segunda-feira, 5 de julho de 2021

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

EDITORIAIS

Passou da hora de sepultar a Lei de Segurança Nacional

O Globo

O que era para ser exceção virou regra num governo que flerta o tempo todo com o autoritarismo. Dados obtidos pelo GLOBO, com base na Lei de Acesso à Informação, revelam que, dos 188 inquéritos abertos com base na Lei de Segurança Nacional (LSN) nesta década, mais da metade (107) aconteceu de 2019 para cá, no governo de Jair Bolsonaro. Apenas neste ano até 17 de junho, já são 23 casos, que representam 80% do total registrado em 2019. Não deveria surpreender, na medida em que esse entulho jurídico herdado da ditadura tem sido usado para intimidar, perseguir ou calar críticos ou adversários políticos.

Não faltam exemplos dessa prática condenável. Guilherme Boulos, ex-candidato do PSOL à Prefeitura de São Paulo, foi enquadrado por ter postado numa rede social a frase: “Um lembrete para Bolsonaro: a dinastia de Luís XIV terminou na guilhotina”. O jornalista Ricardo Noblat também foi confrontado por ter escrito: “Do jeito que vão as coisas, cuide-se Bolsonaro para que não apareça outro louco como o Adélio”. Ao deputado federal Túlio Gadêlha (PDT-PE), bastou curtir uma mensagem dizendo que “uma facada verídica resolveria tudo”. O youtuber Felipe Neto foi denunciado por chamar o presidente de “genocida” na pandemia de Covid-19. No Tocantins, o sociólogo Tiago Rodrigues foi investigado por estampar em outdoors mensagem afirmando que o presidente valia menos que um “pequi roído”, expressão que significa algo de pouco valor.

Não serve de pretexto o argumento de que o ministro Alexandre de Moraes, do STF, usou a mesma LSN para fundamentar a prisão do deputado Daniel Silveira (PSL-RJ) por ameaças ao Supremo. Tratou-se de um caso extremo de abuso da liberdade de expressão.

Sancionada em 1983, já no fim da ditadura militar, a LSN é um instrumento que não se encaixa num Estado democrático. Serve apenas para que governantes de turno, especialmente os que pendem para o autoritarismo, contem com um arcabouço jurídico para intimidar opositores. Confunde-se a defesa do Estado com a de governos. De seus 45 artigos, praticamente metade (22) se choca com dispositivos da Constituição promulgada em 1988.

No Supremo, já existem ao menos quatro ações que questionam dispositivos da LSN por incompatibilidade com a Carta, mas ainda não foram julgadas. Independentemente disso, essa aberração, a que o ministro Ricardo Lewandowski, do STF, já se referiu como “fóssil normativo”, parece estar com os dias contados. O texto-base da Lei do Estado Democrático, feito em substituição à LSN, foi aprovado na Câmara e está agora no Senado. A nova legislação prevê punição para crimes contra o estado democrático de direito, como golpe de estado, conspiração, atentado à soberania.

Um dos problemas do projeto é a pressa com que tramitou na Câmara, reduzindo o tempo para que fosse debatido com a sociedade. De qualquer forma, enterrar essa herança da ditadura, que traz o autoritarismo em seu DNA, será sem dúvida um avanço. Impressiona que tenha levado quase quatro décadas para isso. Espera-se que, no texto que sairá do Senado, não haja brechas para cerceamento de direitos fundamentais. Há que impor limites para preservar as instituições do Estado, mas sem abrir mão da liberdade de expressão, um dos pilares da democracia. Não existe liberdade de expressão relativa. Ou ela existe ou não existe.

Aumento de R$ 12 mil em salários de conselheiros do TCE é um acinte

O Globo

Alheio ao que se passa no Rio e no país, o conselho de administração do Tribunal de Contas do Estado (TCE-RJ) aprovou um acréscimo de cerca de R$ 12 mil aos vencimentos dos cinco conselheiros em atividade, sob a justificativa de sobrecarga de trabalho. Com isso, receberão R$ 47 mil, ultrapassando o teto do funcionalismo (R$ 39.200). O TCE alega que, por se tratar de verba indenizatória por acúmulo de serviço, prevista em lei, o valor não está sujeito ao teto.

