quarta-feira, 14 de julho de 2021

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

EDITORIAIS

Reação ao golpismo

Folha de S. Paulo

Movimento de Fux reduz a crise, mas Bolsonaro deve responder às instituições

Jair Bolsonaro, que recebe do erário R$ 30.934,70 mensais para desempenhar a tarefa de presidir o país e mais R$ 10.703,78 como capitão reformado do Exército, não se considera um servidor público.

Foi esse o argumento que lhe ocorreu para sustentar que não deveria ser acusado de prevaricação —crime pelo qual será alvo de um inquérito da Polícia Federal, sob suspeita de ter se omitido após tomar ciência de indícios de corrupção no Ministério da Saúde.

Bolsonaro, é fato, não obedece aos limites e às responsabilidades do cargo, nem diferencia os interesses do país de seus próprios, de seus familiares e agregados. Prefere servir-se do Estado a servi-lo.

Por desconhecer a noção de impessoalidade da função pública, o mandatário foi chamado para uma conversa conciliatória pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, na segunda-feira (12). O magistrado promoveu o encontro, relata-se, para que fossem debatidos os limites impostos pela Constituição ao exercício do poder.

Uma manobra precária, sem dúvida, mas talvez o recurso possível para evitar a piora da crise provocada pelos sucessivos ataques de Bolsonaro à Justiça Eleitoral, acompanhados de acusações farsescas de fraudes em pleitos passados.

À saída do encontro viu-se um Bolsonaro menos truculento, que aceitou responder às perguntas de jornalistas —embora tenha ameaçado encerrar a entrevista ante um questionamento incômodo. Foi nessa ocasião que elucubrou sobre não ser servidor público, negou a prevaricação e chamou os presentes a rezar um pai-nosso.

Talvez pareça reconfortante vê-lo a exibir pouco mais que a habitual confusão de ideias e um despreparo para o posto que chega ao folclórico. Inexiste motivo, no entanto, para que se baixe a guarda.

O que o presidente da República faz é gravíssimo. Mente de forma descarada à nação para pôr em dúvida a legitimidade das eleições e ameaça não aceitar o resultado das urnas em 2022. Trata-se de afronta à lei diante da qual as instituições não podem ficar inertes.

É mais um crime de responsabilidade em potencial a exigir a atenção do presidente da Câmara dos Deputados, responsável por dar andamento a processos de impeachment —sem desconhecer aqui os muitos percalços políticos envolvidos em tal procedimento.

Ao procurador-geral da República, Augusto Aras, não competem considerações dessa natureza, muito menos as relativas a afinidades com o presidente. É seu dever investigar o chefe de governo por abuso de poder, como aliás já cobram integrantes do Conselho Superior do Ministério Público Federal.

Que Bolsonaro responda formalmente por sua lorota golpista, bem como pela negligência na pandemia, de extensão ainda ignorada.

Apagão da ditadura

Folha de S. Paulo

Ante protestos populares inauditos, Cuba recorre à repressão e corte da internet

Havia muito não se registrava em Cuba algo parecido. No domingo (11), as ruas de Havana e de diversas outras localidades da ilha foram tomadas por gritos de “liberdade” e “abaixo a ditadura”, nas maiores manifestações populares desde o começo dos anos 1990, quando o fim da União Soviética levou a economia local à bancarrota.

O motivo da raiva dos cubanos também é parecido com o de décadas atrás. Protestam sobretudo contra as condições de vida precárias e a dramática escassez de produtos, ambas agravadas neste período de pandemia.

Iniciadas no pequeno município de San Antonio de los Baños, onde centenas de pessoas saíram exigindo vacinas para a Covid-19 e protestando contra os longos apagões de eletricidade, as manifestações transmutaram-se em demandas por liberdade e ataques ao regime.

Enquanto os atos se espalhavam pelo país, o presidente Miguel Díaz-Canel apressou-se a ir à televisão culpar os inimigos de sempre: o embargo econômico e os Estados Unidos, que estariam fomentando a revolta popular.

Se é verdade que o anacrônico bloqueio econômico e financeiro estabelecido na Guerra Fria contribui para as dificuldades de Cuba, também é fato que, desde então, tem servido às autoridades da ilha para justificar todas as desgraças produzidas por décadas de fracassado planejamento estatal.

