domingo, 25 de julho de 2021

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

Volta ao passado

Revista Veja

Em nome de sua reeleição, Bolsonaro vem promovendo uma ilegal e desnecessária reaproximação entre Igreja e Estado

No fim do século XIX, preocupado em fazer o país progredir, o governo militar que derrubou a monarquia brasileira colocou entre suas prioridades a separação entre Igreja e Estado. Pouco mais de cinquenta dias após a proclamação da República, Deodoro da Fonseca assinou o decreto 119-A, que instituía a liberdade religiosa no Brasil e retirava do catolicismo o status de credo oficial. Ratificada pela Constituição de 1891, a alteração tornou-se um símbolo de modernidade, sendo confirmada em todas as outras Cartas desde então, não importando a orientação nem o regime de governo. Aliás, a atual Constituição (em seu artigo 19) é enfática: ela proíbe “a União, os estados e os municípios de estabelecerem cultos religiosos ou igrejas, subvencio­ná-los, embaraçar-lhes o funcionamento, ou manter com eles ou seus representantes uma relação de dependência ou aliança”. É importante ressaltar que o Brasil adotou a medida com bastante atraso, cerca de 100 anos depois dos Estados Unidos e da Revolução Francesa. Mas inegavelmente foi uma conquista relevante. A instituição do Estado laico, que não mistura seus interesses com o de organizações religiosas de qualquer natureza, tornou-se um dos marcos da civilização ocidental.

Infelizmente, um enorme passo atrás vem sendo dado no Brasil da atualidade. Exemplo gritante desse retrocesso foi a recente viagem do vice-presidente da República, Hamilton Mourão, para Angola. Um dos objetivos do périplo, de acordo com Mourão, foi uma negociação com o governo local em favor dos interesses da Igreja Universal do Reino de Deus, seita evangélica que enfrenta problemas no país africano. Numa clara violação à Constituição, o pedido de intermediação foi feito pelo próprio presidente Jair Bolsonaro, cuja maior intenção é agradar a um eleitorado que desempenha papel relevante em sua base de apoio. Recentemente, aliás, o chefe do Executivo fez outro aceno a essa parcela da população com a indicação de André Mendonça a ministro do STF. Tal escolha não foi realizada pelo seu notório saber jurídico ou reputação ilibada, qualidades que Mendonça, de fato, possui. Mas, sim, por ser “terrivelmente evangélico”, como apregoou antecipadamente o presidente.

Governos podem, eventualmente, ir ao estrangeiro na defesa de interesses de empresas nacionais. Os Estados Unidos, por exemplo, são bastante atuantes nesse segmento, ajudando a diplomacia estratégica de suas companhias. Esse comportamento, porém, só faz sentido quando o próprio país acaba beneficiado por tais negociações — seja pela manutenção de empregos, seja pelo aumento das exportações. No caso da Universal, o interesse, evidentemente, é outro. A igreja, que já recebe diversas isenções tributárias, não vai pagar impostos sobre a receita que vier a acumular em Angola. O objetivo de Bolsonaro em ajudar os bispos é exclusivamente eleitoral. Como se sabe, trata-se de um eleitorado numeroso no Brasil e parte dele segue bovinamente a orientação de seus pastores. Ou seja: em nome de sua reeleição, obsessão desde que entrou no Palácio do Planalto, o presidente vem promovendo uma ilegal e desnecessária reaproximação entre Igreja e Estado. Uma perigosa volta ao passado. Mais uma.

Publicado em VEJA de 28 de julho de 2021, edição nº 2748

Bolsonaro joga as últimas cartas

Revista IstoÉ

Nessa reta final de governo, o capitão resolveu tentar de tudo para se salvar do cadafalso. Movimenta-se agora em torno de uma nova reforma ministerial que tem por objetivo, basicamente, atender ao “sobrepreço” de pedidos do Centrão para manter o seu apoio, garantindo assim a redentora base de aliados arrivistas na sonhada campanha à reeleição. Caiu no colo do capo da camarilha política, Ciro Nogueira — por exigência inegociável do bloco fisiológico, diga-se de passagem —, a cobiçada pasta da Casa Civil, que em outros tempos e enredo abrigou o inefável José Dirceu, espécie de eminência parda petista, de onde mandou e desmandou na tessitura do Mensalão. Nogueira entra na vaga deixada pelo general Luiz Eduardo Ramos, dispensado dos préstimos de ajudante de ordem do psicopata.