A sobrecarga de trabalho, segundo o TCE, vem desde 2017, quando os cinco conselheiros foram afastados — chegaram a ser presos — durante a Operação Quinto do Ouro, da PF e do MPF. São acusados de integrar um esquema de propina que desviava recursos de contratos públicos. Não bastasse ter sido lesada, a sociedade ainda tem de pagar a mais para que outros façam o trabalho que eles deixaram de fazer. Registre-se que os titulares afastados continuam a receber salários e benefícios.

Apesar da alegação do TCE, os números do tribunal não sugerem sobrecarga de trabalho. Como mostrou reportagem do GLOBO, a produtividade vem caindo nos últimos anos. Em 2015, o plenário aprovou 2.076 acórdãos. Em 2020, o número despencou para 1.339, ou 737 a menos.

Com 1.096 funcionários, o TCE é uma ilha de prosperidade no serviço público. Conselheiros têm direito a duas férias por ano, carro, além de auxílios saúde e educação. O orçamento para este ano, aprovado pela Assembleia Legislativa (Alerj), prevê gastos de R$ 772 milhões, 83% (R$ 642 milhões) em despesas com pessoal.

O mundo maravilhoso do TCE contrasta com a situação de penúria do estado, que, para não falir, acabou de renovar o Regime de Recuperação Fiscal (RRF) com a União. Não é segredo, especialmente para o tribunal que fiscaliza as contas do governo, que o Rio, devedor de R$ 172 bilhões, não sobreviveria sem o socorro federal. Mas a ajuda tem contrapartidas. Para obter alívio nas finanças, a administração fluminense terá de implantar uma série de medidas de austeridade. A prebenda aos conselheiros é, por isso, um péssimo sinal enviado a Brasília.

A decisão vai na contramão de uma realidade em que milhares de brasileiros perderam seus empregos na pandemia, ou suas jornadas e salários foram reduzidos. O Brasil tem hoje uma massa de desempregados que soma 14,8 milhões. Outros 6 milhões desistiram de procurar trabalho. Nas favelas, não são poucas as famílias que vivem de doações, porque não têm dinheiro sequer para comprar comida.

A decisão do TCE-RJ ilustra uma situação comum no universo do funcionalismo público no Brasil. Trata-se de uma casta que vive num mundo à parte, dissociada da realidade da maioria dos brasileiros, embora sustentada por eles. Consegue passar incólume, com seus privilégios, pela maior crise da história do país. Pouco importa se a indenização de R$ 12 mil aos estafados conselheiros está dentro da lei — milhões de brasileiros sonhariam só com esse acréscimo. Legal ou não, ela é um acinte à sociedade.

Devastação ambiental

O Estado de S. Paulo

A temporada de queima na Amazônia está apenas começando, mas o descaso renitente do governo, somado ao agravamento das secas, permite vislumbrar uma tempestade perfeita.

Adevastação ambiental segue fora de controle. Segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, a Amazônia registrou em junho o maior número de focos de incêndio para o mês desde 2007. No Cerrado, foi o maior índice desde 2010. A temporada de queima na Amazônia – entre julho e outubro – está apenas começando, mas o descaso renitente do governo, somado ao agravamento das secas, permite vislumbrar uma tempestade perfeita.

A devastação se alastra indiscriminadamente. Segundo o relatório Mapbiomas, em 2020 o volume de áreas desmatadas em todo o País subiu 14% em relação a 2019. A alta foi verificada nos seis biomas brasileiros: no Pantanal, por exemplo, foi de 43%; no Pampa, 99%; e na Mata Atlântica, 125%. O crescimento foi menor na Amazônia (9%) e no Cerrado (6%). Mas ambos respondem por 92% de toda a área devastada: 61% na Amazônia e 31% no Cerrado.

Os próximos meses serão críticos. Em junho o País entrou no período de seca, que costuma se estender até setembro. Mas a estiagem neste ano será mais severa, por causa do resfriamento das águas superficiais do Pacífico – o La Niña. A região central registrou em junho o menor volume de chuvas em 91 anos.

