quinta-feira, 19 de agosto de 2021

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

Sombra nos mercados

O Estado de S. Paulo

A baderna fiscal, as brigas e desvarios do presidente Jair Bolsonaro estão influenciando a bolsa e o câmbio mais do que os lucros e as perspectivas de empresas com ações no mercado. Bons balanços e expectativas otimistas levaram o Ibovespa a 130.776,27 pontos, nível recorde, em 4 de junho. A festa durou pouco. Depois de alguma oscilação, o indicador despencou e no dia 17 de agosto chegou a 117.903,81 pontos, cerca de 10% abaixo do pico alcançado no meio do ano. O presidente e sua equipe eliminaram o contraste entre a bolsa vigorosa e a economia em recuperação lenta, desigual e com alto desemprego.

A confusão, os erros e a insegurança da política econômica também se refletem no mercado, afetam os preços das ações e mexem com o câmbio. Com exportações em alta e boas cotações internacionais, o comércio exterior brasileiro continua superavitário, mas o dólar oscila, diante do real, como se houvesse muita insegurança nas contas externas.

Ainda no dia 17 o dólar chegou a R$ 5,30 e caiu para R$ 5,27 no fechamento, mas no dia seguinte, no fim da manhã, bateu em R$ 5,34. Em Brasília, os senadores Alessandro Vieira (Cidadania-SE) e Fabiano Contarato (Rede-ES) haviam protocolado notícia-crime contra o procurador-geral da República, Augusto Aras, acusando-o de omissão diante de “crimes e arbitrariedades” do presidente Bolsonaro.

Fatos externos também afetam as ações, os juros e o câmbio. Investidores acompanham o tempo todo a economia americana, a evolução da pandemia, os indicadores da China, choques políticos, como a vitória do Taleban, e, é claro, as oscilações de preços das commodities. Não há como desconhecer as variações da cotação do petróleo e seus efeitos no lucro e nas perspectivas da Petrobras.

No Brasil, como em outras grandes economias, o mercado financeiro reflete, no dia a dia, uma enorme combinação de informações nacionais e internacionais. As notícias de Brasília têm enorme peso entre as informações nacionais e isso pode parecer perfeitamente normal. É normal, de fato, exceto por um detalhe sinistro. Os mercados de ações, de juros e de câmbio têm sido afetados principalmente por trapalhadas econômicas, por crises políticas provocadas pelo presidente da República e, de modo especial, pela ampla incerteza quanto à evolução das contas de governo e, obviamente, da dívida pública.

Concentrada em atender aos interesses político-eleitorais do presidente, a equipe econômica maneja as finanças oficiais de forma confusa, inventando fórmulas para ampliar os gastos sem furar o teto e sem violar a regra de ouro e misturando questões estruturais, como a ordem tributária, com problemas de curto e de médio prazos, como o financiamento de despesas impostas pelas conveniências presidenciais.

Uma reforma tributária limitada, sem planejamento, improvisada, contestada por empresários de vários setores, sindicalistas, governadores, prefeitos e políticos de vários partidos, é um dos produtos mais típicos dessa forma confusa e sem rumo de administrar as finanças federais.

Para tocar a reforma do Imposto de Renda, o relator do projeto, ajudado pelo ministro da Economia, conduz negociações e acertos com diferentes grupos, fazendo concessões e costurando remendos. Até o critério de reajuste salarial para os professores virou objeto de troca nessas combinações. Nessa baderna, o efeito da reforma nas finanças do governo continua incerto e muito preocupante. O risco de novas perdas acaba reforçando a incerteza fiscal e a insegurança dos investidores.

Instabilidade cambial, imprevisibilidade nos negócios e inflação em alta são alguns dos efeitos dessas confusões e das ameaças do presidente à ordem institucional. Tentando manter-se fora da baderna, o Banco Central aperta a política monetária, elevando os juros, para conter os preços e restabelecer alguma segurança. A terapia pode prejudicar a recuperação dos negócios e do emprego e atrapalhar o endividado setor público. Não é a solução ideal, mas há pouca escolha quando o País carece de um governo de fato.