Bolsonaro não mede esforços para tratar com rapapés e mesuras os verdadeiros donos do seu destino. Ele está absolutamente refém do Centrão. E sabe disso. Quem diria! Para um mandatário que disputou a eleição prometendo jamais se lambuzar na manteiga rançosa do compadrio, do toma lá, dá cá de postos e verbas, foi bem além. Entregou as cartas uma a uma e, praticamente, a cadeira. O presidente hoje se equilibra no cargo por benevolência alheia. Com mais de 130 pedidos de impeachment nas costas — a maior parte repleta de crimes de responsabilidade facilmente comprováveis —, o Messias “mito”, que costuma bravatear valentia alegando que “apenas Deus” lhe tira daquele lugar, parece sempre prestar homenagem aos fiadores de seu poder. As “divindades” das quais depende atendem pelos nomes de Arthur Lira, presidente da Câmara dos Deputados, e Augusto Aras, o PGR que lhe presta vassalagem e deve ser reconduzido ao cargo para assegurar, em contrapartida, a tal proteção legal de divina providência. Frente aos avanços do Congresso, Bolsonaro encena indignação quando, na verdade, compartilha dos mesmos anseios e planos dos antigos pares. Adorou (embora tenha feito o jogo combinado de mostrar discordância) a aprovação imoral do reajuste do fundão eleitoreiro até os estratosféricos R$ 5,7 bilhões. Era o bode na sala. Agora, após tratativas com seus tutores da bancada de Nogueira, vai vetar o valor e ajustar, um pouco para baixo, contendo, ainda assim, uma remarcação generosa e sem precedentes do bolo, capaz de engordar, e muito, o dinheiro do caixa financiador dos seus planos de vitória nas urnas. É o método Bolsonaro de assaltar a verdade e a boa-fé dos eleitores. Posa de paladino. Ventila um aumento populista e indevido do programa assistencial do Bolsa Família e depois sai de redentor de justas causas. Que fique claro a todos: quem encaminhou, articulou e arranjou votos para a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), com o tal fundão de quase R$ 6 bilhões, foi o próprio governo e, agora, Bolsonaro se faz de desentendido e procura encontrar outros responsáveis pela lambança. O jogo de cena é uma rotina ali e nos discursos do mandatário. Vale lembrar: o fundão eleitoral passou de R$ 1,7 bilhão em 2018 para R$ 2,03 bilhões em 2019 até alcançar os inacreditáveis R$ 5,7 bilhões de hoje. Vem aumentando consecutivamente desde que o capitão tomou posse e, buscando terceirizar responsabilidades, na base de encontrar outros culpados e motivos paralelos, ele desce até o nível das desculpas risíveis. O presidente apontou que seus aliados, afoitos apoiadores do reajuste, ao votarem a favor em plenária não leram bem o que estavam aprovando. Dá para engolir? Todos os bolsonaristas do PSL, os filhos inclusive — Flávio Bolsonaro, no Senado, e Eduardo Bolsonaro, na Câmara —, votaram unidos pelo fundão. O elenco inteiro enganado ingenuamente? Dá até pena dos coitadinhos. Uma base completa endossando de forma majoritária o projeto, nas duas Casas, e ninguém se atentou para o que estava lá contido. Também pudera! A desculpa vai no mesmo padrão do usado pelo Ministério da Saúde, que alegou não ter gente com inglês suficiente para entender as cláusulas de um contrato e fechar com a rapidez necessária o acordo da compra de vacinas da Pfizer. Ao que tudo indica, os representantes do Planalto não sabem ler nem inglês, para acertar importantes acordos, nem em português, para evitar a barbeiragem de gastos indevidos. Talvez fosse melhor cada um deles voltar para os bancos da escola antes de tomarem a frente das decisões de um País. É preciso dar um basta na desfaçatez. O fundão foi uma obra coletiva do time bolsonarista, e mesmo dos opositores, em conluio, para levar adiante a boiada eleitoral. O mandatário esforça-se para criar uma narrativa tortuosa aqui e alhures. Da mesma maneira, recorre à lenda de fraudes nos votos, algo sem o menor cabimento ou registro passível de discussão, em 25 anos de funcionamento das urnas eletrônicas. É mais uma falácia para capturar a atenção e tumultuar o processo. No início falava que a eleição na qual ele próprio saiu vitorioso foi fraudada. Desistiu da alegação. Passou a argumentar que Aécio Neves foi o verdadeiro escolhido em 2014, apesar de o próprio tucano ter reconhecido a vitória da opositora Dilma Rousseff e não buscar contestar o resultado. É de dar pena assistir a um mandatário submetido a tamanho grau de insensatez e papel ridículo. Pena do Brasil, por ter um chefe de governo dessa estirpe. Não dele.