Historicamente frágil, a economia cubana soçobrou com o advento da pandemia. O Produto Interno Bruto do país encolheu impressionantes 11% no ano passado, muito em razão do colapso do setor de turismo, uma das principais fontes de renda da população.

Minguaram as remessas de dólares enviadas por cubanos radicados no exterior para suas famílias. Escassearam alimentos e remédios.

Não bastasse a calamidade econômica, a população sofre com o recrudescimento da pandemia. O país registrou nos últimos dias recordes de casos e mortes.

Previsivelmente, a ditadura agiu para sufocar a multidão dissonante. Díaz-Canel convocou “os revolucionários” do país a combater os manifestantes —muitos dos quais foram presos— e promoveu um grotesco corte da internet.

Também na incapacidade de aprender do regime, bem como de seus apoiadores na esquerda brasileira e mundial, os eventos de agora se parecem com os do passado.

Governo fez da reforma tributária uma gincana

O Globo

Depois da saraivada de críticas ao projeto do Ministério da Economia, o deputado Celso Sabino (PSDB-PA) apresentou ontem seu substitutivo para a segunda fase da reforma tributária fatiada que o governo tem tentado pôr em marcha no Congresso. No mesmo dia, o deputado Luiz Carlos Motta (PL-SP), relator da primeira fase (a proposta tímida apresentada um ano atrás), informou que ela só deverá ir a votação depois do recesso parlamentar. A esta altura, é absolutamente imprevisível o que o Congresso fará e como ficarão os impostos que cidadãos e empresas passarão a pagar.

O objetivo declarado é simplificar o sistema de tributação mais complexo e custoso do mundo, tornar os impostos mais justos sem aumentar a carga tributária. Ao entregar seu substitutivo, que trata do Imposto de Renda, Sabino falou num corte de R$ 30 bilhões na carga sobre os contribuintes. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), aventava R$ 50 bilhões. Até agora, porém, tudo o que as propostas trouxeram foi uma enorme confusão.

Em vez de apresentar estudos técnicos transparentes, com as alternativas de taxação possíveis, seus impactos na vida dos contribuintes e no caixa do governo, preferiu-se uma solução opaca e cheia de defeitos, como reconheceu o próprio ministro Paulo Guedes. Dois pontos em particular despertaram controvérsia: 1) para as pessoas físicas, as mudanças nos critérios para uso da declaração simplificada; 2) para as jurídicas, a recriação do imposto sobre dividendos distribuídos. Apenas nesta semana a Receita Federal foi capaz de apresentar as estimativas de impacto de algumas mudanças sugeridas.

A primeira medida, segundo a Receita, atinge em cheio 7,5 milhões de contribuintes de classe média, com renda anual entre R$ 40 mil e R$ 84 mil. Para o Fisco, essa faixa representará arrecadação adicional de R$ 32 bilhões até 2024. O aumento nas isenções para 5,2 milhões em faixas inferiores consumirá essa arrecadação, resultando num déficit de R$ 43,4 bilhões ao longo do período. Aprovada a mudança, portanto, não apenas os mais ricos arcarão com o alívio sobre os mais pobres, mas também a faixa intermediária.

A segunda medida é ainda mais controversa. O relatório de Sabino reduz a alíquota de imposto sobre pessoas jurídicas (IRPJ) a um patamar ainda insuficiente para compensar, aos olhos do empreendedor, os novos tributos sobre dividendos e juros sobre capital próprio. Em vez de tornar mais racionais os vários regimes de tributação do faturamento — lucro real, presumido, arbitrado ou Simples —, o governo entrou numa gincana de alíquotas, para tentar reconquistar credibilidade.

A proposta suscitou críticas até entre empresários bolsonaristas. Mesmo com o corte de 25% para 12,5% no IRPJ (ante 20% na versão anterior), a carga sobre acionistas ficará superior à atual. Ainda faltam informações para avaliar o impacto nos investimentos, mas está longe de evidente que será positivo.

