terça-feira, 24 de agosto de 2021

Carlos Andreazza - Cristo Ipiranga e a fé caloteira

O Globo

Na última quarta-feira, Bolsonaro disse que, “com fé, com vontade, com crença”, o Brasil poderia superar a inflação e o desemprego. No dia seguinte, à Comissão de Relações Exteriores do Senado, Paulo Guedes sapecou — com vontade — o combo chantagem/incompetência e mostrou ao presidente que não existe Cristo Ipiranga, ao mesmo tempo que lembrava ao povo quem será o sacrificado:

— Se precatório não passar, vamos mandar Orçamento de R$ 90 bilhões e vai faltar dinheiro para pagamentos até de salários.

Referia-se, pela ordem, à PEC dos Precatórios, por meio da qual pretende formalizar um calote em credores da União, condição movediça — fonte incerta — que a criatividade liberal encontrou para bancar programa permanente, o novo Bolsa Família; ao Orçamento de 2022, dentro do qual o fiscalista do amanhã finge tentar embutir a conta da reeleição do mito, enquanto, no mundo real, acionado vai o teto de gastos solar, para fora do qual dependuram-se fundos e outros infinitos em que os sócios do Centrão poderão encher seus balões quando lotados os orçamentos secretos; e aos recursos para custear a remuneração do funcionalismo público, despesa obrigatória, mas com que resolveu ser austero, já que, comprometido com os acordos do amortecedor Ciro Nogueira e do trator Arthur Lira, não tem braço para ser valente com gastos discricionários.

Não existe Cristo Ipiranga. Nem Posto Ipiranga. Nem sequer o Paulo Guedes que Paulo Guedes ainda apregoa. (Para que se avalie o prestígio: o Onyx Lorenzoni de Chicago perdeu o Ministério do Trabalho para que o Onyx Lorenzoni redpill tenha base por onde tocar sua campanha ao governo do Rio Grande.) Há um ministro da Economia bom de promessas, mas com graves dificuldades em formular políticas públicas e incapaz de acompanhar politicamente — e de executar — o pouco que propõe. O produto exemplar dessa miséria sendo o projeto de capitalização da Eletrobras, entregue ao patrimonialismo em troca de algo a ser vendido como privatização, afinal uma escada para que usineiros sem gás façam negócios subsidiados pelo trouxa cuja conta de luz subirá.

Diga-se que estelionato eleitoral também é modalidade de calote.

Aliás, o severo de propaganda — o que ameaça não pagar salário em nome da higidez de um teto arrombado — é o pai daquela PEC, a Emergencial, a do Futuro (a de rigores fiscais só para 2025), concebida para oportunisticamente permitir reajustes salariais no ano eleitoral que vem. Que não se espere coerência. O recado aos servidores é este mesmo — a ameaça: terão aumento em 2022, mas, se o Parlamento não aprovar a tunga nos credores, não receberão os salários. O recado aos legisladores — a chantagem: se não apoiarem o calote nos precatórios, darei calote no funcionalismo; e a culpa será de vós.

Calote ou calote, informou o ministro da Reeleição; que, enquanto deixa correr frouxa uma reforma do IR destinada a comer a arrecadação federal, quer engajar a todos (ou serão militantes traidores da pátria) na missão de legitimar os dinheiros com que bancar a campanha eleitoral golpista por meio da qual Bolsonaro, populista autoritário cuja existência competitiva depende da forja de conflitos, quer mais quatro anos para dilapidar a República.

Ao ouvir Guedes, lembrei-me do presidente do Banco Central falando em ruídos geradores de pressão inflacionária:

— Reconhecemos que há grande quantidade de ruído em torno do Bolsa Família e de novas medidas [referia-se à PEC caloteira dos Precatórios] que o governo divulgou.

Roberto Campos Neto tratando esse barulho como fato isolado, elemento episódico, e não como estado permanente, talvez, por envolvido demais, impossibilitado de perceber a constância do distúrbio derivado de o combo guedista de chantagem e incompetência cobrar sua fatura sob um presidente que é o próprio centro difusor de instabilidades.

Não tem — nunca teve — como dar certo.

Se Campos Neto não se comportasse como agente político, se não se turvasse participando de reuniões ministeriais e até de encontros de Bolsonaro com empresários, se não se tivesse tornado crente nas palestras de Guedes (para quem a peste não teria segunda onda), talvez a situação brasileira fosse um pouco melhor. Talvez o Banco Central não tivesse sido mergulhado na euforia de analfabetos em matéria democrática. Talvez não se emparedasse contaminado pela lógica dos robertos-jeffersons e daniéis-silveiras da Faria Lima. Talvez fosse um pouco mais conservador antes de forjar juros dinamarqueses num país com estabilidade política peruana.

Vai piorar. O golpismo de Bolsonaro — o do guarda da esquina — opera por dentro e por baixo. E logo teremos — à guisa de manifestação eleitoral — brasileiros armados se medindo nas ruas. O país subordinado a uma agenda de confrontos avessa ao mais mínimo requisito de prosperidade econômica. Ou não vemos o presidente segurar um de seus pedidos de impeachment contra ministros do Supremo — contra Barroso — para soltá-lo mais proximamente ao protesto de 7 de setembro? Parcelará a entrega, contratada nova página de abalo institucional. A fluência da vida republicana — alguma tranquilidade para investimento e geração de empregos — submetida à necessidade de alimentar base de apoio sectária, aquele comandante da PM para quem “liberdade se toma”.

A intenção é a mensagem. É fortalecer a posição de vítima do sistema, impedido de governar pelo establishment; isso enquanto, no mundo real, oferece mais ministérios — talvez tirados de Guedes — aos parceiros do Centrão, o sistema.

Certeza: Guedes fica. Sem ele desanda — crê.

 

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