‘Eu sou do Centrão’

O Estado de S. Paulo

Ao anunciar o contubérnio com o mesmo Centrão que ele tanto demonizou, o presidente Jair Bolsonaro reconheceu: “As coisas mudam”. E como.

Não faz muito tempo, mas parece uma eternidade. Na convenção em que o PSL confirmou a candidatura de Jair Bolsonaro à Presidência, em 22 de julho de 2018, o general da reserva Augusto Heleno, hoje ministro e um dos principais conselheiros do presidente, trocou a palavra “ladrão” por “Centrão” numa música que cantarolou, para delírio dos bolsonaristas. E, para que não restasse dúvida sobre sua escrachada insinuação, Heleno emendou: “O Centrão é a materialização da impunidade”.

Exatos três anos depois, Bolsonaro informou que pretende dar a Casa Civil, que comanda o funcionamento do governo, para um dos principais líderes do Centrão, o senador Ciro Nogueira (PP-PI). Não se tem notícia de que o ministro Augusto Heleno tenha feito algum comentário, debochado ou sério, a respeito desse anúncio.

Mas o vice-presidente Hamilton Mourão fez. Disse, com razão, que alguns eleitores de Bolsonaro “podem se sentir um pouco confundidos” depois que viram o presidente, o mesmo que elegeram com a retumbante promessa de enterrar o toma lá dá cá, franquear o coração do governo ao grupo político conhecido exatamente por mercadejar seus votos.

“É dando que se recebe”, parte da Oração de São Francisco, tornou-se em 1988 a máxima do Centrão, na desavergonhada tirada de um de seus fundadores, o deputado Roberto Cardoso Alves (1927-1996), o Robertão. Na época, o Centrão, que ainda engatinhava, vendia seus serviços ao presidente José Sarney, que precisava de votos para emplacar o mandato presidencial de cinco anos. Sarney conseguiu o que queria, ao preço de cargos em todos os escalões para apadrinhados de parlamentares de baixíssima extração. O próprio Robertão virou ministro. “Cargo dá voto para diabo”, comentaria mais tarde o patriarca do Centrão, com sua cândida sinceridade.

É esse o espírito da coisa. Bolsonaro e os donatários de seu governo certamente vão tentar dourar a pílula, alardeando que o arranjo permitirá aprovar com mais facilidade os projetos de interesse do País, mas a verdade é que o único projeto que interessa ao presidente é manter-se no cargo, enquanto o único projeto que interessa ao Centrão é expandir sua capacidade de parasitar o Estado. Nasceram um para o outro.

“Eu sou do Centrão. Eu nasci de lá”, disse Bolsonaro, confessando o que somente os eleitores incautos não sabiam. No início do mandato, o presidente até parecia interessado em cumprir a promessa de que escolheria para seu Ministério apenas os mais capacitados, sem trocar cargos por apoio político. No entanto, desprovido de qualquer qualificação para presidir o País e vocacionado somente para a baderna, Bolsonaro rapidamente perdeu o capital político amealhado na eleição e se tornou refém dos políticos que farejam oportunidades em governos fracos.

Na mesma ocasião em que se declarou um rebento do Centrão, Bolsonaro argumentou que “não tem como governar” sem aquele bloco político. Disso sabem bem todos os antecessores de Bolsonaro, que tiveram de negociar o apoio do Centrão em variadas escalas – e muitas vezes por meio de corrupção deslavada, como no mensalão e no petrolão, durante o mandarinato lulopetista. Mas nem mesmo nos governos do PT o Centrão havia conseguido fincar sua bandeira na poderosa Casa Civil, como deve acontecer agora. Portanto, o gesto de Bolsonaro, embora ele diga que visa à governabilidade, é, na verdade, uma capitulação.

Quando ainda era candidato, em 2017, Bolsonaro prometeu governar “sem o toma lá dá cá” e, caso isso não fosse possível, então “eu tô fora”. Já como presidente, em março de 2019, declarou que a corrupção nos governos anteriores foi provocada pelos “acordos políticos em nome da governabilidade”. Em abril de 2020, anunciou, aos berros: “Não queremos negociar nada. Acabou a época da patifaria, agora é o povo no poder”.