Uma reforma tributária para valer exigiria eviscerar as entranhas das isenções de mais de 4% do PIB, ou um quinto da arrecadação. O governo até tentou fazer isso, acabando com benefícios a alguns setores. Mas não atingiu os principais vespeiros, como a Zona Franca, a “pejotização” de contratos de trabalho ou as regalias ao setor automotivo. Travar essa discussão seria essencial para corrigir nossas distorções tributárias. Mas parece que Lira e o Executivo farão de tudo para evitá-la.

Decisão do CFM sobre reprodução assistida tem propósito ideológico

O Globo

Mais uma vez, o Conselho Federal de Medicina (CFM) se afasta da ciência e se aproxima da ideologia. Não bastasse a posição descabida a favor do “tratamento precoce” com drogas ineficazes contra a Covid-19, agora a instituição avança com argumentos estapafúrdios sobre a área da reprodução assistida. Uma resolução em vigor desde 15 de junho restringe a oito o número de embriões que podem ser gerados em laboratório nesse tipo de tratamento — antes não havia limite. É um obstáculo que inviabiliza o procedimento em boa parte dos casos. O CFM impôs também a proibição de que embriões sejam descartados sem decisão judicial, encarecendo os tratamentos de fertilidade.

A decisão torta provocou protestos, tanto de pacientes, cujos direitos foram cerceados, quanto de especialistas, que criticam a falta de base científica. A presidente da Sociedade Brasileira de Reprodução Assistida, Hitomi Nakagawa, diz que o ideal é começar a trabalhar com ao menos 15 óvulos, algo inviável com o limite imposto pelo CFM. Fica também quase nula a chance de uma mulher engravidar aos 40 anos. Nakagawa alerta ainda sobre o risco de brigas na Justiça e os custos atrelados.

Em reportagem do GLOBO, o CFM alega que a resolução tem o objetivo de atender ao Código de Ética Médica. Afirma que “avanços tecnológicos e melhorias das taxas de gravidez possibilitaram a redução do número de embriões transferidos, com redução do risco de gestação múltipla”. Balela. A intenção é atender a desígnios ideológicos, que aproximam ainda mais o conselho do governo Bolsonaro. Prova disso é que o limite de embriões e a proibição de descarte sem autorização judicial não constavam da proposta elaborada pela câmara técnica do CFM. “Para essas pessoas, o descarte é como se fosse um aborto”, diz Rui Ferriani, presidente da Comissão de Reprodução Humana da Federação das Associações de Ginecologia e Obstetrícia.

Não é comportamento diferente do adotado na pandemia, quando o CFM trocou princípios da ciência pelos de um governo obscurantista, respaldando a sandice do “tratamento precoce”. Todas as sociedades profissionais do mundo contraindicam o uso da cloroquina na prevenção ou no tratamento da Covid-19, afirmam a microbiologista Natalia Pasternak e o infectologista Mauro Schechter no GLOBO. O mesmo se aplica a drogas como azitromicina, vitamina D, zinco e o restante do “kit Covid”.

Os argumentos em prol do “tratamento precoce” são ridículos. Dizer que não há consenso sobre a ineficácia dessas drogas revela um grau de ignorância inadmissível numa entidade médica. Alegar que os médicos têm autonomia para prescrever tratamentos é falácia sem cabimento. Isso não lhes dá licença para agir como curandeiros. Está cada dia mais claro que a agenda do CFM não é a saúde da população, mas o alinhamento com o Planalto. O conselho deveria saber que os governos, tanto quanto as lideranças dessas entidades, passam. Mas as decisões ficam sujeitas ao julgamento da história.

Terrivelmente complicado

O Estado de S. Paulo

Numa República, ninguém – seja ministro do STF, pastor ou presidente – tem competência para oferecer rota de impunidade

No mesmo dia em que Jair Bolsonaro indicou um pastor evangélico para o Supremo Tribunal Federal (STF) – várias vezes, o presidente Bolsonaro manifestou que a escolha de André Mendonça se deve à prática da religião protestante –, a Polícia Federal abriu inquérito para investigar o chefe do Executivo federal por crime de prevaricação. É no mínimo contraditório o presidente Bolsonaro proclamar a defesa de valores cristãos na esfera pública enquanto continua difundindo inverdades, desrespeitando outros Poderes e, principalmente, esquivando-se de oferecer explicações convincentes sobre sua conduta.

