quinta-feira, 5 de agosto de 2021

Malu Gaspar - Um avatar contra a urna eletrônica

O Globo

Se nada de extraordinário acontecer, o projeto de lei que propõe o voto impresso deverá ser derrubado hoje na Comissão Especial da Câmara criada para discuti-lo. Os deputados que já se declararam contra o projeto são maioria, e mesmo o presidente da comissão, o bolsonarista Paulo Eduardo Martins (PSC-PR), reconhece que aprovar o voto impresso para 2022 é praticamente impossível. Ainda assim, o clima entre esses parlamentares não é de festa.

— Vamos ganhar na Câmara, mas ele (Bolsonaro) já ganhou o debate público —comentou um deles na tarde de ontem.

Não, o deputado não estava falando de uma conquista numérica. A última pesquisa de opinião divulgada pelo Datafolha sobre o assunto, em janeiro passado, mostra que 73% da população confia no sistema e o apoia. A questão é outra: desde que Bolsonaro começou a disseminar dúvidas sobre a urna eletrônica e a espalhar suspeitas de que esteja em curso uma armação para tirar dele a reeleição, a tese vem ganhando adeptos.

A própria existência de pesquisas de opinião para medir o que os brasileiros pensam sobre um assunto que há até pouco tempo nem sequer se debatia já mostra que o presidente plantou uma semente na cabeça de certos grupos. O Instituto Ideia Big Data, um dos únicos que fazem levantamentos periódicos sobre o tema, constatou que a proporção de pessoas que “confiam muito” na urna eletrônica caiu de 42% em outubro de 2018 para 27% em maio deste ano.

Os que não confiam no sistema, que eram 22%, agora são 33%. Em nichos específicos, como os policiais militares, a adesão ao discurso bolsonarista é maior. O mesmo Ideia Big Data que mediu a opinião geral aferiu também a dos PMs. Entre eles, a fatia dos que confiam muito no sistema eletrônico de votação caiu de 30% para 15% desde 2018.

Em monitoramentos internos, partidos de esquerda detectaram que, mesmo não tendo sido tão expressivas como outras já feitas no passado, em torno de pautas distintas, as manifestações do fim de semana tiveram repercussão positiva em públicos que a oposição sabe que precisa conquistar.

Está aí a chave da estratégia bolsonarista, que não deveria mais nos surpreender: o presidente da República não opera no diapasão da normalidade institucional. Na definição de um integrante do Centrão, Bolsonaro é um avatar. Uma coisa é o que ele diz para as redes sociais, as lives, o cercadinho. Outra coisa é o que ele faz na prática. O avatar brada contra a urna eletrônica, enfrentando o “sistema”, que uniu contra ele os políticos tradicionais e os ministros do Supremo Tribunal Federal.

O presidente de verdade bajula o Centrão com cargos e rapapés e aceita pagar um fundo eleitoral de R$ 4 bilhões para alimentar o mesmo sistema que ele diz combater. O avatar diz defender a auditoria nas urnas em nome da transparência, enquanto o presidente real manda decretar sigilo de cem anos para informações comezinhas, como quantas vezes seus filhos entraram e saíram do Palácio do Planalto durante seu governo. O avatar prega liberdade e democracia. O presidente real endossa ameaças de militares à realização das eleições de 2022.

Embora não seja nova, a estratégia ainda funciona. A discussão do voto impresso serviu para ofuscar as denúncias de corrupção que pairam sobre o governo e, de quebra, ajudou a mobilizar o bolsonarista raiz, que andava meio abatido com essas mesmas denúncias.

Além disso, o fato de o presidente perder a batalha do momento poderá acabar lhe sendo útil em 2022, caso sua vulnerabilidade política continue aumentando. Foi o que fez Donald Trump quando se viu em desvantagem na disputa eleitoral do ano passado. Se há uma aposta certeira a fazer é que esse debate não acaba com a derrota do projeto na Câmara. Só estamos assistindo ao primeiro round de uma luta que vai pelo menos até 2022.

Isso não significa que as instituições devam recuar, transigir ou abrir mão de seu papel: proteger a democracia das ameaças e mentiras — e promover a transparência de verdade, com ampla prestação de contas ao público não só sobre as urnas eletrônicas, mas também sobre tudo o que se refere ao sistema eleitoral. Ao contrário dos líderes populistas que já nascem como avatares, numa democracia as instituições são feitas para a perenidade.

Para defendê-las, é preciso entender que vitórias e derrotas circunstanciais fazem parte do jogo e que a batalha pela democracia nunca acaba. O caso americano mostra que nem mesmo os mais potentes avatares conseguem resistir à força das instituições quando elas funcionam a contento. O avatar a gente troca. As instituições, não.

 

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