Bastou um ano para que Bolsonaro afinal se rendesse às evidências de que não pode mais contar com o “povo” para sobreviver no cargo. Assim, ao anunciar o contubérnio com o mesmo Centrão que ele tanto demonizou, o presidente reconheceu: “As coisas mudam”. E como.

Cicatrizes da crise

O Estado de S. Paulo

Efeitos da pandemia sobre o emprego são amplos e requerem respostas mais sérias

Por muitos anos o trabalhador brasileiro vai sofrer os efeitos da crise gerada pela pandemia, alertam economistas do Banco Mundial. Os impactos sobre emprego e salários poderão durar nove anos a partir de seu início, segundo o relatório “Emprego em Crise: Trajetória para Melhores Empregos na América Latina Pós-covid-19”. Desocupação, informalidade maior, maior pobreza e menores possibilidades para os jovens serão efeitos duradouros, se nada for feito para mudar as condições do mercado e valorizar o capital humano, advertem os autores do estudo. Feito o alerta, o secretário especial de Previdência e Trabalho, Bruno Bianco, tenta dar uma resposta positiva. Segundo ele, o governo já está empenhado em garantir a inclusão dos informais e em proteger o emprego.

Os fatos conhecidos até agora são muito menos positivos que as palavras do secretário. Na maior parte dos países desenvolvidos e emergentes, empregos foram criados e a desocupação diminuiu depois da pior fase de 2020. No Brasil, o desemprego seguiu caminho inverso, aumentando na passagem de ano e atingindo, no primeiro trimestre de 2021, 14,7% da força de trabalho. O quadro se manteve no trimestre móvel terminado em abril. Essa taxa era mais que o dobro da média (6,6%) registrada, no período, nos países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). A mesma diferença havia sido observada no começo da pandemia.

A duração das ações anticrise também distancia as políticas seguidas na maior parte dos países da OCDE e no Brasil. Como se a crise tivesse acabado, ou estivesse quase terminando, o governo brasileiro relaxou e em seguida abandonou a proteção de empregos e a ajuda emergencial às famílias em pior situação. O aumento do desemprego e o avanço da miséria, nos primeiros meses de 2021, resultaram de ações e omissões de autoridades federais. A piora das condições econômicas esteve associada, em grande parte, a erros do poder central diante da crise de saúde.

A vacinação começou com atraso e avançou lentamente durante algum tempo. As falhas do Ministério da Saúde e as irresponsabilidades da Presidência da República têm sido claramente expostas graças ao trabalho da CPI da Covid. Não há como separar, no balanço geral, os erros da política sanitária, desde o ano passado, o prolongamento da crise do emprego e a recuperação ainda incompleta, oscilante e muito desigual dos vários segmentos da indústria, do varejo e dos serviços.

No Brasil, como em qualquer outro país desenvolvido ou emergente, recessões tendem a afetar mais duramente os trabalhadores menos qualificados e os jovens. No caso brasileiro, essa diferença se manifesta de forma ainda mais dolorosa, por causa das enormes desigualdades, da escassa formação da maior parte da mão de obra e da ampla informalidade.

Algumas autoridades agora exibem preocupação com esses problemas. O governo decidiu, com atraso e com muita parcimônia, restabelecer a ajuda emergencial e repensar medidas para formação profissional e inclusão de jovens no mercado de trabalho. Mas, talvez por uma inclinação difícil de contrabalançar, as propostas parecem mais voltadas para o barateamento da mão de obra do que para a multiplicação de oportunidades e – muito importante – para a modernização da economia brasileira.

É significativo, mas nada surpreendente, o distanciamento entre os Ministérios da Economia e da Educação no tratamento dessas questões. O Brasil tem respeitáveis especialistas em política educacional e pessoas capazes de articular estratégias de educação e de desenvolvimento econômico e social. Mas o Ministério da Educação, a partir de 2019, foi sempre orientado para agir como um propagador do universo intelectual, político e moral do presidente Jair Bolsonaro e de sua família. Os ministros da Educação têm mostrado qualidades semelhantes às do general Pazuello no Ministério da Saúde, mas as piores consequências de seus atos são menos visíveis e demoram muito mais para aparecer. Mas acabam aparecendo, e são muito custosas.

A inédita decisão da ANS

O Estado de S. Paulo

Redução das tarifas de planos individuais é positiva, mas deve levar à judicialização

Por unanimidade, a diretoria da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) aprovou uma redução de 8,19% no valor das mensalidades dos planos de saúde individuais. É a primeira vez que a ANS aprova um reajuste negativo em seus mais de 20 anos de história.

