registrados no Paraná. Dos 29 casos que obtiveram a graça do TJ, 17 tiveram como origem pedidos do governo do Estado, comandado por Ratinho Jr., filiado ao PSD e aliado do presidente Jair Bolsonaro. O governador teve sucesso em 16 deles. Já aqueles casos encampados pelo prefeito de Curitiba, Rafael Greca (DEM), foram integralmente acatados pelo TJ-PR.

O município de Curitiba conseguiu suspender três decisões judiciais emblemáticas: a que proibia o recolhimento, por agentes públicos, de bens de pessoas em situação de rua, a que determinava o afastamento de servidores da Guarda Civil Metropolitana com mais de 60 anos, pela vulnerabilidade à pandemia, e a que determinava o pagamento de aluguel social para pessoas sem moradia e com comorbidade no valor de um salário mínimo por mês.

Em dois casos relativos à abertura do comércio, movidos por prefeituras do interior, o Tribunal de Justiça do Paraná tomou decisões conflitantes, a exemplo do que já havia acontecido no TJ-SP em relação a municípios do interior do Estado. Em Cândido Rondon, o prefeito editou decreto para reabrir o comércio no início de abril, pico da pandemia em 2020. A primeira instância reverteu o decreto e a suspensão de segurança manteve a decisão sob o argumento de que a gravidade da situação estava atestada pela calamidade pública no país. Já em Cambará aconteceu o inverso. O decreto municipal de abertura foi mantido com o argumento de que o fechamento, além de lesivo à economia, não contraria normas federal e estadual.

As ações de suspensão obtidas pelo governo do Estado se concentraram em tributos e segurança. O TJ-PR concedeu sete pedidos para suspender pedidos de diferimento de impostos, sob o argumento do impacto sobre os cofres estaduais, além de sete pedidos para suspender decisões que determinavam indicação de agentes penitenciários para a chefia de cadeias nas delegacias estaduais, como requerido pelos delegados de polícia.

No Tocantins, todos os dez pedidos de suspensão dos casos relativos à covid em 2020 foram concedidos pelo Tribunal de Justiça. A maior parte deles trata de recursos do governo do Estado contra empresas que se valeram da pandemia para contestar a cobrança de ICMS. O Tribunal de Justiça deu ganho de causa ao governador Mauro Carlesse (DEM) sob o argumento de que a crise do Estado seria agravada pelo indeferimento do ICMS.

A situação fiscal do poder público fundamentou decisão do TJ-TO tanto contra empresas quanto contra usuários do transporte municipal. O ex-prefeito de Palmas Carlos Amastha (PSB) conseguiu que o TJ suspendesse a decisão judicial que determinara o aumento da frota de ônibus em circulação na cidade, especialmente nos horários de pico, e o fornecimento de álcool gel aos usuários.

Dos cinco Estados pesquisados, o único a não responder aos pedidos de acesso à informação do Justa foi a Bahia, em descumprimento às resoluções do Conselho Nacional de Justiça e à Lei de Acesso à Informação. Sem o mesmo rigor metodológico dos demais Estados, os pesquisadores identificaram que o TJ-BA, a exemplo dos demais pesquisados, também concedeu suspensões de segurança em prejuízo da segurança sanitária.

Dois se destacam: o da interdição parcial do Conjunto Penal de Juazeiro, que havia sido concedida por oferecer riscos aos apenados, e o da proibição da companhia de abastecimento de água do Estado, Embasa, de cortar o fornecimento de água a inadimplentes.

Nos Estados em que foi possível fazer uma varredura completa dos casos, o Justa observou o completo alinhamento dos presidentes dos TJs aos chefes dos Executivos estaduais. Esse processo tem como pano de fundo uma suplementação orçamentária que não passa pela Assembleia Legislativa. Todos os Estados têm permissão para suplementar o Orçamento do Judiciário. Em São Paulo, segundo Luciana Zaffalon, entre 2013 e 2018, essa suplementação foi, em média, de R$ 912 milhões por ano. Em 2019, último orçamento não contaminado pela pandemia, a suplementação chegou a R$ 1,17 bilhão, sem qualquer controle público da distribuição de recursos. Naquele ano, a folha de pagamento do Judiciário paulista, principal destino da suplementação, foi 37% maior do que a da Saúde. Uma mão lava a outra. Entre os Poderes, é claro, porque nem todos os impetrantes tiveram garantia de fornecimento de água na pandemia.

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