Aceno à moderação

O Estado de S. Paulo

É difícil imaginar um Taleban moderado; resta torcer para que não governe pela violência

É muito difícil imaginar um Taleban moderado. O passado de reiteradas violações dos direitos humanos, sobretudo as atrocidades cometidas contra mulheres e meninas afegãs, condena a milícia de radicais islâmicos do Afeganistão. Portanto, o enorme esforço de relações públicas do Taleban após a tomada de Cabul, no domingo passado, deve ser recebido com desconfiança. “Os talebans serão julgados por suas ações, e não por suas palavras”, afirmou o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson.

No dia 17 passado, representantes do grupo deram entrevista coletiva, divulgaram diversas mensagens pelo Twitter e foram à rede de TV BBC com o objetivo de transmitir ao mundo a imagem de um “novo” Taleban, uma espécie de versão “evoluída” daquele Taleban que entre 1996 e 2001 governou o Afeganistão se refestelando em sangue. “Dê-nos tempo”, pediu o porta-voz do grupo, Zabihullah Mujahid, durante a coletiva de imprensa. Em tom conciliador, Mujahid afirmou que o povo afegão “não tem com o que se preocupar”, que propriedades serão “respeitadas” e, principalmente, a integridade física dos afegãos que colaboraram com as forças de ocupação lideradas pelos Estados Unidos estará assegura. Anunciou-se uma espécie de anistia.

O porta-voz do grupo disse ainda que as mulheres estarão a salvo de violência e “nenhum preconceito contra elas será permitido”, pois, prosseguiu Mujahid, “os valores islâmicos são a nossa estrutura”. Aqui mora o perigo. Este “novo” Taleban anunciou que integrará as mulheres à sociedade, permitindo que elas estudem e trabalhem, “mas sempre dentro dos limites da lei islâmica”. Isto valerá para os jornalistas, que terão “permissão” para “criticar e apontar erros” do novo governo, contudo, também dentro das balizas que são definidas pelo próprio Taleban.

O grupo é mundialmente conhecido pela interpretação extremada que faz do Alcorão. Ao fim e ao cabo, a garantia das liberdades mais comezinhas dos cidadãos afegãos estará sempre condicionada a esta exegese muito particular do texto sagrado do islã.

Por outro lado, o que resta ao chamado mundo civilizado a não ser torcer para que este aceno à moderação, de fato, seja acompanhado de ações que tragam ao menos um fiapo de esperança para um povo alquebrado por séculos de guerras e ocupações estrangeiras? A julgar pelas recentes declarações do presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, não se cogita voltar atrás da decisão de retirar os soldados americanos do Afeganistão após quase duas décadas de ocupação militar. O que significa dizer que, para o bem ou para o mal, os afegãos terão de encontrar alguma forma de reconstruir o país por si mesmos.

Por ora, as promessas do Taleban não foram suficientes para aplacar a angústia de milhões de afegãos. Ondas migratórias já são dadas como certas por autoridades da União Europeia, o que poderá desencadear uma crise humanitária tão ou mais dramática do que a de 2014-2015, quando milhares de refugiados chegaram ao continente europeu em condições subumanas tentando escapar de conflitos no norte da África e no Oriente Médio, em especial da guerra civil na Síria.

Em muitas regiões do Afeganistão, sobretudo em cidades do interior, mulheres deixaram de realizar suas atividades laborais ou acadêmicas e até mesmo evitam circular nas ruas. A situação é especialmente preocupante para as muitas viúvas do país, que nem sequer podem ir ao mercado comprar alimentos por não terem a companhia de um homem, como manda o Taleban.

O secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), António Guterres, disse estar “particularmente preocupado” com a situação das mulheres afegãs após ter recebido relatos “assustadores” de violências praticadas pelo Taleban no caminho até Cabul. Guterres exortou as lideranças do grupo a respeitar os direitos humanos.

É o que resta esperar agora, que o Taleban cumpra a promessa de não governar pela violência desmedida, como outrora. É ocioso esperar que um país islâmico se converta em uma democracia nos moldes das democracias ocidentais.

A matemática e os vestibulares

O Estado de S. Paulo

Ao mudar prova para seleção de 2022, Unicamp mostrou ter consciência do problema

As perdas do nível de aprendizagem esperado para os alunos da última série do ensino médio, especialmente em matemática, por causa das dificuldades decorrentes do fechamento das escolas durante a pandemia, trouxeram problemas graves para o próximo vestibular das universidades públicas. De que modo elas podem exigir dos vestibulandos conhecimentos que não tiveram condições de aprender?