Um ciclo vicioso está formado. A seca – responsável pela crise hídrica que impacta a agropecuária, o abastecimento de água e a produção de energia – deve favorecer o fogo na Região Amazônica. Como metade da chuva do Centro-oeste, Sul e Sudeste é gerada pela transpiração da floresta, o desmatamento e as queimadas, por sua vez, agravarão as secas. Para piorar, as partículas em suspensão dos incêndios devem agravar os casos de doenças respiratórias, entre elas a covid-19, pressionando ainda mais os sistemas de saúde das Regiões Norte e Centro-oeste.

O governo suspendeu por 120 dias a queima controlada em áreas agropastoris e florestais no País e autorizou até 31 de agosto o emprego das Forças Amadas na Amazônia. Mas não há nenhuma razão para crer que essas medidas serão mais eficazes neste ano do que foram nos dois anos anteriores.

Sob a gestão do ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, órgãos ambientais como o Ibama e o ICMBIO foram desmantelados e desprestigiados a olhos vistos. A articulação com as Forças Armadas não foi completamente eficaz e o próprio presidente do Conselho Amazônia, o vice-presidente Hamilton Mourão, admitiu mais de uma vez o descompasso com o Ministério do Meio Ambiente. O período de 60 dias previsto para a nova operação de Garantia da Lei e da Ordem na Amazônia é menor do que o dos anos anteriores e do que os 90 dias que vinham sendo reivindicados por Mourão.

Segundo o Instituto Socioambiental, no primeiro biênio do governo (2019-20) o desmatamento nas unidades de conservação aumentou 48,3% em relação a 2017-18. Nas terras indígenas, o aumento foi de 42,5%. Enquanto nas Áreas de Proteção Ambiental estaduais a alta foi de 58,2%, nas federais foi de 90,8%. Nas unidades de conservação de uso sustentável administradas pelo governo federal por meio do ICMBIO, o desmate aumentou 129,8%. Entre as 20 terras com maior histórico de pressão e conflitos com garimpeiros, grileiros e madeireiros, o desmatamento cresceu inacreditáveis 534%.

A zona mais crítica é o centro-sul da Amazônia. Segundo o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia, 10 municípios que experimentaram condições de secas ou de extrema seca têm 283 km² de áreas desmatadas e não queimadas, além de grandes trechos de florestas remanescentes que podem ser atingidos por incêndios sem controle. Mas, dos 10, apenas 1 faz parte da lista de 26 municípios que receberão as Forças Armadas. Em 2020, nos 11 municípios definidos como prioritários pelo Conselho, só 12% da área desmatada sofreu ações de punição.

A falta de planejamento adensa a atmosfera de impunidade – acalentada desde sempre pelos atos e palavras do presidente da República – que oxigena os agressores ambientais. A tragédia está anunciada. Centenas de milhares de troncos já estão no chão, a seca está no ar e não faltarão mãos para riscar o fósforo.

Recuperação sem emprego

O Estado de S. Paulo

A economia se moveu, mas o desemprego ficou pior do que no ano passado

Dezenas de milhões de brasileiros – desocupados, subocupados, desalentados e seus dependentes – continuam sem convite para a festa da recuperação econômica. A economia brasileira crescerá 5,05% neste ano, segundo a projeção do mercado divulgada pelo Banco Central (BC). Uma expansão de 4,8% é a nova aposta do pessoal do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).também saíram os números do desemprego no trimestre móvel encerrado em abril: 14,8 milhões de desocupados, 14,7% da força de trabalho, nível recorde na série estatística iniciada em 2012. Nada parece indicar uma onda de contratações a partir de maio.

Não houve melhora no mercado de trabalho, na passagem do trimestre de janeiro a março para o período de fevereiro a abril. Com a mudança do trimestre móvel, eliminou-se um mês e um mês se acrescentou ao conjunto, mas o cenário em quase nada se alterou. Além do contingente e da porcentagem dos desocupados, manteve-se o número dos desalentados (6 milhões). O total de subutilizados ficou praticamente igual, tendo passado de 33,2 milhões para 33,3 milhões de indivíduos. O grupo dos informais também pouco se alterou, tendo aumentado de 34 milhões para 34,2 milhões de trabalhadores.