“Eu entendo que a prevaricação se aplica a servidor público, não se aplicaria a mim”, disse o presidente da República, mostrando que se vê rigorosamente acima da lei. O Código Penal é expresso. Para fins da lei penal, são considerados funcionários públicos “quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerça cargo, emprego ou função pública”.

O episódio da compra da vacina Covaxin pelo Ministério da Saúde é vergonhoso e precisa ser devidamente investigado pela Polícia Federal. Seis meses antes do negócio, a fabricante indiana ofereceu a dose por US$ 1,34, mas o governo preferiu fechar o negócio valendo-se de uma empresa intermediária que cobrou US$ 15 a dose. Segundo Jair Bolsonaro, o então ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, não viu nada de errado no contrato.

Na compra de vacina com sobrepreço, o presidente Bolsonaro não viu nada esquisito. Ao mesmo tempo, sem nunca ter apresentado nenhum indício, continua afirmando que eleição sem voto impresso é sinônimo de fraude. Não tem provas, não tem nenhum dado efetivo, mas é crescente sua vontade de difamar o sistema eleitoral.

O descaramento de Jair Bolsonaro é constrangedor. Basta sair uma pesquisa indicando queda de aprovação do seu governo, ou vir a público um novo escândalo na pasta da Saúde, que Jair Bolsonaro aciona sua artilharia e suas milícias digitais contra a urna eletrônica. Na semana passada, depois das revelações trazidas pela CPI da Covid, Jair Bolsonaro ameaçou dizendo que, se não tiver impressão do voto, não haverá eleições no ano que vem.

Tal é a campanha de desinformação contra a urna eletrônica promovida por Jair Bolsonaro que oito procuradores-gerais eleitorais anteriores a Augusto Aras assinaram, no dia 12 de julho, um “testemunho em defesa da verdade e do sistema eleitoral brasileiro”, ressaltando que “jamais houve o mínimo indício comprovado de fraude”.

“Insinuações sem provas, que pretendem o descrédito das urnas eletrônicas, do voto e da própria democracia, devem ser firmemente repelidas em defesa da verdade e porque contrariam a expectativa de participação social responsável pelo fortalecimento da cidadania”, disseram os antigos procuradores-gerais eleitorais.

Diante dessa contundente manifestação sobre a lisura das urnas, a difusão de desconfiança contra o sistema eleitoral, pondo em dúvida a realização do próximo pleito, configura evidente crime de responsabilidade. E, como se sabe, a prática de crimes não é solucionada por conversas entre autoridades.

No mesmo dia em que foi aberto o inquérito para investigar Jair Bolsonaro por crime de prevaricação, o presidente do STF, ministro Luiz Fux, conversou com o presidente Bolsonaro, pedindo-lhe que “respeitasse os limites da Constituição”. Louvável é a disposição do ministro Luiz Fux de lembrar o chefe do Executivo federal do compromisso, assumido ao tomar posse no cargo, de respeitar a Constituição. Mas esse diálogo não apaga, por óbvio, ações e omissões passadas que eventualmente configuraram crime.

O papel do Supremo – e, de forma especial, do seu presidente – é defender a Constituição. As instituições podem e devem dialogar, mas, sobretudo, devem cumprir suas atribuições de forma independente. Numa República, ninguém – seja ministro do Supremo, pastor evangélico ou presidente da República – tem competência para oferecer alguma rota de impunidade. A lei vale para todos, inclusive e principalmente para o presidente da República.

Mercosul emperrado e dividido

O Estado de S. Paulo

Bolsonaro acerta ao propor maior abertura, mas não prepara o Brasil para competir

Fundado há 30 anos, o Mercosul continua longe de alcançar seus principais objetivos – promover a integração dos quatro países-membros e constituir uma plataforma para inserção competitiva no mercado global. Outros blocos comerciais criados nesse período, em todo o mundo, promoveram com sucesso o desenvolvimento de seus associados, facilitando o aumento da produção, a expansão das trocas e a modernização econômica e social. No caso do bloco formado por Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai, nem sequer os objetivos originais são claramente reconhecidos pelos governos de todos os países sócios. Os desentendimentos foram evidenciados, mais uma vez, na última reunião de chefes de Estado, na semana passada. O principal embate ocorreu entre os presidentes brasileiro, Jair Bolsonaro, e argentino, Alberto Fernández.

