quarta-feira, 4 de agosto de 2021

Elio Gaspari - De R. da Costa@edu para Fux@jus

O Globo / Folha de S. Paulo

Perdemos o bonde em 1965

Caro colega,

Esta mensagem vai ao senhor, mas interessa também àqueles que lidam com a crise que se arma com o Supremo Tribunal Federal e com o regime democrático do nosso país.

Eu, Álvaro Ribeiro da Costa, presidia o Supremo na madrugada de 2 de abril de 1964. Empossei o deputado Ranieri Mazzilli no cargo de João Goulart. O presidente continuava no país, não havia sido impedido pelo Congresso, nem eu tinha mandato de meus colegas. Uma completa ilegalidade, mas seu governo ruíra, e havia sido instituído um Comando Revolucionário, cujo chefe de fato era o general Arthur da Costa e Silva, que se intitulava chefe do Exército.

Em outubro de 1965, realizaram-se eleições parciais para governos estaduais, e a oposição moderada venceu em Minas Gerais e na então Guanabara. A inquietação militar, soprada pelas vivandeiras que haviam sido derrotadas, queria uma crise, e ela acabou resvalando nas relações do Supremo Tribunal com o Poder Executivo.

Eu publiquei um artigo defendendo a Corte. Lembrei que “já é tempo de que os militares se compenetrem de que nos regimes democráticos não lhes cabe o papel de mentores da nação”. Dois dias depois, durante uma cerimônia militar, o marechal Costa e Silva atacou-me grosseiramente. Disse que “este país exige homens grandes, homens de alto espírito público e não homúnculos que venham a degradá-lo por interesses pessoais”.

Um horror, mas o jogo estava feito — e feito seguiria. Cinco dias depois, o governo baixou o Ato Institucional que tornou indiretas as eleições para presidente e para os governos estaduais. Passaram-se mais três anos, e veio o AI-5. A noite durou duas décadas.

Desde que cheguei aqui, apliquei-me reconstruindo fatos que à época não foram conhecidos. Um espanto.

Depois do discurso de Costa e Silva, o chefe da Casa Militar do presidente Castello Branco foi a sua cabine no avião presidencial e disse-lhe que deveria demitir o ministro. Castello ouviu calado. (Ele e muita gente. Eu, por exemplo, não repliquei.) Emparedado, Castello aceitou Costa e Silva como seu sucessor. Acordou dois anos depois, em julho de 1967, já fora do poder. Preparou-se para enfrentar a armação de um golpe “para romper a legalidade”. Infelizmente, morreu em poucas semanas, num acidente aéreo.

Outro dia almocei com o Castello Branco na casa do Juscelino Kubitschek, e ele reconheceu que o general Geisel estava certo. Lembrou que o marechal Cordeiro de Farias avisou-o de que o Costa e Silva afundaria o país, “pois ele é incapaz”.

Dois generais lembraram-me de que eu era frequentador do cineminha do Alvorada. Verdade.

Entre 1965 e 1968, temíamos que aquela Revolução Democrática estivesse virando uma ditadura. O silêncio e a cumplicidade foram maiores que a resistência.

O Aliomar Baleeiro, que foi ministro do Supremo, contou numa festa que Castello lhe disse que temia ser deposto pelo general X, que será deposto pelo general Y, que, por sua vez, será deposto pelo general Z.

Baleeiro, um baiano irreverente, completou: “Ou pelo sargento Batista”.

Referia-se ao sargento Fulgencio Batista, derrubado por Fidel Castro em 1959.

Outro dia, passou por aqui aquele venezuelano, o Chávez. Eu saí da sala.

Por favor, cumprimente por mim nosso colega Luís Roberto Barroso.

Atenciosamente,

Álvaro Ribeiro da Costa

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