As pequenas diferenças foram insuficientes para mudar o cenário na passagem do trimestre findo em março para aquele terminado em abril. Além disso, nos dois períodos o quadro geral foi bem pior que o do ano anterior. No caso do trimestre janeiro-março, o desemprego passou de 12,2% em 2020 para 14,7% um ano depois. Quando a comparação envolve o período de fevereiro a abril, encontra-se uma diferença menor, de 12,6% para 14,7%.

Os dois confrontos indicam uma sensível piora do mercado entre os dois anos. Nas duas comparações, os dados do ano anterior são confrontados com um recorde, a maior desocupação registrada na série iniciada em 2012. Na maior parte das demais economias emergentes e em quase todas as desenvolvidas houve dois movimentos bem diferenciados a partir do início da pandemia. No primeiro, como em todo o mundo, a desocupação cresceu de forma considerável. No segundo houve um claro aumento das oportunidades de trabalho. No Brasil ocorreu algo muito diferente: em nenhum trimestre de 2020 o desemprego chegou à taxa de 14,7%.

No Brasil, como em dezenas de outros países, medidas de apoio aos negócios e de sustentação do emprego foram aplicadas pelo governo central. Mas o caso brasileiro tem algumas peculiaridades. As políticas de preservação do emprego e de ajuda às famílias mais necessitadas foram suspensas no começo deste ano e retomadas parcialmente a partir de abril. Apesar disso, a reação econômica prosseguiu no primeiro trimestre, mas sem melhorar as condições do mercado de trabalho.

No trimestre fevereiro-abril a população ocupada, de 85,9 milhões de pessoas, ficou estável em relação ao contingente do trimestre de novembro a janeiro, isto é, da virada do ano. O número de pessoas ocupadas diminuiu, no entanto, 3,7% em relação ao período fevereiro-abril do ano passado. Seria muito otimismo atribuir essa redução a um abandono voluntário e tranquilo do mercado nesse intervalo de um ano.

Também é preciso levar em conta os tropeços durante a retomada econômica a partir de maio do ano passado. A maior taxa mensal de crescimento da produção industrial, nesse período, ocorreu em junho de 2020. Foi uma expansão de 9,5% sobre o volume de maio. A partir daí o ritmo declinou seguidamente, chegou a 0,2% em janeiro deste ano e em seguida se tornou negativo, declinando 1% em fevereiro, 2,2% em março e 1,3% em abril. A evolução do consumo também foi irregular, mas muito menos negativa que a da indústria. As vendas do comércio varejista cresceram 0,5% em janeiro e 3,9% em fevereiro, declinaram 3,1% em março e aumentaram 0,7% em abril. Boa parte dos serviços ainda foi afetada pelas medidas de proteção contra a pandemia. Apesar disso, a economia avançou, enquanto o emprego retrocedeu.

A Câmara e o interesse público

O Estado de S. Paulo

Abrandamento da Lei da Ficha Limpa afasta a Câmara do melhor interesse público

Matérias importantes aprovadas pela Câmara dos Deputados nas últimas semanas colidem frontalmente com o melhor interesse público.

A cúpula do Congresso Nacional, que pode ser vista imponente acima da Câmara dos Deputados, simboliza a abertura da Casa à multiplicidade de vozes, ideias, anseios e valores da sociedade brasileira. Em suma, aquele é o espaço da concertação política por excelência, fundamental para que prevaleça o bem comum acima dos interesses paroquiais.

Sob a presidência de Arthur Lira (PP-AL), no entanto, a Câmara dos Deputados tem feito movimentos que a afastam de seu nobre desígnio. Matérias importantes aprovadas pela Casa nas últimas semanas, além de outras em discussão, colidem frontalmente com o melhor interesse público. Vejamos.

Há poucos dias, os deputados aprovaram o Projeto de Lei (PL) 10.887/18, que altera a Lei 8.429/92. Não há dúvida de que a Lei de Improbidade Administrativa há muito tinha de ser modernizada. Se tinha como finalidade coibir malfeitos na gestão da coisa pública, ao longo de quase 30 anos de vigência a lei se converteu em uma perigosa fonte de insegurança jurídica, instrumento de indevida ação política do Ministério Público e fator inibidor do ingresso de bons quadros profissionais na administração pública, entre outras distorções. Entretanto, a forma açodada como o projeto passou a tramitar desde a posse de Lira e a natureza das mudanças aprovadas mais revelaram a sobreposição dos interesses dos parlamentares, muitos dos quais envolvidos em ações de improbidade – como o próprio Lira –, do que o aprimoramento necessário da lei tendo sempre como norte o interesse público.

