quinta-feira, 8 de julho de 2021

Merval Pereira - Briga de quadrilhas

O Globo

A nota do Ministério da Defesa e dos comandantes das Forças Armadas criticando o presidente da CPI, senador Omar Aziz, é uma distorção de suas palavras e atinge todo o Senado. Deveriam estar indignados, sim, com os militares que se envolveram em negócios polêmicos na Saúde.

Tudo leva a crer que estamos diante de uma briga de quadrilhas de atravessadores de contratos de vacinas no Ministério da Saúde. Com acesso até ao gabinete da Presidência da República, como revela uma das mensagens do celular do cabo da PM Luiz Paulo Dominguetti. A prisão do ex-servidor Roberto Dias pela CPI da Covid é apenas um percalço nessa disputa de poder.

O ex-secretário executivo do ministério, coronel Elcio Franco, está no centro das disputas pelas negociações, e Roberto Dias, cuja cabeça foi pedida por ele em outubro, mas Pazuello segurou por pressão do líder do governo, Ricardo Barros, sugere que a eventual responsabilidade final era de Franco.

Pelo menos uma culpa o coronel Elcio Franco tem: garantiu que investigou o processo de compra da Covaxin e não descobriu os erros esdrúxulos que a senadora Simone Tebet apontou num dos recibos (invoices) enviados pela empresa intermediária Davati.

Quando foi à entrevista para denunciar o deputado Luis Miranda como falsificador de documentos, nem ele nem o patético ministro Onyx Lorenzoni sabiam que havia três recibos. Apontaram como falso o único verdadeiro, que pedia antecipação de pagamento de US$ 45 milhões.


Os depoimentos de servidores da Saúde na CPI da Covid mostram como o ministério é dividido em feudos que não se falam, onde cada um cuida de seu negócio, e ninguém cuida do geral. Dias disse ontem na CPI que esse processo, que chamou de segregado, existe de propósito, para garantir sua higidez.

Há quem veja, no entanto, que, com esse esquema, a chance de haver corrupção é maior, porque ninguém se responsabiliza pelo que já foi feito ou pelo que será feito. Todos querem saber apenas de seu nicho. O exemplo de hoje é típico: anos atrás, Dias punira a empresa Global por não ter cumprido um contrato de US$ 21 milhões, mas foi incapaz de relatar esse fato quando recebeu a proposta de compra de vacinas da Precisa, cujo controle é exercido pela Global.

Essa separação de setores decisórios deu-lhe a desculpa de que não era sua tarefa analisar as empresas que oferecem vacinas ao governo brasileiro. No entanto, sua omissão serviu a seus próprios interesses, pois, como indicam as investigações e as mensagens encontradas no celular de Dominguetti, estava negociando esse suposto lote de 400 milhões de doses da AstraZeneca havia algum tempo.

Da mesma forma que, ao atacar o deputado Luis Miranda, o coronel Elcio Franco defendia não o governo, mas a si próprio, pois aceitou levar adiante uma negociação que claramente era fictícia. Como uma pessoa como o cabo Dominguetti, que não sabe se expressar, escreve português errado, está à frente de um negócio de R$ 1,5 bilhão? A troco de que ele tem acesso ao segundo na hierarquia do Ministério da Saúde?

Por essas e outras, não tivemos vacinas no tempo certo. As negociações sérias não encontraram caminhos no ministério, porque certamente, tudo leva a crer, está montado lá dentro um grupo que controla as compras de medicamentos. O mais grave é que, nesse grupo, estão muitos militares, de todas as patentes. Teoricamente, o general Pazuello, quando assumiu a Saúde, chamou-os para controlar a situação que já existia, e muitos foram cooptados pelos esquemas já estabelecidos.

A vacinação foi atrasada em meses por causa dessa estrutura montada dentro do ministério, onde parece que até hoje o deputado Ricardo Barros tem influência. Os depoimentos estão dando a visão de como a burocracia brasileira favorece a corrupção. Para espanto geral, existiu um processo de compra de 400 milhões de doses de vacina sem um fiscal do contrato. A servidora Regina Célia Oliveira foi nomeada para a função um mês depois que ele já era discutido.

Há grupos de atravessadores de qualquer negócio. O tenente-coronel Marcelo Blanco, outro ex-membro da direção do ministério que descobriu sua veia de negociador, saiu e criou uma empresa de venda de insumos médicos, negocia de vacina a criptomoeda; e o cabo da PM Dominguetti, da mesma forma, nas horas vagas faz negócios com o alto escalão da Saúde auxiliado por militares seus superiores.

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