Ao assumir, em nome do Brasil, a presidência rotativa do Mercosul, Bolsonaro insistiu em dois pontos por ele defendidos há algum tempo, a redução da tarifa externa comum e a flexibilização de acordos com parceiros externos ao bloco. Fernández lembrou a exigência de tratamento consensual dessas questões. Consenso, disse o presidente argentino, é a “espinha dorsal” do tratado de criação do Mercosul. O governo uruguaio também tem defendido maior facilidade para acordos com países de fora do bloco.

Todos têm argumentos de peso na defesa de suas posições, mas é preciso levar em conta a natureza do acordo em vigor entre os quatro países. O Mercosul é uma união aduaneira. Constitui, portanto, uma associação mais complexa do que uma área de livre comércio, com objetivos mais ambiciosos e regras mais estritas. Numa união aduaneira, nenhum país pode mudar a tarifa externa comum sem a concordância dos demais. A mesma limitação vale para acordos comerciais com parceiros de fora. Quanto a esses pontos o presidente argentino tem razão.

Mas o governo brasileiro tem respeitáveis motivos para propor a redução da tarifa externa comum e a busca de acordos com novos parceiros. O primeiro grande passo foi a conclusão das negociações com a União Europeia. Esse objetivo foi atingido graças ao esforço do presidente Michel Temer e de seu colega argentino Maurício Macri, embora a formalização do tratado só tenha ocorrido em 2019, quando ambos já estavam fora do poder. Mas é preciso ir mais longe.

Além de buscar mais parceiros, os países do Mercosul precisam entrar com mais firmeza na competição internacional. O Mercosul tem sido, principalmente para as indústrias do Brasil e da Argentina, um ambiente confortável, onde se pode negociar amigavelmente e com baixo risco de concorrência externa – exceto pela presença crescente da China. Mas autoridades brasileiras já perceberam a conveniência dessa maior abertura e até no setor empresarial há algum apoio a essa mudança – condicionada, é claro, a mudanças favoráveis à maior competitividade industrial. Na Argentina a resistência é muito maior. Nem os empresários se dispõem a enfrentar riscos maiores nem o governo se arrisca a propor essa alteração de rumo.

Os governos do Uruguai e do Paraguai têm mostrado maior flexibilidade. As autoridades uruguaias já insinuaram mais de uma vez a disposição de buscar um caminho de forma independente, ampliando acordos comerciais e de investimento.

Não está claro como o presidente Jair Bolsonaro percebe e avalia as consequências e requisitos de uma inserção mais ampla – e mais competitiva, é claro – no mercado internacional. Não basta levantar uma bandeira classificável como liberal. É preciso pensar nos fatores prejudiciais à competitividade brasileira, como os tributos disfuncionais, a infraestrutura deficiente, a insegurança jurídica, os entraves burocráticos e as enormes limitações educacionais e tecnológicas.

Em todos esses pontos tem falhado o governo Bolsonaro. Se esse governo pretender, de fato, batalhar pela dinamização do Mercosul, terá de pensar nas qualificações do Brasil para uma participação maior na economia global e de renegar as próprias políticas.

A descida aos infernos do Haiti

O Estado de S. Paulo

O cenário ali é tão catastrófico, que não se sabe sequer quem governa o país

O Haiti é considerado o país mais pobre do hemisfério ocidental. Em 200 anos de história ele sofreu diversas intervenções estrangeiras. Sua política é recorrentemente tiranizada por ditadores e a economia, por cartéis predadores. No século 21, desastres naturais como o terremoto de 2010, o furacão de 2016 ou o surto de cólera do mesmo ano dizimaram centenas de milhares de haitianos. Nos últimos anos, a criminalidade explodiu. Os protestos contra a corrupção se intensificaram, mas a repressão se intensificou ainda mais. Até o momento, não foi aplicada uma só vacina contra a covid em braços haitianos.

Mas o pior nem sempre é certo. O assassinato do presidente Jovenel Moïse mergulhou o país ainda mais fundo no caos.