A proposta de reforma política em tramitação na Casa está igualmente descolada dos interesses da sociedade. No balaio há claros retrocessos, como a volta do financiamento de campanhas políticas por empresas e a permissão de coligações partidárias em eleições proporcionais, e aberrações como o chamado “distritão”, sistema que enfraquece os partidos – e, consequentemente, o diálogo – e privilegia indivíduos.

Agora, no que pode ser visto como um novo movimento de autodefesa da chamada classe política, os deputados acabam de aprovar um projeto que abranda a Lei da Ficha Limpa, uma grande conquista da sociedade brasileira. Por 345 votos favoráveis e 98 contrários, os deputados acabaram com a pena máxima prevista na lei, a inelegibilidade, para os casos de governantes que tiveram suas contas rejeitadas pelos órgãos de controle e foram punidos apenas com multa.

Hoje estão inelegíveis por oito anos os administradores públicos que tiveram suas contas rejeitadas por “irregularidade insanável” em decorrência de “ato doloso de improbidade administrativa”. A Lei da Ficha Limpa não faz menção ao tipo de pena aplicada a cada caso. O deputado Enrico Miasi (PV-SP), relator do projeto, propôs uma ressalva às condenações que mantêm elegíveis os cidadãos que, embora tenham tido suas contas rejeitadas, receberam apenas pena de multa como punição. “Não se aplica (a inelegibilidade) aos responsáveis que tenham tido suas contas julgadas irregulares, sem imputação de débito, e sancionados exclusivamente com o pagamento de multa”, diz o texto aprovado pelo plenário da Câmara.

O relator defende que a aprovação do projeto “representa incremento da segurança jurídica”, haja vista que alguns gestores públicos punidos com multa recorrem ao Tribunal Superior Eleitoral para manter a elegibilidade.

Ora, a inelegibilidade prevista na Lei da Ficha Limpa não tem, e não deve ter, relação com o tipo de punição, penal ou administrativa, que o mau administrador venha a receber por ter suas contas reprovadas. A inelegibilidade advém, após processo no qual se garantiu a ampla defesa ao gestor público, que, por sua reconhecida incapacidade para bem administrar os recursos públicos sob seus cuidados, acabou tendo suas contas reprovadas. Ademais, a lei fala em dolo para efeitos de inelegibilidade. Ou seja, como ser tolerante com o gestor que teve a intenção de malversar recursos públicos, mas foi punido apenas com pena de multa?

O projeto seguiu para o Senado, onde se espera que a condescendência com a incúria no manejo de recursos públicos seja barrada.

Mais um inquérito

Folha de S. Paulo

Ao abrir investigação mirando bolsonaristas, STF dribla procurador subserviente

Em decisão proferida pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, a corte arquivou o chamado inquérito dos atos antidemocráticos, que estava em curso desde abril do ano passado.

Determinou, no entanto, a instauração de nova investigação sobre a existência de uma organização criminosa digital voltada a atacar as instituições, envolvendo aliados do presidente Jair Bolsonaro.
No texto, o magistrado faz nada menos que 12 referências ao deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), sem deixar de mencionar outros dois filhos do presidente, o senador Flávio (Patriota-RJ) e o vereador Carlos (Republicanos-RJ).

Com a medida, Moraes dribla a Procuradoria-Geral da República. De um lado, acata o argumento da PGR pelo encerramento da investigação por falta de provas contra autoridades com foro especial; de outro, permite que se investigue mais a fundo a participação de bolsonaristas em ameaças ao Estado de Direito —e ao próprio STF.

Deve-se atentar para o fato de que a manobra se dá diante de uma postura amigável, para dizer o mínimo, do procurador-geral Augusto Aras em relação ao Planalto, às vésperas da abertura de uma nova vaga no STF para a qual pode receber a indicação presidencial.