Uma das instituições que estão enfrentando esse problema é a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), cujas inscrições para o processo seletivo de 2022 acabam de ser abertas. Ao todo, serão oferecidas 2.540 vagas em 69 cursos. Após constatar que os candidatos ao vestibular de 2021 não haviam conseguido aprender todo o conteúdo da disciplina de matemática do ensino médio, a instituição adotou duas decisões. Mudou a prova dessa disciplina para os candidatos aos cursos de graduação em ciências humanas e reduziu o número de questões de 90 para 72.

Ao justificar essas decisões, o diretor da Comissão Permanente para Vestibulares da Unicamp, professor José Alves Freitas Neto, que também coordena o curso de graduação em história da instituição, afirmou que os problemas causados pela pandemia desmotivaram os concluintes do ensino médio e comprometeram a capacidade de planejar seu futuro. Por isso, muitos desistiram de ingressar numa faculdade, o que foi evidenciado pela queda significativa do número de participantes do último Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), que é a principal porta de entrada das universidades federais e de muitas universidades confessionais ou privadas. No vestibular de 2021, a própria Unicamp já havia registrado a abstenção de 13,8% dos inscritos na primeira fase do processo seletivo – a maior taxa nos últimos 18 anos. Também constatou que, no mesmo vestibular, as notas de matemática foram as que mais baixaram, quando comparadas com as notas dos vestibulares anteriores. 

O maior desafio é mobilizar e engajar esses estudantes, que passaram dois dos três anos do ensino médio assistindo a aulas pelo sistema de ensino a distância, afirma o professor Freitas Neto. No ano passado, 80% dos alunos da rede pública do ensino médio do Estado de São Paulo não conseguiram passar mais do que duas horas assistindo a aulas por computador, tablet ou celular. O mesmo problema detectado pela Unicamp vem ocorrendo em outras universidades, mas elas ainda não anunciaram as mudanças que poderão promover em seus processos seletivos. 

A matemática não é apenas uma ferramenta para desenvolver o raciocínio e habilidades cognitivas. É, também, decisiva para estimular a reflexão abstrata, o potencial crítico, a criatividade e a capacidade de argumentação dos alunos. Isso mostra o impacto da perda do nível de aprendizado dessa disciplina na formação das novas gerações. 

Antes da pandemia e da substituição das aulas presenciais por aulas virtuais, o aproveitamento dos alunos do ensino básico em matemática já era insatisfatório, como apontam os mecanismos nacionais de avaliação escolar e o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa), promovido pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Os últimos números do Pisa revelaram que dois terços dos estudantes brasileiros na faixa etária de 15 anos apresentaram níveis de proficiência em matemática muito mais baixos do que os considerados básicos pela entidade.

O agravamento do problema de aprendizagem da matemática terá consequências dramáticas. Entre outras consequências, limitará o acesso das novas gerações a empregos qualificados. Também impedirá a formação de capital humano de que o País tanto precisa para se desenvolver e passar a níveis mais sofisticados de produção. E ainda perpetuará as condições do atraso, da desigualdade e da pobreza na sociedade brasileira. 

Ao mudar a prova de matemática para não prejudicar os candidatos aos cursos de ciências humanas em seu próximo vestibular, a Unicamp mostrou ter consciência da gravidade desse problema. Resta solvê-lo. 

Se insistir, piora

Folha de S. Paulo

Reforma do IR se distancia de seus objetivos, e correção parece improvável 

A resultante de um governo fraco, de um presidente da Câmara obcecado por votar o que quer que seja e da alta penetração de interesses particulares no Parlamento está produzindo um monstro na reforma do Imposto de Renda.

A boa notícia da terça (17) foi o adiamento da votação do relatório do deputado Celso Sabino (PSDB-PI). A motivação do impasse concentrou-se mais no temor de perda de arrecadação por estados e municípios do que no distanciamento da proposta em relação aos objetivos que a deveriam nortear.

O IR brasileiro falha ao deixar de assegurar dois princípios básicos: os indivíduos mais ricos precisam recolher proporcionalmente mais; as rendas de mesma origem —do trabalho, por exemplo— precisam ser taxadas de modo similar.

No Brasil, uma classe de trabalhadores, os contratados pela CLT, paga sobre o salário as alíquotas cheias do IR da pessoa física, ao passo que outro grupo, no regime de lucro presumido em pequenas empresas, recolhe muito menos.