Na manhã do dia 7, um grupo armado executou Moïse e feriu sua mulher, após invadir sua casa na capital, Port-au-Prince. O primeiro-ministro Claude Joseph declarou-se no comando do país e decretou estado de sítio. À noite, a polícia anunciou que quatro suspeitos foram mortos e dois presos.

Provavelmente eram mercenários. Mas a incerteza sobre os contratantes só inflama a confusão e a angústia da população. Muitos acusam a oposição ou as elites haitianas. Os rumores correm soltos. Há quem diga que o ataque foi orquestrado pela Venezuela ou mesmo pelos EUA. Em fevereiro, Moïse denunciou uma conspiração para assassiná-lo, o que levou à prisão de 23 pessoas, incluindo um juiz e um policial dos altos escalões. Seus oponentes o acusavam de um esquema de corrupção envolvendo a PetroCaribe, um fundo venezuelano, e questionavam a legitimidade de seu governo.

Moïse, um latifundiário que se referia a si mesmo como “Banana Man”, foi eleito em 2016, após a anulação das eleições de 2015. Segundo a oposição, seu mandato de cinco anos deveria ter terminado em fevereiro de 2021. Mas ele defendia que deveria durar até 2022.

Hoje o Haiti é uma democracia parlamentar sem um Parlamento. Desde 2020, após o adiamento das eleições legislativas, Moïse dispensou todos os congressistas, exceto 10 senadores, e passou a governar por decreto. Ao mesmo tempo que prometia conduzir eleições em setembro, ele reescreveu a Constituição e manobrava para submeter o texto a um referendo. Também criou uma nova agência de inteligência, ampliou a tipificação do “terrorismo” para incluir atos de dissidência e passou a reprimir com mais truculência os protestos. A oposição o acusava de cooptar o crime organizado para perseguir os dissidentes.

Moïse negava qualquer aliança. Mas, com ou sem o seu apoio, as gangues vinham aterrorizando a população. Recentemente, mais de 70 pessoas foram massacradas em um conflito armado. Em junho, milhares de pessoas foram obrigadas a deixar suas casas para fugir à violência. Estima-se que desde 2019 os sequestros tenham triplicado.

A violência política no Haiti não é novidade. O mundo ainda se lembra da ditadura dos Duvaliers, pai e filho (“Papa Doc” e “Baby Doc”), criadores da infame polícia secreta que aterrorizou o país, os Tontons Macoutes. Em meio ao caos, os criminosos podem se sentir ainda mais livres, até mesmo para tomar o poder. No mês passado, o ex-policial e miliciano Jimmy Cerisier (vulgo “Barbecue”) anunciou uma “revolução” – mas ninguém sabe bem contra quem ou a favor de quê.

O cenário é tão catastrófico, que não se sabe sequer quem governa o país. Não há previsão constitucional em caso de ausência do presidente e do Parlamento. Claude Joseph, indicado como primeiro-ministro por Moïse em abril, se autodeclarou no comando. Mas no mesmo dia do assassinato deveria assumir o novo indicado para a posição, Ariel Henry. Henry tem questionado a legitimidade de Joseph. A questão deveria ser arbitrada pelo presidente da Suprema Corte. Mas ele morreu há duas semanas por covid-19.

Mais de 200 anos após os escravos na Ilha de Hispaniola – a colônia mais rica da França, conhecida como a “Pérola das Antilhas” – liderarem a rebelião que fundou o Haiti, os haitianos ainda não são livres. O mais tétrico é que não é impossível que o pior ainda esteja por vir.

Tensão cresce na presidência rotativa do Brasil no Mercosul

Valor Econômico

O Brasil tem controle sobre a pauta de negociação e pode determinar o ritmo do qual tanto reclama

Na semana passada, o presidente Jair Bolsonaro assumiu em nome do Brasil a presidência rotativa do Mercosul. Com a falta de diplomacia que lhe é peculiar, Bolsonaro deixou bem evidentes os impasses do grupo, no discurso breve e direto que fez na reunião virtual de cúpula que marcou a transmissão do comando: a redução da Tarifa Externa Comum (TEC) e a maior liberdade para negociações fora do bloco.