Outra questão preocupante é a fragilização das investigações por causa da disputa entre a Polícia Federal e a Procuradoria. O inquérito extinto havia sido aberto a pedido da PGR, poucos dias depois de Bolsonaro ter participado de manifestações com pautas antidemocráticas em frente ao quartel-general do Exército, em Brasília.

Para justificar o arquivamento, a PF apontou o caráter inconclusivo das apurações, ao passo que a Procuradoria acusou a corporação policial de conduzir seus trabalhos sem um foco claro.

Não é porque se criou um novo inquérito, entretanto, que os vícios institucionais do anterior desaparecerão magicamente. Não convém, em circunstâncias normais, que o STF acumule as funções de abrir investigações, acusar e julgar.

As circunstâncias, infelizmente, não são normais. O presidente da República de fato estimulou abertamente manifestações de tom golpista, com ataques aos demais Poderes —só recuando diante da perspectiva de se ver alvo de um processo de impeachment.

Ademais, a vergonhosa subserviência do procurador-geral ao Planalto, que nem de longe se limita a esse episódio, reduz a eficácia dos freios aos abusos do chefe do Executivo. Não se pode, pois, dissociar a decisão heterodoxa de Moraes desse contexto lamentável.

Poder elétrico

Folha de S. Paulo

Crise hídrica demanda decisões ágeis, mas nova câmara deve ser aperfeiçoada

Medida provisória recém-editada pelo governo Jair Bolsonaro concedeu a um grupo de ministros poderes excepcionais para gerir a crise hídrica e as ameaças de falta de energia elétrica —o que inevitavelmente faz lembrar o “Ministério do Apagão”, criado em 2001 para promover um racionamento.

A MP cria a Câmara de Regras Excepcionais para Gestão Hidroenergética (Creg), liderada pelo ministro de Minas e Energia e também composta por representantes da Economia, da Infraestrutura, do Desenvolvimento Regional, da Agricultura e do Meio Ambiente.

Em princípio, tal instância deverá existir até o final deste ano. Seus poderes sobrepujam os de agências reguladoras e instituições de fiscalização ambiental.

O cenário a ser enfrentado é de fato preocupante, A falta de água pode comprometer o funcionamento das hidrelétricas. Ao fim do período de seca no centro-sul do país, em novembro, essas usinas podem mesmo estar inoperantes, dada a baixa de seus reservatórios ou a redução do fluxo.

É inevitável administrar o problema de modo a minimizar os danos para os diversos usuários. É preciso que as decisões sejam rápidas, técnicas e juridicamente seguras.

A MP dá poderes à Creg para, por exemplo, estabelecer vazões, determinar a contratação de energia emergencial ou tornar compulsórias deliberações do Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico (CMSE), que é diverso em sua composição técnica e institucional.

Homologadas pela nova câmara, as deliberações do CMSE relativas à crise serão de cumprimento obrigatório pela administração pública direta e indireta, pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico, pela Câmara de Comercialização de Energia Elétrica e por concessionárias dos setores elétrico, de petróleo, gás e biocombustíveis.

No limite, o ministro de Minas e Energia poderá até mesmo tomar decisões isoladamente, a serem referendadas pela Creg.

Quanto à segurança jurídica, o futuro dirá se os interessados poderão levar à Justiça medidas que até agora eram de responsabilidade de instituições variadas.

O arranjo e os poderes genéricos da câmara já suscitam críticas. Ainda que certas decisões dependam de deliberações do CMSE, há liberdade excessiva para um colegiado de composição apenas política.

É necessário que o Congresso se ocupe o quanto antes do assunto. A decisão ágil é sem dúvida necessária neste momento de crise, mas criar contrapesos a medidas eventualmente equivocadas ou até autoritárias também é imperativo.

Transparência e comunicação adequada na crise de energia

Valor Econômico

Tudo indica que o pior regime hidrológico em 91 anos é um problema que parece ter vindo para ficar

Transparência e comunicação adequada, transparência e comunicação adequada, transparência e comunicação adequada. Esse binômio deveria ser perseguido à exaustão, pelo governo Jair Bolsonaro, no enfrentamento da crise hídrica que fez reaparecer o fantasma de um novo racionamento de energia, duas décadas após a experiência de 2001. Os reservatórios das usinas hidrelétricas no subsistema Sudeste/ Centro-Oeste devem chegar ao fim de julho abaixo do volume armazenado naquele ano, com só 26,6% de sua capacidade máxima e os piores meses de estiagem ainda pela frente.