Por essa brecha muitos milionários escapam da tributação que seria a mais justa e progressiva do IR, pois nesse modelo podem atuar empresas individuais que faturam até R$ 4,8 milhões anuais.

Taxar os dividendos —que são a forma jurídica pela qual a renda é transferida aos indivíduos nessas empresas— de forma análoga à que se tributa o salário sob a CLT seria portanto uma necessidade de qualquer reforma dedicada a corrigir desigualdades no Brasil.

A proposta na Câmara, porém, mantém a isenção tributária na distribuição dos dividendos nessas firmas. Nem sequer a intenção de limitar a regalia a quem retire até R$ 20 mil mensais sobreviveu à sanha regressista de que tem sido presa fácil a Casa desgovernada.

Como alertou o secretário da Receita Federal à Folha, se essa reforma for aprovada, pode haver incentivo à “pejotização”, a distorção que leva trabalhadores a atuar sob o manto de empresas individuais.

Também no capítulo dos sinais equivocados, a proposta desestimula que as empresas ganhem escala e eficiência e, apesar de reduzir alíquotas de IR, ainda exige das corporações sob o regime do lucro real —as maiores— uma carga total mais elevada do que a de outros países que competem com o Brasil.

Tributação, quanto mais da renda, não é um tema que deva ser tratado com açodamento. Há implicações para a justiça social, o equilíbrio fiscal e a competitividade econômica que precisam ser sopesadas, estudadas e amadurecidas.

Sem uma profunda correção de rumos, que a esta altura parece improvável, a melhor decisão será abandonar a reforma e retomar o debate do tema no futuro, em outras circunstâncias políticas.

Alerta Cantareira

Folha de S. Paulo

Chuvas escassas podem ser nova norma do clima; é prudente repensar o consumo

Sete anos depois da crise hídrica na Grande São Paulo, que forçou um racionamento não declarado no abastecimento de água, seu maior sistema de distribuição entra em situação preocupante. O nível dos reservatórios do Cantareira, como noticiou O Estado de S. Paulo, caiu abaixo de 40%.

Isso caracteriza estado de alerta, segundo normas operacionais da Agência Nacional de Águas (ANA). O ideal neste período seria contar com reservas de 60%.

Na mesma época em 2020, o complexo de represas estocava água em 50% de sua capacidade. Hoje, como há um ano, a região metropolitana ainda fica distante da emergência configurada quando a Sabesp, companhia estadual de saneamento básico, precisou captar o recurso abaixo das tubulações usuais, no volume morto.

Houve avanços significativos nos meios para enfrentar a escassez. O sistema São Lourenço entrou em linha, agregando 5.000 litros por segundo (5 m³/s) à vazão disponível. A interligação com a bacia do Paraíba garantiu mais 7 m³/s para desafogar o Cantareira.

Com isso, o contingente populacional dependente do sistema encolheu de 9 milhões de pessoas para 7,2 milhões. Tornou-se possível reduzir a captação autorizada no Cantareira de 33 m³/s para 27 m³/s.

Mesmo assim, o armazenamento continuou caindo. As previsões mais drásticas indicam que o volume poderá despencar a 20% em dezembro, quando aí sim haveria razão para alarme.

Por trás da insegurança hídrica está uma década com precipitação abaixo da média na região. A presente estiagem em cinco estados brasileiros (MG e SP, onde estão os mananciais do Cantareira, mais GO, MS e PR) é a pior em 91 anos.

Crescem indicações da ciência para a possibilidade de que a retração de chuvas seja resultante da crise climática mundial e do desmatamento na Amazônia, no cerrado e na mata atlântica.

Secas e estiagens prolongadas se encaixam predições de eventos extremos formuladas pelo Painel Intergovernamental de Mudança Climática, da ONU. Não será surpresa se a tendência perdurar.

Nesse cenário, obras para buscar água cada vez mais longe da metrópole não serão sustentáveis, além de drenar bilhões da sociedade. É preciso repensar o padrão de consumo, e o poder público deveria tornar permanentes as campanhas de conscientização, não reciclá-las só quando seca a fonte.