Os problemas, é verdade, não surgiram agora, ficaram adormecidos e devem voltar a ser discutidos à medida que a região consiga emergir da crise do coronavírus. Mas sua superação é mais difícil dada a pouca disposição para negociar dos presidentes da região, especialmente de Bolsonaro e de Alberto Fernández, da Argentina.

Em seu discurso, Bolsonaro já afrontou Fernandez ao criticar o período em que a Argentina esteve à frente do bloco: “O semestre que se encerrou deixou de corresponder às expectativas e necessidades de modernização do Mercosul”. Bolsonaro também disse que o Mercosul não pode continuar sendo visto como sinônimo de “ineficiência, desperdício de oportunidades e restrições comerciais”. Nem uma palavra foi dita, porém, a respeito do efeito negativo que tiveram as falhas na preservação da Amazônia, o aumento do desmatamento na região e das queimadas que atingiram também o Pantanal na indisposição da União Europeia de fechar o acordo que vem sendo debatido há 20 anos com o Mercosul.

Do seu lado, Fernandez se manteve inabalável na defesa do consenso nas decisões do bloco, referindo-se indiretamente ao debate que vem sendo travado a respeito da redução da TEC e das negociações unilaterais. “O consenso é a coluna vertebral constitutiva” do bloco. Para ele, é com mais integração regional, e não menos, que o bloco estará em melhores condições de produção, comércio, negociação e competição. “Nossa posição é clara, cremos que o caminho é cumprir com o Tratado de Assunção, negociar juntos com terceiros países ou blocos e respeitar o consenso”, afirmou.

Fernández vem se manifestando contra a proposta brasileira de que o Mercosul deve permitir a negociação individual com países de fora do bloco, sem necessidade de decisões em consenso, como geralmente ocorre em blocos do tipo. Brasília também defende o corte linear da TEC em duas etapas, de 10% cada uma, neste ano. Buenos Aires prefere uma redução gradual e menor, não linear, poupando o setor industrial em um primeiro momento. Montevidéu apoia o Brasil na questão da negociação de acordos fora do Mercosul. Em seu discurso na reunião virtual, o presidente uruguaio, Luis Lacalle Pou, fez um malabarismo verbal ao dizer que acredita na regra do consenso e que a decisão do país de negociar acordos por fora não viola as normas do bloco.

Para Bolsonaro, “a persistência de impasses, uso da regra do consenso como instrumento do veto e apego a visões arcaicas de viés defensivo terão o único efeito de consolidar sentimento de ceticismo e dúvida quanto ao verdadeiro potencial do bloco”. Até o ministro da Economia, Paulo Guedes, tem acusado o Mercosul de aprisionar o país em uma armadilha, que impede o aumento da competitividade e da produtividade. Em entrevista ao Valor (18/6), o economista Roberto Teixeira da Costa, conselheiro e fundador do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), disse que “botar na conta da Tarifa Externa Comum [TEC] a responsabilidade pelo insucesso do Mercosul e do Brasil é querer tapar o sol com a peneira”. A realidade é que várias das críticas de Bolsonaro ao viés defensivo e visões arcaicas podem ser aplicadas à sua política de comércio exterior.

Mais pelas mazelas e falta de dinamismo de cada um de seus membros, o Mercosul viu sua importância diminuir ao longo do tempo. Depois de ter chegado a negociar US$ 27,8 bilhões quando tinha 20 anos, o Mercosul enfrenta agora a crise dos 30 anos com negócios de US$ 7,7 bilhões neste primeiro semestre. No passado, países vizinhos se esforçavam para ser aceitos no clube. Agora, os que podem veem mais vantagens em aderir aos acordos da região do Pacífico.

Mas o Mercosul não é apenas comércio. Uma posição em bloco pode causar alguns constrangimentos, mas fortalece a todos os membros nas negociações com outros blocos e outros parceiros, como a poderosa China, que avança cada vez mais na América do Sul. Como presidente rotativo, o Brasil tem controle sobre a pauta de negociação e pode então caminhar para uma maior liberalização e determinar o ritmo do qual tanto reclama. Mas é preciso negociar, evitar confrontos, ter liderança e diplomacia.

 

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