Na terça-feira, o governo publicou a MP 1.055, medida provisória que dá plenos poderes à Câmara de Regras Excepcionais para Gestão Hidroenergética (Creg) para mudar vazões em rios importantes para a segurança do sistema, sem a necessidade de aval do Ibama e da Agência Nacional de Águas (ANA), que normalmente decidem sobre o assunto. Diante do agravamento da situação, foi uma medida acertada. Também foi positiva a retirada de menção, inserida em minuta da MP, à “racionalização compulsória” do consumo. O termo é estranho do ponto de vista técnico - fala-se em racionalização como ato voluntário e racionamento como ato compulsório - e só criava incertezas. Cabe agora impedir que a análise do texto pelo Congresso Nacional abra mais um balcão de atendimento dos lobbies no setor elétrico.

O Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) já exibiu seus planos até a volta das chuvas. Está previsto o acionamento de praticamente todo o parque térmico, atingindo 20 mil megawatts (MW) em novembro, mas a pergunta frequente é se essas usinas terão disponibilidade para operar como o desejado. A Petrobras deve paralisar para manutenção, por 30 dias, a plataforma de Mexilhão e o gasoduto Rota 1, que escoa gás natural produzido no pré-sal da Bacia de Santos. Algumas térmicas serão interrompidas. Pampa Sul e Candiota 3, duas usinas movidas a carvão que totalizam 695 MW de potência, também devem fazer paradas para serviços no auge do período seco.

Aplicadas todas essas premissas, o ONS diz que não haverá necessidade de racionamento neste ano, mesmo com um atraso no reinício da temporada de chuvas. O operador admite, no entanto, que o equilíbrio entre oferta e demanda será bastante apertado: novembro teria uma folga de apenas 3,3 mil MW no balanço energético. Uma margem tão pequena deixa o sistema mais vulnerável a imprevistos, como restrições nas linhas de transmissão e desligamentos súbitos de alguma máquina geradora. Isso pode resultar em blecautes, já que a reserva operativa torna-se menor.

Na tentativa de evitar apagões, o Ministério de Minas e Energia tem discutido com grandes consumidores industriais um incentivo ao deslocamento da produção para fora dos horários de ponta. Já se passaram algumas semanas desde o início das conversas, porém, sem que haja detalhamento de como funcionaria esse estímulo. A tarifa branca, criada em 2018 para induzir residências e comércio a reduzir seu consumo, teve adesão pífia. Em três anos, apenas 57 mil unidades consumidores - menos de 0,1% do universo potencial - pediram para entrar nessa modalidade, que prevê desconto tarifário a quem consome fora das horas-pico.

O ministro Bento Albuquerque fez um pronunciamento, em rede nacional, para explicar a gravidade do quadro e pedir aos brasileiros que ajam responsavelmente. Mas as palavras de Albuquerque, bem como as peças publicitárias do governo, ainda são tímidas na comunicação dos fatos. Ao mesmo tempo, a diretoria da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) aprovou reajuste das bandeiras tarifárias em percentual inferior ao recomendado pela área técnica. Por mais que seja menos danoso para os índices de inflação, não reflete, da forma mais transparente, o custo atual da geração térmica e o grau de preocupação com o volume dos reservatórios.

Convém, ainda, não transmitir a impressão de que o pior regime hidrológico em 91 anos, apesar de um evento extremo, é algo isolado e dissociado das mudanças climáticas em curso. É um problema que parece ter vindo para ficar. Como demonstrou o Valor (22/3), entre 2016 e 2020, a água que chega às represas de hidrelétricas como reflexo das chuvas tem ficado permanentemente abaixo da média histórica registrada pelo ONS: 85,6% no Sudeste/Centro-Oeste, 49,3% no Nordeste, 88,4% no Sul e 76,2% no Norte. Chegou a hora de incorporar os efeitos do aquecimento global na operação do sistema e investir urgentemente na recomposição de matas que protegem nossas bacias hidrográficas.

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