Governo enfia os pés pelas mãos com IR e precatórios

Valor Econômico

O padrão da atuação legislativa diante de um governo que não dirige é previsível: os projetos saem irreconhecíveis

Sem um norte que não seja a reeleição do presidente Jair Bolsonaro, o governo age como aprendiz de feiticeiro em um Congresso dominado pelo Centrão. Dois projetos que se tornaram essenciais para esse objetivo - a reforma do imposto de renda e o calote dos precatórios - racharam o Congresso, empresários, tributaristas etc. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que tem pressa na aprovação, intuiu que um consenso na matéria é quase impossível. O governo jogou a toalha na sessão de quarta e aceitou adiar a discussão do IR para data não determinada. Na questão da PEC dos precatórios, há chances de derrota.

O governo tirou da cartola os projetos. O do IR busca cumprir uma promessa de campanha de 2018 ainda ignorada, a de aumentar o limite de isenção para as faixas menores de renda, e, ao mesmo tempo, buscar alguns recursos extras para robustecer o Bolsa Família, que seria transformado em Auxílio Emergencial com renda maior e novas atribuições.

A PEC dos precatórios foi a forma encontrada de empurrar dívidas já transitadas pela Justiça, adiando seu pagamento para os maiores valores. Com a postergação, abre-se um espaço no orçamento de R$ 30 bilhões que seriam destinados ao Auxílio Emergencial. Neste caminho, criou-se um fundo, fora do teto de gastos, constituído por privatizações, receitas de concessões e dividendos líquidos recebidos pela União, para quitar eventualmente precatórios e inicialmente, engrossar os recursos para o novo Bolsa Família. Este último objetivo foi logo abandonado.

As mudanças no imposto de renda mostraram falhas de dois tipos. Primeiro, com dois projetos de reforma tributária no Congresso, mais um pedaço enviado pelo Executivo, não faz sentido criar um remendo mal costurado e não tentar a remodelagem do sistema todo, sobre a qual a discussão estava avançada no parlamento, à espera de projetos adicionais prometidos pelo governo, que nunca vieram. Depois, a calibragem das mudanças desagradou não apenas aos setores que acham que nunca devem pagar mais como aos que efetivamente já o fazem.

A troca da tributação dos dividendos pela redução do IRPJ e o fim dos juros sobre capital próprio provocaram um monumental imbróglio, resolvido de forma singela pelo relator, o deputado Celso Sabino. O governo pretendia obter receita adicional modesta, de R$ 2 bilhões com as modificações, que consistiam no corte de 5 pontos percentuais do IRPJ, em duas parcelas, e a instituição de 20% sobre os dividendos, com um refresco de isenção sobre dividendos até R$ 20 mil mensais. O relator mudou tudo e, em sua primeira versão, o superávit se transformou em um déficit de R$ 30 bilhões, com um corte forte de 10 pontos percentuais no IR. A saída provocou a revolta de Estados e municípios, que perderão dinheiro no fundo de participação, que conta com a distribuição do IR e de outros impostos.

Mesmo com sua forma atual - não definitiva - corta-se 6,5% do IR e 1,5% da CSLL - a ira dos Estados não foi aplacada. Então entrou em cena a pura criatividade. Como compensação, Lira prometeu aumento da fatia do IR nos fundos de participação de 1,37 ponto percentual (R$ 5 bilhões) sem que se saiba de onde sairá o dinheiro. Em seguida, tentou-se mudar o piso salarial dos professores, acabando com o reajuste real embutido no Fundeb. A cizânia aumentou.

No caso dos precatórios, há risco certo de judicialização e outro, mais grave, de rompimento do teto de gastos, pela criação de um fundo cujas despesas não estarão nele inscritas. O ministro Paulo Guedes saiu-se com a ameaça de “shutdown” se os precatórios não forem parcelados, quando é possível pagar essas dívidas com emissão de títulos do Tesouro. A trajetória ascendente dos montantes dos precatórios era sabida, assim como a compressão que trará às despesas obrigatórias pela lei do teto. O mesmo governo que patrocina o calote foi o que sacramentou uma regra inexequível para que o gatilho de contenção de despesas para assegurar o teto disparasse - quando as despesas atingissem 95% dos gastos obrigatórios, isto é, quando o governo praticamente já estivesse em “shutdown”, com as despesas discricionárias a 5% (Felipe Salto, O Estado de S. Paulo).

A percepção de risco fiscal recrudesceu, com novos saltos do dólar, queda na bolsa e mais pressão inflacionária. O padrão da atuação legislativa diante de um governo que não dirige é previsível: os projetos saem irreconhecíveis, com mais despesas penduradas nos cofres públicos. Um bom motivo para não fazê-los de forma amadora e eleitoreira.

 

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