A decisão da agência reguladora está diretamente ligada à pandemia de covid-19. Ao longo de todo o ano passado, observou-se importante redução na busca por procedimentos médico-hospitalares não urgentes pelos clientes individuais das operadoras de plano de saúde, o que levou a uma queda de cerca de 20% das despesas destas empresas. Como a tarifa dos planos individuais é calculada pela variação de custos médico-hospitalares e pela variação de despesas não assistenciais em relação ao ano anterior, a redução aprovada pela ANS no dia 8/7 se justifica.

“Ao longo de 2020, os gastos do setor com atendimento assistencial, oriundos de procedimentos como consultas, exames e internações, sofreram quedas significativas comparadas a anos anteriores, tendo em vista que o distanciamento social foi uma das medidas protetoras (recomendadas pelas autoridades sanitárias). Muitos beneficiários deixaram de realizar atendimentos não urgentes”, afirmou Rogério Scarabel, diretor-presidente substituto da ANS.

Convém deixar bastante claro que a decisão da ANS diz respeito exclusivamente aos contratos de planos de saúde individuais, que correspondem a apenas 18% do total de contratos das operadoras de saúde. Isto tem importância porque as tarifas dos planos de saúde individuais, minoritários, são diretamente reguladas pela ANS, de acordo com os critérios expostos acima. Já os contratos coletivos, embora sejam igualmente regulados pela agência sob outros aspectos, têm tarifas definidas a partir da livre negociação entre empresas contratantes e contratadas.

A inédita decisão da ANS é muito positiva para os clientes pessoas físicas ou microempreendedores individuais das operadoras de plano de saúde. Uma redução de 8,19% no valor das mensalidades dos planos – que são muito mais caras na modalidade de contratação individual – é um alívio e tanto para o orçamento das famílias. Em sua grande maioria, as contas dos lares brasileiros foram severamente abaladas pela alta da inflação, pela queda da renda ou mesmo pelo desemprego durante estes difíceis 16 meses de pandemia. Por outro lado, a decisão suscita pressão das empresas e associações do setor por um tratamento mais equânime por parte da ANS.

Enquanto os planos individuais tiveram reajuste negativo aprovado pela agência reguladora, os planos coletivos serão majorados entre 15% e 20%. Marcos Patullo, advogado especialista na área de saúde, ponderou ao Estado que, “se a redução de custos (para as operadoras) foi geral, por conta da ausência dos atendimentos eletivos, por que, para os (planos) coletivos o reajuste pode ser tão alto?”.

A ponderação é razoável. Afinal, embora contratos possam ser celebrados entre pessoas jurídicas, quem busca atendimento médico-hospitalar, por óbvio, são pessoas físicas. Ao fim e ao cabo, todas estão submetidas aos receios e restrições trazidos por esta pandemia. Logo, é lícito inferir que, em boa medida, a baixa procura por atendimentos médicos não urgentes ao longo de 2020 não teve relação direta com a natureza do plano de saúde contratado pelos usuários, mas sim com o receio destes em se expor ao risco da contaminação pelo coronavírus em situações nas quais esta exposição não era mandatória.

A recente decisão da ANS deve aumentar o apelo de órgãos de defesa do consumidor e de associações representativas do setor para que a agência também passe a regular as tarifas para os planos de saúde coletivos. “Fica nítido que deixar o mercado sem regulação (da ANS) não produz reajustes mais baixos”, disse Ana Carolina Navarrete, coordenadora do Programa de Saúde do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec).

Positiva, a redução das tarifas para clientes individuais aliviará o orçamento de parcela muito pequena dos usuários de plano de saúde. Não será surpresa se a maioria, usuários dos planos coletivos, acorrer ao Poder Judiciário.

'Eu sou do centrão'

Folha de S. Paulo

Embora tardia e efêmera, rendição de Bolsonaro à realidade tem valor pedagógico

Em meio ao alarido provocado pela reforma do ministério e por novas investidas contra o processo eleitoral, Jair Bolsonaro exibiu na semana que passou um breve momento de franqueza e sensatez.

“Eu sou do centrão”, disse o presidente à rádio Banda B, de Curitiba, ao responder sobre o bloco partidário que terá presença ampliada em seu governo. “Eu nasci de lá.”

E expôs as razões para a aliança com o grupo parlamentar: “São pouco mais de 200 pessoas. Se você afastar esses partidos de centro, sobram 300 votos para mim. Se você afasta cento e poucos parlamentares de esquerda, PT, PC do B e PSOL, eu vou governar com um quinto da Câmara?”, questionou.

