sexta-feira, 13 de agosto de 2021

José de Souza Martins* - Bolsonaro e a política da ignorância

Valor Econômico / Eu & Fim Semana

O presidente é um caso cansativo de obstinação na suposição equivocada de que o povo renunciou ao seu direito de eleitor cidadão na definição de quem o governa e de como deve governá-lo

Em dias passados, o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal e presidente do Tribunal Superior Eleitoral, dirigiu-se ao povo brasileiro, com seu proverbial civismo e suas proverbiais serenidade, lucidez e erudição, para uma lição pública sobre o que é democracia, o que é democracia num país como o Brasil, o que é progresso eleitoral e o que é atraso eleitoral e político.

Mostrou-nos a importância do voto e da segurança do voto na confirmação e na renovação da democracia de que tanto carecemos. Contra a tese autoritária dos defensores de mecanismos retrógrados de expressão eleitoral. O que, em tempos passados, foram poderoso instrumento de manipulação do voto, de usurpação da vontade do brasileiro menos eleitor e menos cidadão. Os mecanismos de redução do poder a uma renúncia forçada de vontade política expressa no voto, mediante fraude.

O ministro Luís Roberto Barroso defendeu e justificou o protagonismo político do cidadão e do povo como fundamento da ordem democrática, um bem cívico que deve ser assegurado e protegido. Ensinou - e bem.

Apoiado por seus pares, deu ao seu pronunciamento a beleza cívica de um ato de esperança de que o país tanto carece. O discurso do ministro libertou o ouvido dos brasileiros do discurso de botequim, das improvisações ignorantes dos que têm se revelado incapazes de assumirem-se como cidadãos. Os que, nesse sentido, assumem-se como usurpadores do poder que não é seu.

Esse discurso passará para a história da República como um dos grandes e memoráveis pronunciamentos de nossa vida política, não só porque dito num momento de notória e confessa conspiração contra a democracia, mas também porque ele contém por inteiro o espírito de uma nação tímida, criada nos resquícios da escravidão e de seus silêncios de consciência. Uma nação ameaçada e tratada como inimiga por aqueles que deveriam estar a seu serviço e defendê-la, os que tratam o povo como suspeito.

É nele central esta afirmação: “Escolhi para minha vida ser um agente do processo civilizatório e empurrar a história na direção certa”. São palavras de grandeza e consciência cidadã do dever que nos dizem tudo em relação aos nossos impasses e a nossas esperanças.

O discurso do ministro Luís Roberto Barroso teve um fecho de ouro no enfático e altivo discurso do presidente do STF, Luiz Fux, em nome da Corte porque discurso institucional.

Desde o dia de sua posse, o presidente da República chega ao governo como portador de uma guerra contra um inimigo imaginário, que só existe na mente de um prisioneiro do passado, um passado de iniquidades políticas e sociais contra os desvalidos, contra inimigos inventados para sacrificá-los e fortalecer a repressão como forma postiça do heroísmo na falta de heróis. Bravatas, xingamentos e prepotência não fazem senão caricaturas de heróis.

Ele tem revelado enorme dificuldade para compreender que, na democracia, a estrutura de poder é relacional. São três os poderes, cada qual com sua função específica. Eles não só se completam, mas se determinam reciprocamente.

Nesse sentido, ao atacar pessoas íntegras e instituições fundamentais, ele se revela, diz o que é e diz que não é expressão legítima dessa estrutura relacional. Como acontece com todos na estrutura de poder, ele é criatura da reciprocidade das instituições. Ao negá-las, ele se nega ao negar a função que ocupa, no que é de fato a renúncia tácita ao mandato que recebeu, proclamado pelo Poder Judiciário e empossado pelo Poder Legislativo. Sem esses poderes ele seria apenas presidente de coisa nenhuma.

O despreparo para a democracia de um governante de consciência limitada e equivocadamente militarizada, que trata o Brasil como um quartel e como se fosse ele um instrutor de ordem unida, põe o país em perigo ao desconhecer a letra e o espírito da Constituição que o preside e que nos preside. A Carta que põe cada um em seu lugar na organização política da nação.

Não obstante, o governante tem estimulado o surgimento e o funcionamento de uma ordem política paralela, de silêncios e coadjuvâncias cúmplices e subalternas. De gente que lhe bate continência até nas impropriedades de um autoritarismo de poder absoluto, descabido e ameaçador à ordem propriamente democrática.

Essas manifestações de despreparo cívico são formas estruturais e crônicas de ignorância política. O atual presidente é um caso cansativo de obstinação na suposição equivocada de que o povo brasileiro renunciou ao seu direito de eleitor cidadão na definição de quem o governa e de como deve governá-lo. O povo, e não o eleito, é a fonte da legitimidade política. O povo é a instituição que fica. Bolsonaro é temporário e descartável.

José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “No Limiar da Noite” (Ateliê, 2021).

 

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