domingo, 8 de agosto de 2021

Dorrit Harazim - Galope insano

O Globo

A semana que passou foi ardida, até meio vulcânica, com togas esvoaçando e o presidente da República sendo publicamente desconvidado à mesa dos três Poderes pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Luiz Fux. Foi um “basta” quase catártico ao galope transviado de Jair Bolsonaro no poder. E pegou de surpresa o mandatário que prega a insânia de imprimir os votos de todas as urnas eletrônicas, “senão não haverá eleição em 2022”. Habituado a ameaçar as instituições com força de ruptura, Bolsonaro parece não ter percebido o grave sinal emitido pelo Judiciário dias antes, quando foi formalmente incluído em inquéritos pelo Tribunal Superior Eleitoral e pelo STF. Prosseguiu nas bravatas, ofensas e acusações sem prova e continua a perder o freio.

É possível que o “basta” de Fux tenha vindo tarde demais. Vale olhar para a ruína cívica que Donald Trump legou à história democrática dos Estados Unidos para se inquietar com os rumos brasileiros para bem além de 2022.

Como se sabe, em novembro do ano passado o democrata Joe Biden derrotou Trump por ampla maioria de votos eleitorais (306 contra 232) e confortável maioria no voto popular (81,2 milhões contra 74,2 milhões). Ainda assim, e apesar de ter dois processos de impeachment no currículo, Trump conseguiu convencer a maioria dos que nele votaram de que a eleição foi fraudulenta e precisa ser justiçada. A invasão ao Capitólio contra a ratificação eleitoral de Biden, em 6 de janeiro, pode e deve ser chamada de tentativa de golpe. Apesar de não ter tido êxito, ficou a chama. Seja por conveniência eleitoral, seja por sandice, toda uma leva de governadores, congressistas e senadores republicanos continua alinhada à tese da Big Lie (Grande Mentira) de Trump — segundo a qual a vitória nas urnas lhe foi roubada. O desmonte dessa teoria conspiratória não está ao alcance da vista, sendo provável que os EUA levem mais de uma geração para reencontrar confiança em seu processo eleitoral.

Por ora, o rei desse desmonte continua sendo o próprio Trump, em seu exílio palaciano de Mar-a-Lago. Vive numa bolha vingativa que beira a insanidade, mas nem por isso afasta seus seguidores. Transformou uma ala da mansão dourada em “Salão Oval”, com direito a quatro bandeiras e uma réplica da histórica mesa presidencial da Casa Branca. Em cima dessa Resolute Desk desavergonhadamente fake repousa um pedaço de metal. Ele foi retirado de um trecho do muro que o ex-presidente jurou construir na fronteira com o México. Seu Salão Oval fake também contém uma estátua de bronze do próprio Trump, além de toda uma parafernália presidencial — canecas, fotografias, adereços, bótons. Numa das paredes, a foto emoldurada do Monte Rushmore, onde gostaria de se ver esculpido.

Vale anotar também a nova identidade que criou para si. Por toda parte, seja em comícios que continua a fazer pelo país, em monogramas bordados nos punhos de todas as suas camisas sociais (sim, nos punhos!) ou no site inaugurado meses atrás (45office.com), ele agora é um número: 45. Tudo minuciosamente planejado e com dupla função. De um lado, incentiva seus seguidores a jamais citá-lo como ex-presidente, para continuar vendo nele o “45º presidente dos Estados Unidos”. E também porque o sobrenome dourado, que por décadas batizou arranha-céus, clubes, hotéis e mercadorias, perdeu parte do magnetismo. Marqueteiros e publicitários ficam assombrados com a ousadia desse rebranding de sua marca pessoal, algo comparável ao “23” de Michael Jordan — o número se tornou sinônimo do homem-ídolo da NBA.

Trump foi um desvio horrendo na história política dos Estados Unidos. Despreparado, oportunista e insano. Não vai mudar, nem seus seguidores armados querem que ele mude. Bolsonaro está sendo um desvio horrendo de um Brasil que tenta ser mais decente. É ainda mais despreparado, mais oportunista e mais insano. Não vai mudar. E, cada um a seu modo, ambos seguem o receituário do autoritarismo descrito pela historiadora Ruth Ben-Ghiat em “Strongmen — Mussolini to the present”. “Homens fortes são indivíduos brutais e amorais, paranoicos e egocêntricos... a intimidação e a violência são essenciais a seu exercício do poder”, escreve ela. Sua conclusão já ecoa forte por aqui: “A verdade se torna o inimigo mortal dessa espécie, cuja raiva se transforma em arma”.

Trump foi derrotado nas urnas antes de conseguir consolidar seu poder autocrático, mas ficou claro que nenhuma nação está imune às tentações de um líder que diz: “Eu resolvo o problema. Eu falo por vocês”.

Um só “basta” não basta. É preciso muitos mais para barrar o galope.

 

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