sexta-feira, 13 de agosto de 2021

Flávia Oliveira - Horror a pobre, pré-requisito

O Globo

No governo Jair Bolsonaro, aporofobia não é surpresa, mas pré-requisito. Ministro da Economia, Paulo Guedes já depreciou empregadas domésticas, filhos de porteiro, brasileiros em situação de fome. A mais recente demonstração de horror a pobres partiu do titular da Educação, Milton Ribeiro, há um ano no cargo. Numa entrevista à TV Brasil, o pastor presbiteriano, autodeclarado professor, disparou um trio de declarações de ruborizar Justo Veríssimo, o personagem de Chico Anysio que melhor encarnou o desprezo dos homens públicos pelos brasileiros de baixa renda. Combinou indiferença, preconceito e desinformação, a santíssima trindade do constrangimento. Merece resposta.

1) “Na Alemanha são poucos os que fazem universidade, universidade na verdade deveria ser para poucos nesse sentido de ser útil à sociedade.” O ministro parece desconhecer que, no Brasil, universidade já é para poucos. Em 2019, segundo a Síntese de Indicadores Sociais do IBGE, apenas um em cada quatro jovens de 18 a 24 anos, idade desejável, frequentava o ensino superior. Comparado aos membros da OCDE, clube que o governo de Milton Ribeiro sonha adentrar, o Brasil tem menos habitantes que concluíram a universidade. Em Portugal, Turquia e Colômbia, a proporção de adultos de 25 a 34 anos com carreira universitária supera a do Brasil.

2) “Com todo o respeito que tenho aos motoristas, é uma profissão muito digna, mas tem muito engenheiro, muito advogado dirigindo Uber porque não consegue colocação devida. Mas se ele fosse um técnico em informática estaria empregado, porque há uma demanda muito grande.” O Brasil tem 34,7 milhões em vagas informais, precárias, sem direitos trabalhistas e previdenciários; 14,8 milhões de desempregados, gente que não trabalhou e busca ocupação; 5,7 milhões de pessoas que desistiram de procurar, os desalentados. Se há engenheiros e advogados em funções aquém da formação que tiveram, cabe ao ministro da Educação identificar os problemas e atuar pela qualidade dos cursos universitários. Ou cobrar do titular da Economia medidas de estímulo à criação de emprego e renda. Mas ainda nesta semana, o governo aprovou na Câmara dos Deputados um projeto de reforma trabalhista que legaliza a precarização. Cria para jovens de 18 a 29 anos uma modalidade de contratação por meio salário mínimo e vale-transporte, mas sem férias, décimo terceiro e FGTS. É a legalização do trabalho precário. Se não pode superá-lo, formalize-o.

3) “O que também eu acho justo (metade das vagas nas universidades públicas para alunos de maior renda), considerando que os pais desses meninos tidos como filhinhos de papai são aqueles que pagam os impostos no Brasil que sustentam bem ou mal a universidade pública.” Aqui, há ignorância ou má-fé para induzir a sociedade a acreditar que os pobres brasileiros não pagam impostos, quando inúmeros e insuspeitos estudos provam que a carga tributária por aqui é regressiva — quanto mais se ganha, menos se paga. Levantamento recente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostra que a tributação indireta abocanha 26,7% da renda dos 10% mais pobres do país e somente 10,1% do décimo mais rico, o topo da pirâmide social. A assimetria se explica, porque o Brasil taxa pesadamente produtos e serviços e alivia renda e patrimônio.

A Lei de Cotas, que ano que vem completa uma década e será reavaliada, promoveu inédito acesso de jovens negros e indígenas, de baixa renda e oriundos de escolas públicas à universidade. Pôs fim à reserva quase total de vagas àqueles que o próprio ministro reconhece como filhinhos de papai. Nas avaliações, alunos cotistas têm mostrado desempenho semelhante aos demais — não raro, melhor —, além de bem-vindo aumento da diversidade na convivência e na produção acadêmica.

Em vez de advogar pelo acesso a quem já é privilegiado, Milton Ribeiro poderia se ocupar do desânimo que, no pós-pandemia, tem levado milhares de jovens a desistir do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). O total de inscritos para a prova deste ano foi o menor desde 2009, quando foi inaugurado o atual modelo de avaliação. Pesquisa do Conselho Nacional da Juventude, entre março e abril passados, com 68 mil brasileiros de 15 a 29 anos, revelou que oito em dez não fizeram o Enem 2020; 43% pensaram em abandonar os estudos durante a pandemia, principalmente por falta de dinheiro e dificuldades com o ensino remoto; 6% já largaram a escola. A indiferença oficial certamente atrapalha.

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