Seria melhor, decerto, que tais considerações tivessem sido oferecidas aos eleitores na campanha de 2018, quando Bolsonaro chamava o centrão de “nata do que há de pior no Brasil”. Ainda assim, a rendição tardia —e, provavelmente, efêmera— à realidade não deixa de ter seu valor pedagógico.

Antes de se apresentar como o candidato a enterrar a “velha política”, o hoje presidente fez longa e medíocre carreira de deputado ciscando entre as múltiplas siglas de escasso conteúdo programático e especializadas em negociar seu apoio ao governo de turno.

Depois de vencer a disputa presidencial a bordo do PSL e romper com a legenda, Bolsonaro fracassou em criar uma nova agremiação sob seu comando. Agora, flerta com o PP, uma das forças mais vistosas do bloco fisiológico, para concorrer a um novo mandato.

A necessidade de comprar apoios com a distribuição de cargos e verbas é característica das mais conhecidas do presidencialismo brasileiro. Trata-se de distorção que não pode ser enfrentada à base de bravatas, mas com reformas que induzam à queda do número de partidos e ao barateamento das coalizões governistas.

Ademais, as alianças tendem a ser menos custosas e mais eficientes quando estabelecidas desde o início do governo e em torno de um programa —exatamente o contrário do que fez Bolsonaro.

O presidente só tratou de buscar sustentação mais sólida em seu segundo ano de mandato, após sucessivas derrotas no Legislativo e sob ameaça de um processo de impeachment por seus arreganhos golpistas. Nessas circunstâncias, o preço a pagar pelos tais 200 votos do centrão se eleva sobremaneira.

Além de postos em ministérios, recursos do Orçamento e escândalos em potencial, a conta inclui, felizmente, o esvaziamento da agenda ideológica bolsonarista. Em troca, o mandatário recebe condições mínimas para permanecer no cargo e tocar algo de sua pauta econômica. Será conveniente explicar isso também aos eleitores em 2022.

Aventura na África

Folha de S. Paulo

Mourão protagoniza vexame ao tentar defender Igreja Universal em Angola

No clássico “Uma Aventura na África” (1951), Humphrey Bogart é um cínico descrente que acaba por ajudar missionários protestantes a escapar dos alemães que tomaram o leste africano na Primeira Guerra Mundial. Acaba tendo sucesso.

O vice-presidente Hamilton Mourão não é nenhum Bogart ou seu personagem Charlie, certamente, mas involuntariamente se envolveu num enredo pervertido sobre o tema em pleno ano de 2021.

Na semana passada, o vice foi a Angola representando o Brasil em uma reunião da fantasmagórica Comunidade de Países de Língua Portuguesa, ente que reúne países lusófonos cujos encontros são relegados ao segundo plano diplomático sempre que possível.

Mas a missão real de Mourão, um general da reserva, era outra. Como revelou o jornal O Estado de S. Paulo, o vice encontrou-se numa agenda bilateral com o presidente angolano, João Manuel Lourenço.

Em vez de discutir qualquer coisa útil que fosse ao país, o general cumpria um pedido do chefe, Jair Bolsonaro, e interveio em favor da Igreja Universal do Reino de Deus.

Como se sabe, a liderança da denominação e seu braço de mídia, a Record, apoiam Bolsonaro. Em Angola, o grupo está em apuros.

Há dois anos, a igreja passou a ser acusada de crimes financeiros por parte de alguns de seus integrantes no país africano. Ato contínuo, tomou-se o controle de templos, e a Record acabou expulsa.

As agruras judiciais seguintes, com deportações de missionários brasileiros e processos, são da jurisdição do Itamaraty, não da Vice-Presidência da República.

Cabe ao Brasil dar apoio no caso de os acusados não terem suporte legal ou serem maltratados. Não parece ser bem a situação atual.

Mourão pediu tratamento adequado aos envolvidos, mas foi além: requereu a Lourenço que recebesse uma delegação de parlamentares evangélicos para discutir a situação da Universal.

O presidente angolano disse não, amparado no fato de que, como chefe do Executivo, não caberia a ele negociar com membros do Legislativo de outro país.

Mourão falou candidamente sobre o assunto, como se querendo explicitar que sua inglória aventura na África era coisa do chefe, que encontra nos segmentos evangélicos uma de suas últimas trincheiras de popularidade não tão erodida.

Seja como for, integrou a coleção de vexames a que o país vem sendo submetido sob Bolsonaro.

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